segunda-feira, 31 de maio de 2010

Chuva fina


A manhã despertou antes de Silvia. Ela ainda estava sonolenta, enroscada na lembrança da noite anterior, quando ouviu a chuva lá fora. Suspirou fundo enroscando-se sobre si mesma chegando os joelhos em seu ventre e abraçando as pernas. Queria que fossem outras mãos a abraçá-la. Suspirou novamente e, junto com a respiração, reconheceu uma dor há muito esquecida. Aquela posição fetal, ou aninhar-se, era uma tentativa de recolher seus pedaços que haviam ficados chamuscados no incêndio de ontem. Percebia que sua pele ia descamando, soltando-se aos poucos e isso significava que ela estava muito pouco em contato consigo mesma. "Estou longe, muito longe de mim", pensou. "Pensei que andasse com minhas certezas, pensei que andasse no espelho refletido de meus amores. Mas por quanto tempo estive enganada? Como não vi quando naquela noite, debaixo daquela chuva monstruosa, meu salto quebrou e acabei achando graça? Tudo com você me era engraçado. Tudo com você era um parque de diversões. Aliás, não era justamente isso que você dizia sobre o meu corpo quando fazíamos sexo? Que ele era seu parque de diversão preferido? Como se queima em plena chuva? Que fogo era aquele fogo frio do inferno que só eu não via? Só eu estava cega. Cega de paixão. Agora esta chuva cai sobre mim. Cai onde meu corpo não está. Cai fora de mim. Cai lá fora. Cai onde não estou, pois não estou em lugar algum. Estou seca por fora, mas encharcada nos meus varais da saudade. Horizonte onde não mais te encontro. Meus olhos perderam-se no teu corpo. Quero repetir com Chico: 'Te dei meus olhos para tomares conta. Agora conta, como hei de partir?' Não, não chova mais fora de mim. Quero uma chuva torrencial, uma abundância de paixão. Nada mais de fogo de palha. Quero estar acesa quando a vida vier. Quero estar sempre no cio, esfomeada, esfogueda como sempre estive. Nada de achar razão em mim mesma. Nada de ser razoável comigo. Quero continuar me entendendo nos meus desentendimentos sobre minha alma. Quanto mais sou descontínua, quanto mais sou intervalar, mais gosto do que vejo no espelho. O desalinho do meu cabelo que você tanto implicava? Pois fique sabendo, seu puto, que é dele que mais gosto."
Silvia deu um pulo de sua cama e, mesmo estando descalça da vida, foi para a rua com o que havia sobrado dela. Não era muito, mas soube-se mais feminina do que nunca ao sentir a chuva fina escorrendo nas transparências de seu corpo. Um sorriso triste em seus olhos negros agora secava-a por dentro.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Para além da morte: a escrita



Escrever é um ato contra a morte. Morre-se um pouco a cada palavra, mas perpetua-se o que antes era o indizível. O intraduzível da vida conduz-se através da escrita para além da morte.
De outra sorte, morro por não escrever. Então, quando escrevo morro um pouco, mas quando não escrevo morro mais ainda. Não-todo, é verdade, pois não escrever é sofrimento sem retorno.
Escrever é traduzir a emoção em palavras, modificando um velho adágio de Freud. A escrita é um ponto de fuga quando a fala não dá mais conta de dizer o mundo. A escrita então vem prestar socorro ao possibilitar a criação de um outro mundo. Um mundo além do mundo. Mundo paralelo, ficcional, majestoso, fantasioso, enfim, mundo escavado na pedra (como a antiga escrita cuneiforme, daí o nome) e lapidado através de banhos de rios de insônia.
Escrever é arrancar palavras encravadas há milênios de anos no ermo de um pensamento inexistente.
Em contrapartida, ler é um ato a favor da vida. De início, "o olho tem de seguir a linha, se quiser compreender a mensagem", diz Vilém Flusser. Mas a mensagem vai além da mensagem porque o leitor acaba por continuar por outros meios o ato de escrita do autor. Assim, a escrita pré-existe ao leitor, mas, sem este, a escrita de nada adiantaria.
Escrever é cavalgar um touro selvagem à beira do abismo. Com uma pequena condição: o abismo é o Outro, teu leitor. O mesmo objeto que te causa atração (pelo fascínio do empuxo ao vazio) para a morte é o mesmo que te eterniza para além dela.
Portanto, a escrita é o vértice da vida e ao mesmo tempo o fluxo vertiginoso da morte. Fio de Ariadne que te guia pelos labirintos da vida e Minotauro que te caça implacavelmente quando não sabes a saída.
A escrita é a parte de teu corpo que ficou perdida juntamente com tua alma quando saiste do Jardim das Delícias se ele tivesse existido. A escrita descompleta o todo e surpreende a imagem indo além dela. Furando-a. A escrita descompleta o silêncio ao inaugurar um espaço de possibilidades que ainda não havia sido inventado. A escrita é um rumor que não te acalenta, ao contrário, te convoca a tudo o que é intervalar. A escrita se confunde com a respiração e, talvez, como disse M. Weber, a gente precisasse de pautas musicais para escrever. A escrita dorme cega e acorda míope. Dorme míope e acorda em outra língua. Dorme em outra língua e deságua em Mozart. A escrita subverte, transmuta, ilumina, cega, clareia e vadia como uma prostituta elegante entre uma letra e outra.
Nas margens da escrita, a palavra sofre exultante, contrita, a imundice nostálgica da terra arqueológica revirada nos subterrâneos de um livro. Há um grito de dor na escrita. De longe ouve-se este pranto-estertor que vem de outra terra. País distante onde a régua do horizonte desalinha fronteiras. Distante, longínquo como a imaginação. Quase tudo na escrita pertence a este limiar intraduzível. Quase tudo na escrita comporta um não saber, ou melhor, um saber em constante extinção. Um saber não-sabido: criação.
Escrever é um ato contra a morte. Ou, como disse João Cabral de Melo Neto: "Escrever é estar no extremo de si mesmo". Mas este extremo também não é a vida em toda sua frágil potencialidade?

quinta-feira, 13 de maio de 2010

As montanhas e os livros

Paul Cezanne, Montanha Sainte Victoire

Sempre tive um enorme fascínio pelas montanhas. Mais do que pelo mar. O horizonte do oceano acalma. Acalma e cansa. Já as montanhas não. Elas são irregulares, sestrosas, desafiadoras para serem escaladas e descobrirmos o que tem por detrás delas; talvez outras e mais outras montanhas. Quando pequeno meu coração ia aos pulos de tanta ansiedade para chegar no alto de uma montanha mesmo de algumas que já fossem naquela época, velhas conhecidas. A visão do alto, do perder-se de vista, do vento cortando o capinzal florescido de vacas, o cheiro dos estrumes, a variação dos verdes, azuis e das borboletas formavam um espetáculo inesquecível. Quando a montanha tinha árvores o desafio era então maior, porque a floresta consistia do inexpugnável, do mistério a ser desvendado, árvore por árvore e atalhos vencidos. Decifrar como quem decifra os mais antigos hieróglifos da humanidade perdida sob um sítio arqueológico.
A variação das cores da mata, do mato, dos arbustos, das árvores que dependem de cada estação do ano, de cada hora do dia, de cada distância ou ângulo pelo qual se divisa seus entornos, seus contornos. Flores, densidades, orvalhos, sustos, manhãs, sulcos, ondulações, cavidades, espantos, seivas, rastros de animais, pegadas indiscerníveis, vento pegando de surpresa as folhas ao cair da tarde. Diante das montanhas sempre fui um Quixote. Sempre amei minhas loucas paixões, meus amores em desvario por elas. Sedento, galgava suas entranhas e gozava exausto em seus cumes.
Tudo diante delas compõe um mundo de mistério e descobertas: barulhos, grilos, passarinhos, frestas de luz, olhares perplexos para o azul do céu por entre as folhas das copas altas, pequenos riachos escorrendo por entre as pernas sulcadas após um temporal, árvores rangendo dolorosas seus caules, suas enervaduras, suas rancorosidades curvadas, suas copas a nos deitar sombras de Goya.
A lama por entre os dedos vadios dos pés, o capim a nos cortar ardido e fininho a pele, o suor descendo salgado pelo rosto do menino nas íngremes subidas e o cheiro, ah, principalmente o cheiro do capim virgem, colonial e sem barroquismos.
Quanto ainda teria a dizer sobre as montanhas, mas elas são muito maiores do que minhas palavras.
Assim, o que penso e sinto pelas montanhas é tão vasto que não caberia em todos os livros. Porém, tudo quanto penso, sinto e me aventuro pelas montanhas é fruto da mesma raiz que produz esta vertigem apaixonada que me faz curvar emocionado sobre os livros.

domingo, 9 de maio de 2010

Era uma vez...

Christian Northeast

Era uma vez um menino que gostava muito de ler. Era uma vez uma criança fascinada por monstros, dragões, fadas e reinos encantados. Gostava de aventuras como todo menino. Gostava de magia e fantasias com bichos de outro mundo como só sua imaginação permitia.
Tudo isso ele ia descobrindo a cada livro que lia. Não aos poucos, porque lia muito. Sem parar. Lia tanto que já não sabia mais se era ainda uma criança ou havia se transformado num personagem de um dos seus livros. Ele tinha muitos, muitos livros. O que mais gostava era "As aventuras do pé do dragão" que contava a história de um dragão que tinha medo de cortar as unhas. Creio que como todo menino, e este da nossa história não era diferente, tinha medo de cortar as unhas.
Pois assim também era com o "pé do dragão". Pois ele sempre fugia quando sua mãe vinha com uns alicates enormes feitos por dentes de tubarão afiados no alto da rocha mais escarpada do mundo no topo da montanha vermelha que cospia fogo. O pobre dragão morria de medo daqueles alicates enormes e, amedrontado, perguntava-se da real necessidade de suas garras serem cortadas. Eram ineficazes todos seus histéricos borrões de fumaça ainda sem tanto fogo liberados de seu enorme nariz. Não surtia nenhum efeito diante de sua impassível mãe-alicate.
Sempre que Reinaldo, este era o nome do menino que tinha adoração por livros e dragões, se via sentado em cima do pé do dragão como que a protegê-lo dos "alicates cortantes" dizia uma palavra mágica que estava escrita na unha do próprio dragão para protegê-lo. Era sua senha para entrar e sair a salvo do livro. Sempre que lia esta história Reinaldo se transportava para dentro do livro como que a temer aquilo que o excitava tanto. Queria se proteger, por isso entrava dentro do livro. Queria proteger seu adorável dragão de estimação, por isso mergulhava por entre aquelas páginas encantadas.
Mas certo dia Reinaldo não voltou mais. Seus pais e irmãos procuraram por ele em toda parte, mas não encontraram nenhum sinal. Quer dizer, ao lado e dentro de seu livro preferido, encontraram apenas alguns pedaços de unha gigantescos, algumas letras e palavras sem nexo para o mundo adulto e uma mecha de cabelo chamuscado que parecia ser do Reinaldo. Será que ele andava brincando com fogo?
Seria então verdade que a leitura é um fogo insaciável? Dragões mastigam crianças e literaturas?
Ou pior. E se as unhas começassem a roer os meninos?

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Noite estrelada


E era só escurecer que Ludmila corria para a janela para ver as estrelas passarem. Desde pequena tinha esta mania. Bem, dizer desde pequena não é lá verdade porque Lud ainda tem seis anos. Mas ela já se considera uma adulta em ver estrelas. Diz conhecer as constelações tão bem quanto as nuvens e quando crescer quer ser olhadora de estrelas.
Quando perguntada porque ela quer ter esta profissão tão 'interessante' ela corre em dizer que alguém tem que cuidar das estrelas para que elas não se percam na imensidão do céu. Será a guardiã das estrelas. "Já chega de dia quando não as vejo e não sei bem o que estão fazendo ou aprontando", diz Lud cheia de si, olhinhos muito vivos, maria chiquinha com prendedores de estrelas prateadas, sempre alegre em seu vestido branco salpicado de estrelinhas azuis e vermelhas.
Lud tinha o privilégio de morar no interior o que propiciava que seus olhinhos estivessem sempre despidos da claridade artificial da civilização. Mas eis que seu pai todo orgulhoso anuncia uma chance em sua carreira e na semana seguinte já estavam de mudança para a cidade grande.
Desde este dia Lud ganhou um quarto em seu apartamento de frente para o viaduto principal. Era tanta luz que a menina não via mais as estrelas. Seus olhos ficaram secos de tristeza. Não, não havia lugar para choro. Choro, ela aprendera que era de emoção ao descobrir uma nova estrela. Agora suas noites haviam perdido o sentido do brilho incerto das estrelas entre as nuvens. Se a lua cheia já era um perigo para sua observação, os faróis eram o caos. Deu para ficar amuada, irritada, mas não dizia o motivo daquele enclausuramento. Nunca havia pensado numa vida sem estrelas e via seu futuro se descortinar num breu ofuscante.
Nunca mais quis usar o vestido de estrelinhas. Nunca mais abriu as janelas. Trocou as estrelas pelos livros. Desandou a ler freneticamente tudo que encontrava pela frente para tentar entender a vida sem uma janela para as estrelas. Era um refúgio sem volta. A cada página lida percebia outros mundos, seres fantásticos nunca imaginados em seu céu agora sem estrelas. Daí pegou a mania de quando estava lendo apertar os olhinhos e das letras fazer suas estrelas. Descobriu que as letras cintilavam como as estrelas em suas noites de sonho.
Assim Lud foi montando uma gigantesca biblioteca: sua infinita galáxia em que ela lia em órbita espiralar cada letra e a transformava numa estrela.
Passados muitos anos ouvi dizer que agora ela cria suas próprias estrelas.
Parece que virou escritora.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Tinta usada



Vincent van Gogh

Estava em meu ateliê quando dei por falta do azul ultramarino. Estava terminando de pintar uma marinha e era a cor que faltava para que o mar se perdesse na imensidão do céu. Tudo já estava lá. Uma praia deserta de areia manchada de algas estremecidas pelo vento, algumas rochas em formato quase-humano se não fosse por cantarem o som do vento entre suas pedras, algumas palmeiras debruçadas em arco-dolorido sobre um fundo verde-esfumaçado, um Guanabara e um Laser dourando as velas brancas, algumas nuvens sujas-de-rosa-carvão e um pintor aturdido sem a sua tinta.
Estava muito em meu ateliê e quando isto acontecia o mundo lá fora não existia. Como era possível a vida vazia de fora com a vida incandescente de dentro?
Lembrei do filme "O segredo dos seus olhos" quando Benjamim Espósito, o protagonista, pergunta a Morales, o marido que teve a esposa assassinada:"como é possível viver uma vida vazia? Como se faz para conseguir viver uma vida sem vida?"
O tema central de "O segredo dos seus olhos" é a paixão. "Tudo na vida muda", diz Pablo Sandoval, o fascinante amigo bêbado, "mas uma única coisa não muda: a paixão. Podemos mudar de roupa, de Deus, de qualquer outra coisa. Mas a paixão, esta não muda."
Por isso a vida foi dando lugar a uma dor sem nome. Queria dizer melancolia, mas mesmo esta palavra tão presente naquela ocasião não foi possível de ser pronunciada. Tive vontade de gritar um outro nome qualquer, mesmo que sofrido, mas a acústica em meu ateliê faria retornar para mim outras tintas que agora não me caberiam mais.
Sabia que mais cedo ou mais tarde a evanescência daquele momento me liquefazeria para sempre. Sabia, aliás, sempre soube que a luminosidade do outono precisava ser dita através de uma palavra ainda não inventada. Uma palavra que atravessasse silêncios e cores. Uma palavra que, uma vez usada, não retornasse mais. Não, não era uma palavra bumerangue tanta vezes usada por mim. Desta vez tinha que ser uma palavra-outono, uma palavra que me fizesse fechar as janelas e as portas em meu ateliê, que me fizesse apagar a luz e ainda assim terminasse o quadro. Um quadro é como uma palavra na ficção. Ele se inscreve em mim a partir de sua luz própria. Ele se pinta em minhas veias. Nestas horas não sei quando termina o quadro e onde se inicia a conjunção entre meus dedos e o pincel. Tudo em mim é muito. Tudo em mim é cor e palavra sem forma. Tudo em mim é outono.
Paixão é a cor da palavra que sopra sobre os verdes dobrando as palmeiras. De qualquer maneira, meu quadro ficará inaugurado sem margens. Talvez seja melhor assim. E a tinta usada da luminosidade deverá atravessar todo o outono. Mas eu seria incapaz de atravessar (meus) silêncios sem o azul a me entardecer.