quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A queda da palavra: a perda da inocência



O Jardim das Delícias - Hieronymus Bosch

A horta da minha bisavó era sem fim. Poderia andar nos meus passos miúdos por horas, talvez dias a fio que não veria nem o contorno rente ao céu da última plantação. Descobri a existência do céu por acaso. Engraçado que o mesmo tempo da descoberta, foi o tempo da tempestade. Minha bisavó me ensinou a olhar para o chão para prestar atenção na festa das joaninhas por debaixo das folhas de inhame, a dança tresloucada da minhoca que arejava ideias sobre os musgos por entre as pedras comestíveis, para os sulcos na terra-húmus escavados durante a última chuva, para os tubérculos que de tão envergonhados recolhiam-se debaixo da terra - e eu, muitas vezes, era tão tubérculo para minha vida ainda diminuta -, para os rastros das lesmas, para os rastros do homem, para os rastros da vida.
Assim, olhava encantado para aquele mundo-chão, para aquele mundo-fértil. E eu ria com as infinitas possibilidades que a cada dia iam o tempo e o vento me revelando. Não, nunca havia olhado para o céu. Não daquela maneira. É claro que eu sabia que existiam estrelas. É claro que a luz do sol iniciava o douramento da minha pele e eu sentia que a vida também começava por ali: fotossíntese era o que havia em mim. Por isso aquela horta era tão extensa. Ela não cabia na minha imaginação. Eu transbordava.
O que aconteceu foi numa manhã. Era um dia ensolarado. Céu azul sem uma mancha de nuvem. Eu e minha bisavó estávamos tropeçando em estrofes que havíamos plantado recentemente quando dei um grito: "vó, uma estrela cadente!" E fiquei como um louco olhando para o céu e rindo. Deixei-me cair por terra, barriga para cima, olhos estáticos e os braços abertos em crucifixo. O sol furava meus poros e eu ardia em febre. Não queria mais sair dali.
-"Você viu o que não devia", falou seca minha bisavó. Era a primeira vez que ela falava assim comigo. Eu vira prematuramente? Criança não podia ver o que em êxtase eu via? Tudo girava e as palavras não cabiam na minha língua. Descobri naquele instante que a linguagem é coisa encantada, mas que é um erro santificá-la. Talvez por isso eu tenha sentido necessidade de estar rente ao chão.
-"Você nunca mais repita isto à luz do dia." Sua voz abrandara, mas o mal estava feito. Eu vira além do que podia ter visto e cometi o pecado de falar. A palavra escorreu em minha boca para nunca mais secar.
Hoje, com a jornada dos dias, ando com a garganta seca. Os olhos lacrimejam na saudade. A palavra escorreu definitivamente para fora do Jardim, mas foram os olhos da minha bisavó que permaneceram lá. Intactos. Eram os olhos na inocência.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A palavra inventada


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Minha bisavó era religiosa. Ela acreditava nas folhas de couve. Dizia assim: "meu neto, se aquela couve brotar viçosa (ninguém mais diz a palavra viçosa como ela dizia), vou dar um nome para ela". Para ela, dar um nome fazia com que a couve brotasse em flor e folha como uma linda floresta. E eu ficava imaginando uma floresta de couves com formigas colossais e caracóis gigantes que passeavam sob suas sombras. A bisa acreditava nos nomes e dizia que o nome é o primeiro ato de amor que podemos dar à uma criança. E remendava: "quando você dá um nome para uma criança que ainda não nasceu, ela imediatamente passa a pertencer a sua família. Antes disto ela não é ninguém. Isto é um ato de amor, pois amor é acolhimento", dizia ela em sua singela e enorme sabedoria.
Então, aventureiro como sempre fui quando o negócio se tratava de palavras, perguntei a avó se eu mesmo poderia batizar aquele pé de couve. Mas vai que "chuva que beira a noite, não tarda em desfolhar palavras", dizia ela. E o dito ficou pelo feito. O dia virou noite antes mesmo do sol se por e houve o destronamento da horta. Era água que nunca caberia em nenhum dicionário por maior que fosse. Na verdade, choveu mesmo da página 93 até a página 215. E foi tanta chuva que chorei prevendo o que acabei por constatar na manhã seguinte. Corri até a horta e nem mais a palavra horta havia, se eu soubesse naquele tempo, escrevê-la.
E eu tinha ficado com a palavra inventada atravessada na minha cabeça, como um estrepe no pé.
-"Vó", eu disse engolindo um soluço, "o que eu faço com o nome que eu havia inventado para aquele pé de couve?"
- "Vamos plantá-lo", disse ela sorrindo. Mas eu sabia que por dentro ela também estava triste, por que ela também tinha inventado muitos outros nomes para os outros pés. Seu Nonô, que era quem trabalhava na horta, veio logo com uma enxada.
_"D. Tavinha, Seu menino" - ele nunca soube pronunciar meu nome e, no entanto, nunca senti tanto encantamento no impronunciável como quando ele me chamava -, "não há de ser nada não. Quando uma muda couve se adianta, outra mais forte se alevanta". E isto era quase Camões, mas era o velho Seu Nonô em sua prosa poética.
Nós três passamos a manhã ali. Plantei palavras como nunca soube que plantaria. Minha bisavó me ensinou que no corrido do canteiro não tem importância você plantar um 'n' antes de 'p' ou 'b', "pois lá embaixo, sob o estrume, as raízes é que embaralham certo a nossa cultura". A bisavó falava de cultura e eu bebia daquela sua água colhida ao longo da vida: água que eu colhia já quase sem esperanças no final do alfabeto, dentro da letra 'u'.
Hoje, quando fico ateu das lembranças que tinha dela, recordo logo da sua crença e me reconcilio inventando outras palavras. Como diz o poeta Manoel de Barros, "as palavras que não têm nome são as mais ditas por crianças."

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Palavras rolando

Noite estrelada - Van Gogh

A noção de que as ideias voam e as palavras rastejam não é nova. Nasceu, com certeza, com a minha bisavó e não de Shakespeare como muitos pensam. Ela era dada a novidades. Certa vez descobriu uma nova constelação, uma colcha de estrelas, como ela mesma dizia. E isto a olho nu. Ela enxergava longe. Ela fazia fuxico e, antes de morrer, me deixou uma colcha que agasalha a minha imaginação até hoje. Era uma mulher além de seu tempo. Vivia no mundo da lua, ou quase lá, aliás, às vezes e, frequentemente, ultrapassava a lua e bordejava estrelas.
Ela me dizia por detrás de seus óculos pequeninos: "meu neto, as palavras veem das estrelas. Elas descem de noite, entram nos nossos sonhos e a gente quando acorda está de palavra nova". Assim ela dizia, assim eu cresci em sua crença. Coisa de menino que via no escuro da roça, as palavras tomarem forma. Algumas vezes eram palavras candentes. Noutras, eram palavras azeitadas no inferno. E nestas horas eu corria para debaixo da cama que é o lugar mais seguro do mundo quando se está com medo e a vida não transcorreu mais do que cinco anos. É assombroso o que se imagina do inferno quando se é pequeno: um lugar sem brinquedos, sem sossego, sem minha avó, sem o vô, com muito fogo que sai do leão de duas cabeças. Tudo bem que é o Cérbero, famoso cão do inferno, mas criança sempre acha leão pior do que cachorro, ainda mais quando se tem alguns e na roça o que a gente mais tem são cachorros, pulgas, carrapatos, trinca-ferros, coleros, abelhas, vespas, catapora, coqueluche, bicho de pé, nariz fungando, vagalumes, estrelas e mais estrelas. Na roça as estrelas são em maior número do que em outro lugar. A não ser quando chovia. E era nestes momentos sujeitos a chuvas e trovoadas que eu, ainda pequeno e impertinente, perguntava mais ou menos assim a minha avó:
- "Vó, hoje de noite não tá chovendo?"
- "Claro, meu neto. Tá chovendo muito".
- "Então o céu não tem estrelas".
- "Isto mesmo, meu neto".
- "Então hoje não teremos palavras novas?"
Pela primeira vez eu vi minha bisavó triste, triste como uma mariposa em volta da luz. Então ela me contou uma história surpreendente. Era sobre um menino chamado Sísifo - assim do seu tamanho, ela dizia -, que morava num lugar que chovia toda a noite e, portanto, há muito tempo não ganhava nenhuma palavra nova. -"E como é que ele fazia para viver sem uma única palavra nova?", perguntei ansioso. "Ele ia rolando sua palavra até no alto de uma montanha, mais alta do que o seu pensamento pode alcançar, e quando ele estava quase lá no alto ele a soltava e ela ia fazendo como uma bola de neve: ia crescendo em outras palavras e quando ela chegava lá embaixo já havia quase uma frase. Tinha dias que ele colhia uma história quase que por completo. E assim ele fez todos os dias ao longo dos seus centro e trinta e dois anos de vida, pois ele viveu muito", contou-me a vó. - "Então ele escreveu muitos e infinitos livros?", perguntei fascinado.
Cresci com a crença de que as palavras veem mesmo das estrelas e disso eu não duvido nem um pouco. Tanto é assim que quando eu fico sem inspiração para escrever, eu volto sempre ao campo e, deitado ao relento, olho fixamente para o céu e me deixo regar pelo mar de palavras que caem em noite estelar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A fábrica de palavras



Escrevi no meu último post (leiam: A palavra oculta) que meu bisavô tinha muitas manias. Não era uma única. Se vocês voltarem lá verão que a palavra já estava no plural Ele próprio era plural. Ele era singularíssimo em sua pluralidade.
Sua casa era simples como seus abraços. Abraçava e a gente se sentia extremamente acolhido como a noite acolhe o fim do dia e eles sabem a razão de se sentirem assim. E pronto. Sem adereços nem outras fantasia. Meu bisavô era a sua casa e, agora sabemos com tristeza, mutilado da minha bisavó, seu grande amor. Mas meu bisavô era um homem muito ativo, dado a fazer e a inventar coisas. Seu luto e seu eterno conversar com os livros não consistiam num abatimento. Muito pelo contrário. Arrancava de dentro da sua baixa estatura e corpo franzino, que a idade sempre contribui por fazer enxurrada, uma grandeza jamais vista.
Ele tinha uma oficina atrás de sua casa. Consertava tudo e seu tudo para gente simples do interior era bem pouco, ao menos para o muito e o excesso que conhecemos hoje. Vocês sabem do que estou falando. Tudo de seu mundo, bem dito. Mas era habilidoso com as mãos para a madeira e o torno. A bisa tinha a mão boa (que destino ingrato) para plantar.
Mas, vai que desde sua viuvez, o bisavô passou a se trancar em sua oficina. Criança, por sua natureza, é sempre um serzinho extremamente curioso. Quando se diz 'não pode', 'não olhe', aí é que o bicho da curiosidade germina e coça sem parar. Eu queria saber o que ele fazia. Barulho havia (plainas, serrotes, pregos sendo batidos, esmeril, serra elétrica, etc), o que não havia era entendimento para aquilo tudo. Talvez por medo ou vergonha ele não deixava ninguém olhar. Era mania sua e devia de ter alguma ligação com a morte da bisa.
E foi numa manhã azul de domingo que ele pediu que todos nos arrumássemos bem bonitos para irmos à missa. Mas quando estávamos todos prontos, ele disse que naquele dia ninguém precisava ir a igreja. Eu, ainda menino, como minha fé amarrada tal como linha puída de pipa, exultei de alegria com a notícia de meu ateísmo dominical. Ele fez a família se enfileirar tal como numa procissão e nos conduziu solene para a porta de sua oficina. Talvez fosse sua missa, talvez quisesse virar um beato religioso.
Cauteloso como era, deu um passo à frente de todos e disse com a gravidade que sua voz entoava. Hoje vocês irão conhecer a minha fábrica. E abriu as duas portas de madeira da sua oficina. O que vi não coube dentro dos meus olhos. Não coube dentro de mim. Talvez jamais caberá um dia.
Meu bisavô havia escrito um livro, aliás, um não, mas vários. Ou melhor, ele havia escrito várias histórias. Explico: ele havia feito letras, muitas letras de galhos retorcidos de goiabeira, outras letras de madeira de caixote. Letras de todas as formas, cores e tamanhos. Tudo com exímia perfeição. Tudo com um carinho, uma devoção e amor que só um homem apaixonado e apaixonante faria. E disse orgulhoso: "esta é a minha fábrica de palavras. Aqui estão as histórias da minha vida e aquelas outras que eu gostaria de contar para sua avó (e meu pai e toda a família chorávamos muito como um rio sazonal que acorda de repente de sua secura anual) e não tive tempo."
Eram letras lindas que formavam palavras que não entendíamos: nuigo, rastléu, ponciaras, luzdalua... Me desculpem. Já não sei mais se minha memória falha, ou aqui invento o não visto da saudade, mas como disse minha querida Clarice, viver ultrapassa todo o entendimento.
Então, foi com o o coração ultrapassado pelas palavras que abraçamos o vô com sua igreja de palavras inventadas no amor. Abraçamos o vô em sua doce simplicidade. Era o seu ofertório, seu alfabeto traduzido no sem fim do amor.
Foi neste momento que se deu um fato extraordinário: minha bisavó apareceu bem ali na frente de todos. Era uma febre coletiva, insanidade do vô transmitida em suas hierarquias? E sorria como a palavra amanhecer. E seu sorriso emudeceu nossos olhos arregalados. Chegou como se sempre tivesse estado ali, tomou a mão do bisavô e, um por uma, foi recolhendo todas as palavras, todas aquelas letras sem nenhum nexo aparente e colocando dentro do seu velho balde. Depois saiu da "fábrica" e a procissão familiar a acompanhou até a sua horta. Ali ela pegou a enxadinha que continuava caída no mesmo lugar desde a sua partida. Com o mesmo carinho e desvelo de sempre, olhou para nós com um sorriso convidadito e começou a cavar pequenos buracos naquela terra úmida de nossas lágrimas felizes e plantar, uma após outra, aquelas letras e palavras. Sem ninguém dizer nada, soltamos estupefatos nossas mãos e cada um começou a repetir seu gesto inaugural de plantar palavras. Meu avô era um crente. Ele acreditava que as palavras possuíam o mágico poder de fazer ressuscitar. Mas ele nunca mais foi a igreja. Precisava?
Ainda hoje gosto de voltar lá e rever seu canteiro de fertilidades. Reza a lenda local, talvez iniciada pelo próprio bisavô, que daquela horta nasceu Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A palavra oculta

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Meu bisavô era um sujeito cheio de manias. Morava numa cidadezinha do interior das Gerais. A vida naquela época passava devagar. Um dia poderia ter umas 48, 50 horas, sem nenhum exagero. Acordava-se, tomava-se café com leite e besuntava-se de manteiga amarelinha no pão feito de véspera. Na roça o galo dava o tom do despertar. Aquilo era dia para nunca mais se acabar. Às vezes tinha broa de milho e a festa quase se completava.
Ele ficou viúvo muito cedo. Mais cedo do que o despertar do galo. Dela não tenho muitas notícias. Foi coisa assim: chovia fininho, a serração baixava no taquaral sem dar sinais de sol. Névoa sem vento custa deixar saudades. Ali ela chega de mansinho e não vai embora nem depois que a carroça de leite passava. E passava cedinho. As vacas e os galos possuem esta mania de despertador. Neurose rural, brincava já cedo. Pois bem, para não levar esta estória por detrás dos montes, eu dizia que a minha bisa saiu cedinho para a horta. Dizia-se lagarta. Quando ela voltava era um verde só e por detrás de seus braços, lá se avistava ela sorridente como um horizonte. Mas neste dia de chuva fina o sol não brilhou mais naquela casa. Quando ela se abaixou para arrancar rente ao chão um pé de couve, sentiu uma picada bem no pulso direito e a peçonhenta esgueirou-se em direção ao córrego. Houve gritaria, pois médico era o que não havia.
Meu bisavô, talvez por distração ou loucura, pegou um livro para ler a salvação. Achou que era um livro de medicina e curaria minha bisavó. Não teve jeito.
Daí pegou a mania. Todas as tardes ele ia para a biblioteca e ficava por horas lendo, lendo lendo. Nunca mais até o final de sua vida ele deixou este ritual. Ninguém o incomodava porque sabiam o motivo daquele enclausuramento nas palavras. Ficou mudo. Conversava só com os livros durante horas e horas a fio, diziam quem dele mais se aproximava. Virava as páginas e, dependendo do livro, soltava uma exclamação, um grito rouco, ou um suspiro.
Dele, herdei esta louca e apaixonante mania pelos livros. Apenas com uma única ressalva: meu bisavô nunca soube ler.

domingo, 6 de dezembro de 2009

GastrôVeredás

macarrao2


Queridos amigos. Vocês tem fome de que? Vocês tem sede de que?
Pensando nisso e numa deliciosa aventura gastronômica, criei um novo blog. Chama-se GastrôVeredás.
Entre outras coisas, assim escrevi lá:
Este blog é filho dileto do Veredas: Literatura e Psicanálise. Dele herdou o nome, mas como eu disse que para mim a gastronomia é uma deliciosa brincadeira, porque não afrancesar o sertão verediano dando-lhe um sotaque internacional? Mas os puristas do nosso vernáculo poderiam opor-se com veemência clamando por uma nacionalização macunaímica. A estes respondo que pretendo sim fazer uma comida internacional (Sem pedantismos, não é Julian Barnes? "O pedante na cozinha", Julian Barnes, Rocco), pois não há fronteiras entre temperos. Entre sabores, sim. É preciso que fique bem demarcado cada sabor, que fique bem demarcado cada aroma para que se possa distinguir as texturas e a leveza da consistência.(...).
Querem saber mais? Deu fome? Curiosidade pura?
Então, encontrem-me lá. veredasgastronomicas.blogspot.com
Beijos e abraços,
Carlos Eduardo



sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A origem das palavras


Pegou um pedaço de pedra e rabiscou a parede.
Pegou um lápis e rabiscou a parede.
O primeiro menino fez isso há seis mil anos atrás. Era o início da escrita cuneiforme.
O segundo menino, na minha infância.
Queria ser um artista das palavras, por isso rabisquei como entendia que meu irmão rabiscava os cadernos. Minha mãe achou engraçado eu dizer que queria ser rabisqueiro. Foi esta palavra, reza a lenda, que dizem que aquele menino inventou. Tinha então cinco, quase seis anos. Meu pai olhou sério e mandou apagar. O menino ficou triste porque havia achado bonito. Um grande ato de heroísmo, pensou. Queria fazer outros.
Achou uma máquina do tempo. Era o tempo da infância do mundo. Da escrita no mundo. Entrou numa caverna que depois saberia chamar-se Lascaux. E ali reinventou-se. Não havia nem pai nem mãe que o impedissem de nada. Sua caverna o autorizava a escrever nas paredes. Pintou bisões, corças, cavalos e ideias. Reteve as ideias num canto em especial. Chamou-as de pensamentos. E, pela primeira vez teve uma espécie de formigamento no peito. Afinal, sentia o que escrevia. Era engraçado pensar daquela maneira. Entendia pela primeira vez para que servia o seu coração. Seu pensamento era livre e voava leve como voam as nuvens. Subiu numa pedra porque a parede da sua caverna estava ficando pequena para tantas palavras-rabisco. Já não eram palavras soltas. Elas agora formavam uma história. A história da humanidade começava naquele momento a ser contada. E ele era A origem. Gostou de brincar de Gênesis. A luz oblíqua da tarde do sol penetrou até o fundo da caverna. Então, Fiat Lux! Ele ajeitou-se para escrever um pouco mais. Sorriu e escreveu seu sorriso na parede. Depois teve medo e lá estava escrito também na parede do meio. Inventou a palavra música e um grito surgiu-lhe da garganta colando-se entre colcheias na fenda da rocha. Estava sendo auto-alfabetizado. Criou o primeiro enigma para o primeiro hieróglifo, sua escrita sagrada. Não soube desvendá-lo. Mas ficou satisfeito com sua proeza de menino. Um enigma para ser desvendado pela humanidade. Para deixá-lo ainda mais intrigante, pegou um pouco de terra e esfregando com suas mãos, apagou metade dele. Pronto. Melhor do que um segredo, só a incompletude deste. Sabia que estava dando trabalho futuro para muitas pessoas. E muita dor de cabeça também. Ficou feliz em se considerar o primeiro empresário da Terra. E inventou a palavra inocência, mas para esta não conseguiu escrevê-la na parede. Escrevia sempre de forma tão leve que se apagava ao terminar de imprimí-la. O sol já havia se posto quando, quase que tateando, escreveu a palavra sono.
Quando sua mãe acordou no dia seguinte encontrou-o dormindo deitado no chão sobre um monte de folhas que ele havia arrancado de seus livros. Nas paredes estava "escrito" à sua maneira, tudo que ele havia "lido" no Tesouro da Juventude.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A palavra escrita é mágica



Toda palavra que uso para escrever é mágica. Não sei de onde me vem esta necessidade de preencher lacunas, espaços invisíveis entre meu pensamento e a ponta dos meus dedos. Não sei de onde me brotam as palavras. Simplesmente elas aparecem. Posso não gostar de uma ou outra. Tem dias que não gosto de nenhuma em especial. São as mesmas sendo outras, ou o avesso disso. Mas isto é totalmente alheio a minha vontade. Escrevo por desejo, escrevo por não saber-me de outra maneira. Sinto um afeto enorme na alma quando as palavras dançam na minha frente copulando freneticamente. Este afeto nem sempre é afetividade da maneira como estamos acostumados a descrever este fenômeno. Na maioria das vezes não é. Angústia talvez seja seu nome. Agora, após escrevê-la, tenho certeza. Mas isto não é um nome que se escreva, mas sim um nome que se sinta. Muitas vezes é impossível escrever uma palavra, por isso ela se torna mágica. Ela está ali. Bem ali defronte de nossos olhos, mas não conseguimos escrevê-la.
Sinto uma enorme nostalgia em calçar palavras desusadas. Noutro dia tropecei com uma assim. Estava passando por uma plantação de trigo, o vento começou a roçar nos vértices e descrever uma parábola para esta palavra que possuía uma cor estranha, jamais ouvida, jamais sentida em sua diminuta austeridade. Era uma palavra sem dor. Achei engraçado isso, pois até onde a minha memória possuía lembrança, as palavras mais encardidas eram aquelas entre o azul das possibilidades e o horizonte onde toda morte repousava suave. Para mim toda palavra tinha ao seu final o dom da tristeza pela partida que ela já continha em seu interior. Por isso toda palavra possuía um certo aceno, um adeus ao ser escrita. Eu era sempre aquele que ficava no cais, olhos marejados na alegria, diante da imensidão do mar que levava minha palavra para seu destino oculto.
Queria recolocar a dor em outros termos: fertilizar feridas no sentimento e ruborizar os moralistas desavisados. Deparar-me com uma palavra escrita sempre foi estar aberto ao mais e nisto também há magia.
Passei a ponta dos dedos sobre o trigo e meu coração parou congelado. Não morri, é claro, se estou a escrever, mas ler o que eu li apenas passando a ponta dos dedos como um cego faria, fez com que o tempo emudecesse entre a saudade e a esperança. Fiquei ali, de resto. Apenas aquela palavra a me fazer companhia. Isto era o perigo pressentido: depender de uma única palavra para se mover no tempo sem que o verbo se fizesse carne.
Foi assim que a palavra escrita se fez em mim. Não vi quando ela chegou ainda sonâmbula na madrugada da vida, nem de onde veio.
Do inconsciente constato que ao escrevê-la posso dizê-la de um outro lugar ainda não habitado pelo verbo. A sonoridade da palavra escrita é quando ela já não cabe no papel, transbordando-se assim para um lugar só meu, tão meu que sou capaz de tocá-la eroticamente com a ponta dos dedos, tal como um cego, já disse. Percebo que neste movimento meus olhos constantemente se arregalam para fora do Jardim.
Então, escrevo-a tatuada em meu corpo e, de uma maneira estranhamente mágica, vejo-a reaparecer como leitura nos olhos teus.


Ps: Ler ao som de Time after time de Chet Baker.

domingo, 8 de novembro de 2009

A palavra no silêncio


Estava rodeado de silêncios quando ela entrou em minha vida. Não é que estivesse só. Estava em silêncio. Talvez não soubesse muito bem a diferença entre silêncio e solidão. Só fui me dar conta quando ela surgiu em mim. Meus silêncios, se bem me lembro, sempre estiveram rodeados de palavras. Todas indizíveis naqueles momentos.
Desde cedo, aprendi com meu avô, que palavra guardada é água em nascente. Ainda não é rio, muito menos cachoeira, mas está rodeada de plantação que preserva o nascedouro de letras, estrofes, rimas ricas e ficções. Assim cresci, assim me senti até o momento em que não me sentia mais. Dava falta por mim. Foi por esta época que descobri a dimensão do silêncio. Não emudeci, muito pelo contrário. Nesta época falava mais. Dei para falar com nuvem cinza, vento no fim da tarde, galhos retorcidos, violoncelos, andorinhas em revoada, sapo martelo e grilos: estes eternos inimigos do silêncio. No silêncio estavam todas as palavras. Todas por dizer ou escrever. Era feliz em meus nascedouros. A palavra jorrava infâncias e eu era abduzido por letras extra-carloseduardianas. Ficava confortável naquela situação. Na infância da vida todas as palavras são bem vindas. O único problema é que ainda não sabemos disso. Então a gente sofre por acréscimo e os invernos tornam-se cada vez mais agudos e os outonos mais sinceros. Na lida diária, a tristeza toma um lugar muito especial quando aprendemos a dimensão da palavra amor. Quase sempre ela vem acompanhada de duas palavras: encontro e despedida. Parecem irmãs, mas só tomam a real dimensão de sua intensidade quando transversais ao amor. Na lida diária, a alegria toma um lugar muito especial quando aprendemos a dimensão da palavra amor. Quase sempre ela vem acompanhada de duas palavras: encontro e despedida. Parecem irmãs, mas só tomam a real dimensão de sua intensidade quando transversais ao amor.
Na infância era muito difícil saber quando uma frase encontrava seu crepúsculo e outra iniciava um opúsculo. Na infância tudo ainda está por nascer. Nem o silêncio é todo. Alguns ruídos extremados de ansiedade parecem querer nortear o coração, mas falseiam ainda na puberdade das palavras.
...estava rodeado de silêncios quando ela entrou em minha vida. Maduro, estava longe de antigas nascentes. Talvez nem lembrasse mais delas. Haviam ficado escorridas, cada uma com sua indizível dor pelo estuário da memória.
Habitar a palavra é habitar o seu indizível? É negociar com ela sua passagem mais delicada pelo tempo de sua morte? Tenho a suspeita de que deixar uma palavra morrer é escrevê-la. Porque viver é também morrer aos poucos já que a vida inaugura a morte. Viva, a palavra em mim habita. Morta, ela jaz no papel e já não me pertence.
Abandono palavras como um pássaro abandona seu ninho quando aprende a voar. Aprendi com meu avô a escrever palavras nos bancos das praças, nos olhos dos morcegos, no escuro da noite, antes de virar uma página, nas asas das corujas, enfim, em todos os lugares em que habitasse com meus silêncios. Só não lembrei de perguntá-lo como é que se evita a ilusão no amor. Se ele estivesse aqui eu novamente estufaria o peito, como fiz tantas vezes em criança, e perguntaria: vô, como é que se escreve uma palavra no meio do amor? Isso ele não me ensinou. Fico então achando que "nós dois somos um só". Mas o engano não cabe em meus silêncios. Então escrevo a procura da verdade. Não-toda, bem sei. O contrário seria beirar a loucura. Mas, quantas vezes na história da humanidade o amor não esteve íntimo da loucura? Escrevo. Escrevo loucamente e sorrio como os lagartos camaleônicos. Assim, as palavras me desabitam deixando-me esverdeado em meus silêncios e esperanças.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A palavra emprestada

Estava só e tomei uma palavra por empréstimo para me fazer companhia. Não lembro bem qual era. Já tinha bebido muito, mas posso garantir que não foi qualquer uma. Queria uma que fosse única, especial para me fazer companhia. Meti-a com cuidado no bolso do casaco e saí do bar em frente ao circo mambembe que horas antes eu me deliciara assistindo, e segui em direção ao hotel em que estava hospedado. Os clowns sempre me impressionaram pela sua alegria-triste: um sorriso vermelho, artificial que quase termina nas orelhas e os olhos amordaçados de tristeza. Enquanto caminhava sozinho pelas ruas daquela pequenina cidade interiorana, lembrava da minha infância rural. Naquela época as palavras ainda me duvidavam e a solidão escoltava meu espanto feliz diante das coisas simples da roça: duas andorinhas implicando com um gavião (por que elas sempre fazem isso?), as gotas de orvalho que eram como pequeninas pérolas retidas nas folhas de taioba (eu brincava de fazerem-nas escorregarem e juntava uma na outra até caírem para fora da folha), a lagarta amassada na terra pela roda do carro de boi, as avencas úmidas entre as pedras, um pé cheinho de carambola, os rastros de bosta deixados pelas vacas em direção ao pasto, as borboletas azuis e as amarelas por ali fazendo seu ninhal e sua delicada revoada, a casa de marimbondo chapéu na folha do coqueiro e muitas outras lembranças para assar no forno de lenha da casa avoenga.
Caminhava distraído em minhas recordações evocadas pelo circo quando novamente meti a mão no bolso para brincar com a palavra que havia pegado emprestada. Lembro imediatamente de ter tocado numa alta e intrépida consoante, depois numa serpente menor e, logo a seguir numa vogal pela sua maciez. Não queria machucá-la ao trocar de lugar com outra vogal ou uma consoante. Vocês sabem como as palavras são extremamente sensíveis ao menor toque em suas letras. Se retiramos uma do lugar, as palavras imediatamente são capazes de tombar desacordadas e ficar ali por uma infinidade de tempo, totalmente imprestáveis, imóveis como uma coruja até que restituamos a letra surrupiada. No entanto, existem palavras que nem precisamos tocá-las para percebermos que são inertes em sua essência. A palavra pedra, por exemplo, é uma destas palavras condenadas à imobilidade. Por si só não é nada, mas basta um Mick Jagger para você ver até aonde esta pedra é capaz de ir. A palavra solidão também parece ser possuída por uma rica força interior que nada a move, exceto se uma outra palavra vem percorrer ao seu lado em sua história.
Ainda com a mão no bolso senti a agudeza de outra letra. Uma consoante desta vez. Ereta como um eucalípto.
Outra mexida e minhas mãos tocaram noutra vogal. Era magrinha com um chapéu. Poderia bem ser um 'i'. Deixei-a quieta. Letras frágeis assim não são boas de se brincar com elas. Costumam ser irritadiças como D. Quixote. Lançam-se impetuosas como se fossem a flecha de um arco ou a própria lança do cavaleiro andante.
Mais um pouco a direita e meu indicador encontrou a aspereza de um 'r'. Não tinha a menor dúvida de que letra se tratava. Em tempos remotos já havia me deparado com sua dura aspereza e não ia ficar ali esperando ser detonado por esta letra da raiva.
Mas, de repente, corri ligeiro c'os dedos e, absorto, descobri que a palavra havia sido quebrada. Não, não era um hífem que a separava de sua outra parte, muito menos era uma palavra composta ou sequer uma expressão do tipo 'valha-me Deus!'. Percorria com os dedos a sequência das letras e não achava uma razão de ser naquela descontinuidade. Sentei triste num banco da praça e, cuidadosamente, fui retirando as letras do meu bolso, uma por uma, ou melhor, o que ainda restava delas e colocando-as sobre uma pequena mesa de cimento ao lado de uma árvore (é importante que eu dê todos estes detalhes). Ao meu último ato olhei dentro do bolso para ver, até aonde a luz me permitia, se ainda havia alguma letra esquecida por entre a costura e o forro do bolso, pois como já disse, basta uma letra esquecida para a inutilidade da palavra.
Para meu grande espanto, quando voltei meus olhos para a mesa não encontrei uma só letra. Imediatamente olhei para o chão pensando numa lufada de vento que acabara de me roçar os cílios. O chão de cimento estava limpo. Apenas algumas folhas secas ciscavam insólitas na madrugada. Estava relembrando o que fizera desde a saída do bar quando ouvi um leve barulho num galho da árvore. Virei-me imediatamente e, surpreso vi, ou melhor, li, ainda não sei bem, uma palavra se mexendo por entre os galhos. De início li trapezista, depois contorcionista e, logo a seguir, mágico. E a palavra sumiu em mim. Por inúmeras vezes retornei àquele circo na esperança de reencontrá-la. Sempre em vão.
Por isso escrevo e, a cada palavra escrita, coloco-a dentro do meu bolso para que quem sabe ela me leve até aquela outra palavra tomada por empréstimo e, agora, para sempre perdida. E a cada ato de colocar uma palavra no meu bolso, constato sem querer acreditar, que não posso carregar a palavra que não me pertence.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Chagall e as Almas Mortas de Nikolai Gogol


Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. Clarice Lispector (das vantagens de ser bobo).

Uma parte deste texto foi originalmente publicado em outro blog.

Dois autores, em duas ocasiões diferentes na última Flip citaram Almas mortas de Gogol (Editora Perspectiva), ao se referirem ao homem e suas vicissitudes na vida cotidiana. Até então, pairava sobre mim um belo e triste ensaio sobre a 'natureza humana': É isto um homem? de Primo Levi (Rocco). Um relato contundente de quem esteve em Auschwitz e sobreviveu para relatar até aonde vai a maldade humana.
Mas Gogol em seu 'poema', é assim que ironicamente o autor dá subtítulo ao seu belo romance, conduziu-me através das ambições, mentiras, sofrimentos, enganos, gula desenfreada, compra de almas mortas (que ele habilmente convencia aos proprietários a não lhe cobrar nada, pois já estavam mortas) e toda a sorte de avatares que seu ' herói' Tchítchicov vai sofrendo ao longo da vida. Um livro que fala sobre o homem russo, suas devoções, suas camaradagens, suas bebedeiras, suas comilanças, mas mais do que isso, Gogol ri de tudo; 'da idiotice que caracteriza todo o universo das almas mortas e seus congêneres vivos, da engrenagem feudal que reduz o ser humano a meras peças sem vida, do espírito corrupto dos burocratas que só pensam em ganhar dinheiro ilícito para se tornar mais um senhor de terras e servos (na Rússia, os servos eram chamados de 'almas'), da posição ridícula dos críticos de sua obra que temem a crítica avassaladora que ela traz com a sua imensa gargalhada.' "...tendo pedido o mais leve dos jantares, constante um simples leitão, despiu-se sem perda de tempo e, enrodilhando-se debaixo do cobertor, adormeceu logo, num sono forte e profundo, um sono maravilhoso como só é dado dormir àqueles felizardos que não conhecem nem as hemorróidas, nem as pulgas, nem os dotes intelectuais excessivos." O nariz, o conto 'fantástico' de Gogol me acompanha há mais de vinte anos. Agora estas Almas mortas irão perambular em meus sonhos talvez por mais outros vinte e tantos anos.
O escárnio, o deboche e o riso delibaradamente provocados em seu texto me fizeram chorar, chorar de rir, emocionar, engasgar, querer compulsivamente reler trechos e, acho que agora, repensar ainda mais longe sobre mim, sobre as minhas sobras ainda incuráveis, enfim, isto que denominam a natureza humana.
Recentemente, fui ver a exposição de Chagall no MNBA e me surpreendi com a ilustração que ele fez para Almas Mortas. Nascido na antiga União Soviética assim como Gogol, Chagall recriou com perfeição, suavidade e extrema leveza o ambiente do cocheiro beberrão e preguiçoso que acompanha seu irresistível e ganancioso amo Tchitchicov.
Em O nó górdio, meu primeiro romance, já havia dedicado um capítulo inteiro a Chagall: 'Domingo com Marc Chagall', onde Alice Rygue, a protagonista da história e sua mãe, vão assistir uma exposição do mestre russo na Alemanha onde estavam morando.
Chagall sempre me impressionou pelo seu doce lirismo ao fazer 'voar' mulheres, casais, animais, vacas, como nos ensina Clarice, através dos céus. Esta leveza do ser vem marcando fortemente minha experiência de vida, pois dá a dimensão em cores sobre as possibilidades infinitas do homem. Em cada encontro com Chagall, sem lucidez alguma e no mais profundo silêncio de mim, faço adormecer um eu indiscernível para renascer um outro por refazer. Busco nele, desde então, minha fonte inesgotável de inspiração porque os pintores também escrevem outras palavras, indizíveis, com suas tintas.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Jayme Cavalcante PAISAGENS - VERNISSAGE

Jayme Cavalcante é um dos mais importantes marinistas da atualidade.
É citado em todos os volumes do Dicionário de artes Júlio Louzada,
inclusive em catálogos especiais publicados.
É citado no Benezir, um dos mais respeitados catálogos de artes do mundo.

Conheço Jayme há muitos anos. Tenho tido o prazer e a honra de ser seu amigo. Sua obra é vasta assim como sua coleção de arte particular e os amigos que o admiram e o rodeiam. Seu generoso ateliê reflete sua personalidade que está sempre de portas abertas ao público. Sua pintura possui luz própria porque ele vem da boa tradição da pintura ao ar livre que teve em Aluizio do Valle, um dos seus professores e mestres.

O pouco que aprendi de pintura sou grato e devo a ele. Repito, sua generosidade em me ensinar as nuances do claro/escuro bem como as combinações das cores e outras técnicas me deixaram uma marca indelével na alma. A marca da sua palheta, tão repleta de cores. Cores da sua vida.

JAYME FARÁ UMA EXPOSIÇÃO DIA 05 DE NOVEMBRO, A PARTIR DAS 18:00HS NO MUSEU DO INGÁ EM NITERÓI-RJ. Rua Presidente Pedreira, 78. (tel: 21-2717.2919)

Este é um pequeno currículo de sua vida e vasta obra:

Pintor, Jayme Cavalcante nasceu a 8 de julho de 1938,

em Salvador. Um dos fundadores do Núcleo de Arte

Fluminense-NAF, em 1969, teve sua formação artística

orientada para a pintura ao ar livre, com os professores

J. Carvalho, Jair Picado e Aluízio Valle. No início da

década de 1980, exerceu a função de consultor

especializado em sistemas de apoio operacional para

conservação e restauração, nas mostras História

da Pintura Brasileira no Século XIX e Seis Décadas

de Arte Moderna na

Coleção Roberto Marinho.

Sua obra está citada em várias publicações, entre as quais

La cote de peintres, de Akoun - Paris, 1994; Artes plásticas Brasil 92,

de Júlio Louzada - SP, 1992; Dicionário de pintores do Brasil,

de João Medeiros - RJ, 1988 e Dicionário brasileiro

de artistas plásticos, de Carlos Cavalcanti - Brasília, 1973.

Além disso, a pintura de Jayme Cavalcante integra as coleções

da Câmara Municipal de Sabrosa, Portugal;

da Prefeitura Municipal de Campos do Jordão, SP.


JAYME CAVALCANTE

Enseada da Boa Viagem - Niterói - RJ


terça-feira, 20 de outubro de 2009

INHOTIM: uma viagem ao canto chão da Terra



Sempre fiquei emocionado, com o canto chão dos monges. Um canto derivado do Canto Gregoriano e também chamado de Cantus Planus. O som da Terra ou o som do universo. Forte, denso, uníssono e, ao mesmo tempo, pacificador e angustiante. Mas, o que pacifica angustia? Depende, porém o canto chão me causa isso. Esta possibilidade de estar próximo ao infinito de mim mesmo me põe diante dos meus abismos tal como os antigos pensavam sobra a Terra como sendo um disco. Após suas bordas o nada, ou pior, o vazio absoluto.
A Terra não é vazia. Ela é vazia de preenchimentos e o que temos que fazer é cultivá-la. Para isso muitas vezes temos que deixá-la em paz. Ela que sempre se virou por si só, encontrou na interferência humana seu pior algoz. O animal humano está devorando a terra que o devorará mais cedo ou mais tarde, inexoravelmente a sete palmos abaixo da superfície. Parece que ele ignora este fato de como a terra estará ardentemente seca, sem nenhum humus, sem nenhuma fertilização para, quem sabe, fazê-lo retornar melhor talvez como planta, flor ou sombra para os cansados na viagem da vida.
Mas neste fim de semana a Terra se abriu generosa para mim. Sorriso largo, mãe gentil. Terradorada, Patriamada. Fui visitar Inhotim a 60 kms de Belo Horizonte. Aqui estão algumas fotos do maior museu de Arte Contemporânea da America Latina. Algumas exposições estão em diversas galerias e outras a céu aberto. Restaurantes, comidinhas, realmente um lugar encantadoramente charmoso com jardins de Burle Marx.


Mas não só. Se não bastasse isso tudo, recentemente foi inaugurado "o som da Terra". Projetado por Doug Aitken. Trata-se de uma redoma de vidro de uns 60 metros de diâmetro, no alto de uma colina (é preciso pegar um micro ônibus para te levar até lá) e no seu centro há um buraco de mais de 200mts de profundidade por 20cm de diâmetro. Ali foram colocados inúmeros microfones que captam lá embaixo "o som da Terra" que são transmitidas para caixas de som que não aparecem. O som nunca se repete e o que se ouve é assustador e emocionante ao ponto de te deixar tonto, desnorteado. Digo que há muito tempo não sentia uma emoção tão forte assim. Talvez a última grande emoção sentida tenha sido no dia em que constatei pela primeira vez que eu não era o único ser vivo da Terra. Esta ideia de pertencimento e completude nasce quando a gente está mais distraído na alma. Você se sente extirpado da solidão e jogado num vozerio que te aquece de palavras e te faz recordar sensações que você nem sabia que existiam. Mas estavam lá. Todas, ou quase. Ao menos foi isso, se posso assim me expressar, que senti diante deste indizível chão que se abriu em mim. E esta abertura foi a descoberta de possibilidades. Possibilidade de dizer o que ninguém diz e estar feliz por isso. Feliz porque o dizer também é dor, dor de existir, mas justamente por isso, uma alegria feita de arredores, horizontes incalculáveis, intermináveis palavras. Palavras acústicas desplugadas de meio-dias e arredondadas por madrugadas. Dizer silêncios porque ali quem fala é um monge selvagem que também me habita. Feliz por escutar a mãe Terra e sentir parir outros mundos até então desabitados pelos meus olhos. Feliz por desenterrar o amor das profundezas da grama. Feliz por me desconhecer tanto e, portanto, saber surpreso que ainda há muitas outras partes de mim a serem encontradas e recontadas. Algumas no prelo, como se diz.
O que nasce daquele cantochão são uivos, sibilos, palavras atávicas, todas elas em louca genealogia, melodias estendidas preguiçosamente pelos galhos das árvores e partituras de vozes: a minha, a sua. Nossavoz. Em comunhão.
Amém.


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O nascimento de Livia

Livia nasceu da terra. Germinou ao lado de uma grande, vetusta e colonial mangueira. Ainda menina girava ao redor das folhas ao vento. Dizia ser filha deste, já que sua polinização vinha de terras longínquas. Nasceu entre gramíneas e avencas esquecidas entre os musgos ao sopé da velha árvore. Nutria-se das coisas esquecidas e dos botões ainda por fazer nascer os lírios.
Livia colecionava amizades. Adorava o sussurro do vento entoando uivos e sibilos entre os galhos quando ganhava mais força no capoeiral. Conversava com a brisa e sorria feliz para as joaninhas. Bolinha e Brotoeja eram suas favoritas. Era exímia imitadora de suas pequeninas amigas. Batia com extrema força seus pequenos braços como se fossem asas ao ponto de Brotoeja inúmeras vezes confundí-la com sua irmã mais velha. Livia subia no primeiro e mais troncudo galho da mangueira. Abria os braços em arco e conseguia ficar alguns eternos segundos no ar. Batia os braços mais rápido do que alguém que revela um segredo inconfessável. Das formigas, afetada pelo doloroso passado recente, mantinha uma distância respeitável como quem se ajoelha diante dos reis. Certa vez pousou por ali um pintassilgo em extinção. E segredou também para Livia sua rara aparição. Foi a primeira vez que Livia teve uma sensação que até então ela ainda não havia experimentado: o medo. A segunda vez em que ela teve medo... bem, daqui a pouco eu conto.
Livia se banhava de primaveras e enxugava-se em palavras que ela mesma ia inventando. Para um mundo até então sem frases, até que ela não se saía mal. Dobrava palavras complexas e rasgava outras ainda estranhas ao seu pequeno entendimento sobre as coisas terrenas.
Livia era gentil como a cantata n.140 de Bach (wachet auf = despertai). E era exatamente isso que ela dizia (claro que em bom e sonoro Livianês) para seus amigos no início de cada dia: despertai! E, assim, as gramíneas dormideiras acordavam, as formigas desentocavam, os coelhos espreguiçavam esfregando suas enormes orelhas umas nas outras, os gafanhotos davam enormes pulos de alegria e o horizonte abria-se em novas e fervilhantes cores. O aroma do campo entrava suave pelos poros da menina e perfumava seu dia. As folhas mais baixas da mangueira traziam novas palavras escritas entre uma nervura e outra. Livia ficava na ponta dos pés e lia aquela gramática particular. Livia ficava na ponta dos pés e parecia levitar a cada nova palavra descoberta.
Mas numa certa manhã Livia acordou diferente. Chovia intransitivo. Estava ensopada, mas não só. Já havia enfrentado outros temporais e sua mãegueira sempre fora acolhedora. Algo mudara nela, mas ela não entendia ainda muito bem o que havia mudado. Parecia que chovia por dentro e, naquele dia, não houve a leveza da cantata de Bach. Ela nitidamente percebera a transformação em seu delicado corpo. Só não queria falar. Talvez por vergonha. Ou, então, talvez por não saber o que falar e nem com quem. Era íntimo, ela sabia. Mas ainda sabia pouco. Curiosa como era, quis saber mais. E aguardou ansiosamente a chuva passar. Enquanto ainda caíam algumas gotas e outras tantas folhas, percebeu que seus seios haviam crescido e que seus quadris generosamente haviam alargado. O céu abriu em azuis com nuvens ligeiras. O tempo é que passara igualmente ligeiro. E Livia, pela primeira vez teve vontade de subir no outono da mangueira para ler todas as palavras que ainda restavam escritas em suas folhas. E a cada galho um novo frisson percorria-lhe a espinha e se deleitava com as palavras ainda carregadas da efervescência adolescente.
Restava ainda uma última folha. Estava lá no alto. No mais alto daquela árvore entre os galhos mais finos que a perna do seu amigo gafanhoto. Mas Livia só havia tido medo uma única vez e não seria agora, pensou, que pararia de subir para querer saber mais e mais. E ela foi. Rastejando-se como um camaleão (esta face camaleônica ele iria desenvolver anos mais tarde), Livia foi subindo, subindo, subindo entre os galhos até que seu braço, agora já não tão pequeno, alcançou a última folha.
Então, com os olhos transbordantes, ela leu o que estava escrito: André.
E esta foi a segunda vez em que Livia teve medo.

sábado, 10 de outubro de 2009

Carta para Livia - um mês depois...

Querida Livia,
Queria te pedir para voltar, mas não tenho mais o teu endereço. Então, não tenho o destinatário. Mas ainda tenho força nas palavras e sempre terei por você, pois meu coração é um vulcão sem permissões nem volteios. Meu coração segue trilhas, veredas que é como se diz por aqui. Daquelas que Riobaldo seguia bravamente sua Diadorim. Não, não quero te ver morta ao fim da batalha. Nada de heroísmos. Só as palavras podem aqui agregar heroísmos, pois se uma morre, outra fênix vem logo em seu socorro. A morte da palavra acontece quando as pegadas não são mais visíveis na areia dos olhos. Então a palavra ensurdece num labirinto de desencontros.
Toda palavra quer partida. Toda palavra quer estar sempre se desamarrando de seu porto, ganhando oceanos mesmo que sejam bravios, mas algumas insistem em seu retorno. Toda palavra possui um deus. Um deus que a protege das demais palavras. Toda palavra é indestrutível, pois uma vez lançada ela cumprirá seu destino. Toda palavra quer copular com outra porque sozinha ela talvez não passe apenas de uma interjeição, um grito sem sujeito. Toda palavra é sagrada, mesmo aquelas que trazem vergonha e escárnio. Há um manto simbólico que as recobre com suas paternidades. Toda palavra tem sua manjedoura e uma estrela que brilha no alto do horizonte. Toda palavra quer ser feliz, mesmo em sua mais recôndita melancolia. Assim é que Clarice chama alegria-triste ao amor. Pois é, Livia, você é minha Clarice e sempre será. Um mistério a ser decifrado, uma palavra feminina por dizer: um quase-isso, quase-todo, quase-tudo. Um roçar nas franjas da felicidade, uma tangência de possibilidades infinitas. Foi isso que você despertou em mim. Toda palavra possui sua roupa de sair, seu traje de sexta à noie e seus trapos de ficar em casa. Toda palavra vomita seus excessos. Toda palavra possui uma sonoridade e uma cor. Algumas possuem um arco-íris ao seu final. Talvez teu nome seja uma destas palavras. Talvez a palavra que você me sussurrava na cama em nossas noites de paixão possuam todas as cores, todos os sons e todos os silêncios. Sim, porque teus silêncios estavam sempre rodeados de palavras. Estas indizíveis eram as mais belas, sedutoras, as mais contundentes, pois você as dizia com seu olhar dentrodomeuolhar ou, então, com o suor que transbordava do teu corpo extasiado de prazer para o meu.
Meu pensamento é feito de lembranças embebidas em vinho decantado e minhas alegrias são esperanças de um tempo entre estrelas. Você sempre foi uma estrela, agora cadente, mas ainda e sempre candente. Uma chuva de estrelas, uma chuva de palavras infindas.
Esta carta, a princípio, não teria fim, pois as palavras, todas elas dirigidas a você, não caberiam em nenhum Amazonas, mas só em certas sazonalidades consigo os meus transbordamentos. Às vezes também sou peixe, ou árvore ribeirinha, ou galho boiando ao sabor da correnteza. Tenho incertezas cultivadas nas minhas meias verdades. Outras eu crio. E mergulho ficcional com escamas.
Assim, se você ainda quiser me encontrar, te deixo uma pista:

"Nasço amanhã /
Ando onde há espaço:
-Meu tempo é quando."

Bjs,
André

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Amores efêmeros

Livia acordou mais cedo do que de costume. Talvez porque aquele dia seria um dia especial na sua vida. Ela apenas ainda não sabia disso. Estava fazendo dezessete anos e poderia ter sido apenas mais um aniversário. No colégio todos seus amigos esperavam ansiosos pela sua chegada. A pele alva revelava as sardas que formavam um belo contraste com seus negros cabelos. Seu presente de aniversário? Era dia de prova de história. Alguns apressados diriam que seria um anti-presente, afinal ninguém quer fazer prova no dia do seu aniversário. Mas, Livia queria e queria muito. Porém, só ela sabia a razão. Estava apaixonadissima pelo seu professor. Mas por nada deste mundo confessaria para ele. Livia era tímida, Livia era sua aluna e ele deveria ter no mínimo o dobro de idade dela. Fantasia de adolescente? Não, ela levava a sério aquela paixão. O que no início não passou de uma brincadeira da amiga Lucília - "te peguei olhando para o André" - foi secretamente se intensificando ardorosamente dentro do coração de Livia. Antes das aulas seu coração tremia, suava frio, mas dava um jeito melhor no cabelo, pintava um pouco mais os olhos, acentuava um brilho ao batom e cruzava a perna sob a saia plissada do uniforme diante de um professor que até então mostrava-se impassível diante de sua aluna.
A prova chegou e André, o professor de história, ficou sabendo da coincidência das datas. Livia estava linda nos seus dezessete anos. Corpo feito, olhos intensos, lânguidos e mãos ainda virgens para o amor. Sim, porque é preciso que as mãos se desunam umas das outras e abracem um corpo para se encontrarem em outros lugares, até então, impensáveis.
Livia entregou a prova e André lhe entregou um pequeno pedaço de papel. Tudo feito com muita sutileza que nem uma câmera de vigilância notaria. Ajeitou a blusa e enfiou o papel dentro do sutiã. Correu para o banheiro e leu: "Preciso muito conversar com você. Me ligue depois das 14:00hs, André". Deixou o número do celular, mas ela já sabia, aliás, apaixonada que era, sabia tudo sobre ele. Ele é que sabia tão pouco sobre ela...
14:00hs
- André?
- Livia?
- Claro, você não pediu pra te ligar?
- Preciso te ver, urgente.
- Eu também quero muito... e sua voz estancou embargada. Não parecia acreditar que aquilo estava acontecendo. Depois de tanto tempo esperando, desejando, sonhando com aquele momento, ele iria, enfim, se concretizar.
Ele a levou para sua casa de campo. Ele a levou também para viver a realidade do amor sonhado: por ele/por ela, em seus segredos. Ela se abriu em primaveras, ele em taças de vinho sobre seus outubros. Ela havia trazido o violão. Fez uma música para ele. Ele escreveu a letra e juntos cantaram todas as canções na invenção daquele novo amor.
Quando é que se dá conta do infinito do amor? Quando as sazonalidades já não mais existem ou quando faz muito frio e você se dá conta que ainda é verão.
Depois de dois anos morando juntos, André acordou sozinho e sozinho ficou na sua solidão sem conseguir lembrar de nenhuma música cantada por eles. Livia havia se apaixonado por um antigo colega da sua turma. Ela era dada a rompantes apaixonados: "sempre te avisei que eu era assim, portanto, não faça cara de surpresa nem de desespero e não me procure mais. Quando acabo é definitivo. Não há voltas. Fui." Estas foram as únicas palavras escritas num papel deixado sobre o teclado do seu computador. Não havia destinatário, não havia remetente.
André, agora sozinho, tomou outro gole de café e, em sua saudade triste, em seu choro incontido, ficou pensando sem entender como dois nomes podem apagar-se do mundo assim de forma tão abrupta...
Então, pegou um cd do Chico e ouviu "Mar e Lua":

Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade distante do mar
Amaram o amor serenado das noturnas praias
Levantavam as saias e se enluaravam de felicidade
Naquela cidade que não tem luar
Amavam o amor proibido, pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta grávida de lua
E outra andava nua ávida de mar...