sábado, 17 de novembro de 2012

A mãe transbordante


Lelê estava debruçada sobre as margens do córrego ligeiro. Vez por outra, quando a luz do sol incidia sobre um caco de vidro azul no fundo do riacho, ela conseguia ver seu rosto. Era só de relance. Uma espécie de iluminação momentânea que Lelê sentia quando se via ali no fundo do rio que a arrastava. Ficava por horas assim até que o formigamento nos braços a obrigasse a vir a decúbito dorsal. Então, barriga pra cima e cabelos escorrendo dentro do rio, encharcava-se no fixar o sol. Os olhos doíam de tanto amarelar. Queria se ver refletida no fundo do riacho. Queria se ver nos contornos do sol. Desde que sua mãe morrera com doença que vai secando os interiores, ela pegara esta mania. Esquisitice e espécie de doideira, diziam. 
Acordava, Seu Antonio penteava seus longos cabelos, difíceis de desembaraçar, tomava um mísero café com um pedaço de bolo envelhecido, deixava uma parte para o irmão menor e, sem dizer palavra, rumava invisível para a curva do rio que cabia justo seu corpo. Era ali a esperança de que a vida não corresse tanto. Era ali a esperança que sua mãe pudesse retornar numa enchente. Foi numa noite de enchente que o rio a levou. Embrulharam seu corpo num lençol empoeirado, colocaram-no próximo ao rio para prepararem a cova quando foram surpreendidos por uma tromba d'água que levou o corpo bem diante do olhar dos poucos habitantes do lugarejo. Comida por bicho ou enroscada em mato prenhe, o certo é que nunca mais descobriram o corpo de Lindalva. Lelê ficou ali esperando a mãe. Talvez seu retorno por algum outro capricho da natureza. Disso só ela sabia, pois não falava com ninguém o motivo de tão estranho comportamento.
E foi o que aconteceu. Numa tarde nebulosa, cinzenta-fria, veio o que todos sabiam que um dia viria. Outra tromba d'água. Seu Antonio correu muito porque sabia que a filha estava aprumada na beira rio. Chegou a tempo de ver o vestido branco de flores amarelas-encardidas, descendo rio afora. Gritou caído no desespero. Que o rio tivesse feito isso com sua Lindalva que já estava dormindo sem esperanças era uma coisa, mas com sua filhinha, isso não podia acontecer. Gritou uma, duas, mil vezes gritou implorando aos deuses que tivessem pena dele. 
Por detrás de uma moita, nua, Lelê observava a dor de seu pai. Não tinha frio nem medo. Olhos arregalados, fixos a mirar o vazio absoluto. Antes, havia nela uma espécie de excitação por se fazer encontrar com sua mãe. Era crença na verdade da loucura que tomara a menina ainda muito nova. Era a dor que delirava ser uma só com sua mãe. 
Muitos juraram tê-la visto entrando e saindo do rio envolta num lençol branco. Virou caso de assombração que na roça ganha contornos ainda mais volumosos do que rio transbordante.
Seu Antonio ouvia as histórias da filha assombrada. De seus olhos brotavam duas lágrimas. Uma para Lindalva, outra para Lelê. Pouco a pouco seus olhos secaram e precisava ir até a margem do riacho para umedecer a vista cansada da vida. Foi num destes dias em que ele, com seus próprios olhos a avistou. Avistou sua Lelezinha. Mas já não a reconhecia no sorriso debochado, irônico, os cabelos feito medusa, ainda mais maltratada pela vida. Se alimentava de quê? Como se escondia do frio e dos animais selvagens? 
Com o amor de sempre, Seu Antonio tomou sua filha pelos braços e a reconduziu para a casa. Sua tia deu-lhe banho, roupa limpa e uma sopa dos restos. Seu irmão, agora já quase um homem, tentou puxar conversa, mas não encontrava retorno em suas próprias palavras.
Uma alegria triste tomou conta da casa. A espera pelo reencontro ao menos mantinha acesa a esperança do pai. Mas já não havia mais pelo que esperar. Então, o que esperar da vida? Cuidar do que sobrou? Dos restos de uma lembrança que não se apaga?
Mulher, que escondia nos olhos ainda um espanto de menina, Lelê não passava mais da porta da sala. Sempre taciturna. Sempre no fundo de si mesma,  calada no veloz do riacho que segundo se soube levou sua mãe e a voz dela. Com o passar do tempo, a semelhança entre as duas era espantosa. O que deixou de existir em uma, ressurgia na outra. 
Seu Antonio não podia ver a filha que chorava a dor de sua Lindalva. Lelê entendia muito menos aquilo, mas no fundo de seu leito, também sabia da desgraça que se abatera sobre aquela casa.
Foi quando ela decidiu sobre sua segunda morte. O rio a esperava transbordante e veloz naquela noite. Foi a última vez que ouviram no ao longe um grito seu, mas que também era a voz de sua mãe. 
     

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

João e Maria





João e Maria 

Maria deixou a alça do vestido cair revelando o ombro nu. João estava imóvel. Não seus olhos que não tiravam o olhar daquela proximidade tão distante. João era tímido. A pele de Maria convidativa. Ela deu-lhe um meio sorriso pirandelliano. Aquilo era um sinal. Havia de ser. Tomou coragem, a perna tremeu e com suas mãos de menino levantou novamente a alça sobre o ombro. Tolinho, foi o que ela disse. E, como que por um inexplicável mistério, a alça tornou a cair desta vez mostrando quase o seio. 
Naquele momento João descobriu que não era mais criança. Estava tomado por uma excitação banhada na alegria da tristeza.

Tentou rezar um pai-nosso, mas deu um branco e esqueceu o resto da oração. Deveria ter alguma coisa mais depois do “perdoa as nossas ofensas...”, mas a língua travou dentro do peito em chamas. Aproximou-se um pouco mais de Maria. A respiração dos dois embaçava a visão. O que parecia inevitável estava para acontecer. Maria, com os olhos fechados, ofereceu-lhe a boca úmida, os lábios rosados.  A outra alça caiu. Agora, apenas o decote segurava o que precisava ser feito. Suas mãos trêmulas tocaram os seios por cima do vestido. Maria não recuou. Eram macios, firmes e parecia que iam explodir dentro do vestido. João encostou sua boca no lábio inferior de Maria. Ela fechou sobre os dele. Arriscaram a falar a mesma língua. Não foi preciso traduzir, pois o que sentiam era a única e mesma coisa. Porém, para aquilo ainda não havia nome que coubesse na ardência juvenil.
 A pródiga incerteza do futuro avançava em suas direções...

sábado, 3 de novembro de 2012

A sombra


                                Foto da minha sombra - EUA/2011
                                                    

A sombra

No sítio me meu avô, depois do café da manhã, eu corria para fora da casa para saber das novidades. Não passava um dia no sítio sem que houvesse uma novidade. Mas, naquela manhã ensolarada de janeiro, parecia que nada ia acontecer. Foi quando algo se moveu bem diante dos meus olhos. Fiz um pequeno movimento e ela se mexeu novamente. Assustado, quis correr, mas o troço me seguiu. Era minha sombra. Pela primeira vez dava conta da minha sombra. Pela primeira vez a novidade do sítio estava em mim mesmo. Corri para trás de uma moita e pensei: consegui enganá-la. Depois de uma eternidade, mas que no tempo-criança deve ter durado uns cinco minutos ou menos, saí devagarinho achando que havia conseguido despistá-la. Lá estava ela ainda mais forte em sua presença ameaçadora.
Sem outra alternativa que me coubesse na hora gritei entre aflito e atônito: Vô! Vôoooo! 
Como um raio, meu vô surgiu em sua costumeira calma, não sei bem de onde nem como.
- O que foi, menino?
- Não foi, vô. Ainda é.
- E o que ainda é?
E naquele instante percebi que o mal também afetava meu vô. Mas, como avisá-lo sem levantar suspeitas que o fizesse aterrorizar também? Lembrei da moita de capim colonial e sem dar uma palavra peguei-o pela mão e o levei para lá. E, não sem muito medo, contei-lhe o ocorrido.
Meu vô não riu. Ao contrário, muito sério disse.
- Eu também já havia reparado, mas não queria te contar nada para não te assustar.
- Quando é que o senhor viu pela primeira vez? perguntei assustado.
- Mais ou menos quando tinha a sua idade.
- E o senhor tem ela até hoje?
- Tenho.
- Mas...não lhe mete medo?
- Houve época que sim. Foi época em que eu andava sozinho. Depois, aprendi que ela era minha melhor amiga, porque aonde quer que eu fosse, ela era minha fiel companheira. Até quando eu ia dormir ela deitava-se embaixo da cama esperando o dia clarear para voltar a me fazer companhia. - Fez uma longa pausa, como que querendo me contar algo muito importante, suspirou e disse: - Desde este dia eu soube que a minha sombra revelava como eu estava. Se estava alegre ela pulava de alegria quando eu assim também fazia. Se estava triste e cabisbaixo, ela reverenciosamente, também curvava-se para coabitar o sentimento que eu estava passando. Descobri ainda que ela guardava todos os meus segredos mais íntimos do coração. Que ela é até mais fiel e amiga do que o Rex que me acompanha mataadentro quando saio para caçar. Ela é nossa relação entre nossa verdade mais íntima e o mundo exterior.
Foi quando o interrompi.
- É isso que a vó chama de alma?
Desta vez ele apenas sorriu, não deu uma palavra, passou a mão nos meus cabelos, segurou firme na minha mão e desaparecemos no dia.

sábado, 20 de outubro de 2012

Resposta ao Drummond



Não se mate

Não se mate Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

(Carlos Drummond de Andrade)


Resposta ao Carlos Drummond

Querido Drummond, não se preocupe, pois hoje não me matarei. 
O amor que se sossegue em outro lugar, pois em mim desassossega, desaloja e atordoa. 
O beijo veio num domingo sem missa e entrou no contrabando do meu coração. O amor deixou um rastro sem pistas e o grito ficou parado no ar. Não rezou: Ave, Carlos. Ficou em santo pecado. 
Não há a possibilidade do luto, nem da luta. A morte escorre, Drummond, nas melancolias e na sorte que abole o acaso. Mas, não se preocupe 
poeta, hoje não haverá morte. Pois não há uma segunda morte: a morte é um crime contra a morte. 


Não, Drummond. Os pássaros cantarão amanhã. É verdade que hoje eles adormeceram em pleno voo, mas não se preocupe porque eles resguardaram sob suas asas as palavras que não pude dizer. 


Se tivesse dito aí sim seria inevitável o manto da noite: capa negra sem rosto. Véu de foice. 


Poeta, eu te peço perdão por também ser Carlos, mas hoje não haverá a falta da vida. 


Hoje, vivo: dúvida.


Amanhã, respiro: saudade


Depois, ultimato: suspiro.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Terra imóvel



TERRA IMÓVEL

          Não há ninguém que não abandone esta vida como se tivesse acabado de entrar nela.                                                                 Epicuro  

Não lembro bem qual era o dia da semana. Na verdade tanto podia ser uma terça ou uma quarta-feira. Saber sobre o dia da semana se tornou absolutamente irrelevante diante do ocorrido. O que é a efeméride de um dia após o outro quando se perde todos os referenciais que nos davam alguma sensação de proteção e segurança?
Preciso, isso sim, dizer que era um fim de primavera do mês de novembro e que o meu relato é feito do Brasil, ou o que era o Brasil na América do Sul. É importante localizar geograficamente, pois as coisas não ficaram boas e, desde então, os referenciais daquilo que estamos acostumados a chamar de Planeta Terra, mudaram drasticamente.
Já faz muito tempo, talvez o nome nem importe muito, mas eu me chamo Davi Matheus - o que é um nome quando já não importa mais a sua identidade? Não possuo nenhuma estrela para ser seguida e nem sou o primeiro apóstolo do Novo Testamento.
Quero deixar este relato para as futuras gerações entenderem o que aconteceu sob a ótica de um cidadão comum e não sob as lentes distorcidas da imprensa manipulada, dos enlouquecidos e infinitos grupos religiosos do apocalipse que surgiram ultimamente da polícia paranóica que a todos vigia diuturnamente ou dos políticos de plantão; mestres ninjas na arte do disfarce.
Culpar Copérnico, pobre coitado, por ter descoberto que a Terra gira ou Galileu Galilei porque ela gira em torno do sol, é só a inútil tentativa de jogar uma bóia do pensamento para quem já se afogou em idéias sem nenhum valor.
Ademais, este escrito possui a imperiosa tentativa de obter lembranças, ou melhor, de fixá-las na minha própria mente de como a Terra era antes do acontecido. Quero registrar fatos que considero relevantes, minúcias que precisam ser contadas, depoimento verídico de quem sobreviveu e ainda sobrevive à mais espetacular e trágica hecatombe que a raça humana presenciou. Registrar é o meu dever antes que tudo se transforme num imenso caldo disforme, numa sopa de letras mortas imemoriais e páginas amareladas sem nenhum valor, fraternalmente coladas umas às outras.
Para que possa ser alcançável, caso alguém saiba ainda o que fazer para ter chances de sobrevida, a latitude na qual me encontro é 22º54’17.44” e a longitude, 43º07’24.76”. Só podemos, como já disse, nos localizar com alguma segurança através das antigas medições de latitude e longitude. Tudo se tornou extremamente inseguro e periculoso. Simples atos, como andar a pé ou olhar contemplativamente ao redor, tornaram-se um estorvo. Escrevo daqui onde é ou era o Brasil, América do Sul.
Este mês completa quatro anos desde que a Terra parou de girar, ou melhor, de deixar de fazer a rotação sobre seu próprio eixo. Ainda conseguimos, não sabemos como, continuar com a translação, isto é, nossa órbita em torno do sol. Mas estamos parados, imóveis como se fôssemos uma única montanha no imenso espaço sideral. 
Sendo assim, o sol não se move e, desde aquela época, a região do mundo, que era dia, continua sendo dia e a parte da Terra que era noite, mergulhou num mundo de trevas difícil de penetrar e conviver. Por sorte, ou azar, não sei bem, a linha do meridiano que passa pelo eixo setentrional do Brasil continuou com sol e toda a linha vertical para cima e para baixo no globo terrestre ficou ensolarada. Isto compreende uma grande faixa que se estende desde a parte oeste da África (Mauritânia, Senegal, Gamba, Costa do Marfim, Marrocos e, entre outos, Serra Leoa), grande parte do oceano atlântico até uma parte do Pará, Amazonas, Roraima, Amapá e Acre, e desce até parte do Chile, este último já quase totalmente na zona sombria. A faixa de sol continua sobre boa parte das Antilhas, América Central, parte do México, parte da costa oeste americana que atinge parte dos estados do Texas, Nebrasca, Dakota do Sul e do Norte até o Canadá. Os estados da Califórnia, Arizona e Colorado já estão submersos no início da faixa da ausência do sol que se prolonga pelo pacífico até a Ásia, atingindo a Coréia do Norte e do Sul, Malásia, Japão, Cingapura, Indonésia e a outrora poderosa China.
Com isso, a temperatura média anual desta parte diariamente ensolarada do planeta foi se elevando pouco a pouco até atingir um patamar impensável de 42,5 graus. Nos picos de calor, quando acontece de não chover durante muito tempo, a temperatura chega com freqüência a 45 graus e já foi registrado até 49 graus como média entre alguns meses. Nestes períodos, o ar fica pesado como uma densa e constante camada de poluição que entorpece a alma e caímos numa espécie de transe sonambúlico. As minhas lancinantes dores de cabeça são um inferno à parte neste cenário caótico e conturbado.
À direita desta faixa do atlântico, que vai incluir toda a Europa e à esquerda aqui no Brasil, do Acre, inicia-se uma grande zona de sombra como uma espécie de degradée maldito: quanto mais nos aproximamos da região da profunda noite, mais descontrolada se tornam as rebeliões populares e mais inóspitas vão se tornando estas mesmas regiões da Terra. A gélida temperatura tem devastado alguns tipos de vida da flora e da fauna. Nestas regiões de sombra a temperatura média fica entre menos 20 e 10 graus. 
Assim, o cultivo de qualquer tipo de planta, alimentícia ou não, passou a ser um problema grave que tem afetado a fome global. O gado tem minguado e o que sobrou está doente, é saqueado ou é trancafiado em fazendas confiscadas pelos governos na esperança de fazerem clones que estimulem a reprodução de carne para a população faminta. Baleias, pela escassez de comida, arremetem-se furiosas contra as praias em busca de peixes menores e acabam grotescamente encalhando nas areias. O espetáculo grotesco da retaliação com facas e facões do enorme mamífero pela população faminta, é algo que só tínhamos comparação nas antigas, e hoje já quase totalmente dizimadas, populações da África. Agora são cenas comuns em pessoas das classe média e alta que vivem à espera de um milagre. Temos que pensar que os antigos conceitos de classes baixa, média ou alta não existem mais. Talvez fosse melhor nos dividirmos em castas como na Índia. Isso subverte totalmente o conceito de relações e de democracia no ocidente, mas como já disse, conceitos como ocidente e oriente foram totalmente banidos na vida atual. 
Mais uma vez os mais ricos continuam sendo favorecidos pelo tráfico ilegal de alimentos. Verdadeiras máfias e milícias paramilitares foram se formando ao longo do planeta em defesa de projetos escusos e defesa de populações que possam pagar cada vez mais caro por comida. O ouro, assim como o petróleo que já passou a casa dos U$800 o barril, deixaram de ser referências para a economia mundial. Agora cada setor, assim se divide a Terra, por setores, possui a sua própria referência monetária de acordo com a posição, mais ou menos privilegiada que manteve quando a Terra parou sua rotação. Os antigos meios de locomoção, como os cavalos e as carroças foram reativados, pois a escassez de gasolina converteu o mundo na medida exata da sua paralisação.
Alguns indicadores servem de parâmetro e são sempre em relação aos alimentos que podem ser o gado, algum tipo de fruta, alguns grãos como a soja no Brasil, o arroz na China, ou ainda, a volta das especiarias da Índia, ou seja, cada setor avilta o preço segundo a demanda do mercado interno ou externo. Porém, como a demanda é enorme, pouco se exporta com medo de faltar no próprio país. Este procedimento por um lado resulta na aniquilação de qualquer tipo de moeda como meio de troca e, portanto, qualquer possibilidade de equivalência cambial. Por outro lado, a deterioração e a putrefação dos alimentos produzem uma toxina no ar que dá a sensação de que estamos constantemente num fétido banheiro público. Tudo cheira a ranço e falta de limpeza. A falta de higiene tem levado a população a sofrer de graves moléstias e epidemias cada vez mais alarmantes. A escassez da água é um problema de saúde pública. Os banhos são controlados e feitos uma única vez a cada quinze dias, quando isso é possível.
Os rios estão secando e a vazão da foz do rio Amazonas, para se ter um único exemplo, que no passado representava três vezes por minuto o volume de água da Baía da Guanabara, hoje, para o mesmo parâmetro, são necessários cinco dias. Os outros rios no Brasil ou pelo resto do mundo afora simplesmente tornaram-se insuficientes ou estão à mingua. 
O Pantanal já não pode ser mais assim denominado. Em alguns lugares ainda se preservam alguns charcos, mas na sua grande extensão, tornou-se pela grande quantidade de mosquitos que transmitem a febre amarela e muitas outras doenças, uma região inóspita e impenetrável. Aquilo que um dia foi um paraíso terrestre, tornou-se um lodaçal e um atoleiro para a vida. Aliás, a vida como um todo no planeta terra tem se tornado um lodaçal para a alma humana. É uma metáfora corrosiva que eu jamais gostaria de representar, mas foi nisto que nós nos tornamos.   
O que aconteceu com a Terra? É um fenômeno que todos procuram sem a menor possibilidade de explicação pela resposta. No dia do evento, o barulho foi ensurdecedor e muitos ficaram tontos e enjoados como se tivesse um enxame de abelhas zunindo sobre suas cabeças, outros morreram de acidentes de carro, trens e aviões, outros ainda de enfarto pelo susto inesperado. Eu mesmo posso dizer que foi muita sorte ter sobrevivido. 
Primeiro ouviu-se em todo o mundo uma enorme explosão, o tal do estrondo ensurdecedor que em muitos ainda fica repercutindo incessantemente dentro dos tímpanos, muitos perfurados, diga-se de passagem, e depois, o estrondo foi seguido por um barulho tão alto que mais pareciam milhões de locomotivas se arrastando nos trilhos, tentando frear ao mesmo tempo. 
A atmosfera ficou mais parecida com a lunar, como afirmaram, logo após o desastre, alguns astronautas americanos e soviéticos. A gravidade se modificou e g, medida gravitacional, já não é mais 9,8ms2. Ela está, segundo os especialistas, em torno de 5,6 ms2. Aliás, a gravidade já não obedece mais a nenhuma constante. Ela também se tornou uma variável devido à falta de rotação da Terra. Quase se pode voar, diria, mas em compensação a respiração tornou-se mais ordinária: respira-se ofegantemente.
Correr tornou-se um grande desafio e aqueles que o fazem sentem um enorme cansaço após o exercício físico. Tento me poupar fazendo o mínimo de esforço possível para não gastar a energia que ainda tenho. Por outro lado, como tudo se tornou mais leve pela modificação da força de atração da Terra, carregar certos objetos antes impensáveis, tal como uma geladeira, é como carregam uma caixa de sapatos.
Mas a comparação sobre a leveza dos corpos termina aqui. A vida não se tornou mais leve, ao contrário, dia a dia temos caminhado rumo à desertificação da raça humana. Todos os parâmetros sobre a qualidade de vida pioraram sendo que alguns de maneira drástica. Por exemplo, as escolas pararam de funcionar e o raciocínio parece que tem sido apenas um: sobreviver. Parecem ter esquecido que novos aprendizados poderiam trazer novas soluções para este novo tipo de vida. Mas não. A ganância pela luta pela sobrevivência aparelhou as pessoas apenas para o imediatismo. Ninguém mais quer pensar a médio e longo prazo. Um ano, equivale ao que era a contagem de dez ou vinte anos. Em seis meses tudo pode mudar para pior, dizem os noticiários.
Não se pode mais confiar em nenhuma informação. Todos parecem querer vigiar suas atitudes para saber se você encontrou alguma coisa para comer ou alguma vantagem na vida. Não se pode mais confiar em ninguém. Todos querem sobreviver e fazem de tudo para conseguí-lo. Estamos numa espécie de rali da vida, num salve-se quem puder.
Os hospitais estão entupidos de seres humanos com doenças que não se conhece a causa e muito menos o diagnóstico. Muitos enlouqueceram, mas como já disse, como todos os parâmetros para se pensar a normalidade já não mais existem. Inúmeros medicamentos são usados indiscriminadamente para qualquer um devido à escassez de matéria prima para voltar a produzi-los em larga escala.
Aliás, tudo que um dia se conheceu como linha de produção tornou-se obsoleto. Quem produz teve que reinventar suas máquinas para a nova realidade e muitos dos antigos aparelhos como o barômetro e o aparelho de pressão, não possuem mais nenhuma utilidade.
As ruas viraram um verdadeiro inferno. Sair à rua tornou-se algo muito arriscado, uma loteria, pois os carros colidem em altíssima velocidade já que a resistência do ar caiu de maneira violenta. Os assaltos são inclassificáveis, pois vêm de todos os lugares quando menos se espera. 
A polícia é insuficiente para conter as desordens e os saques tornaram-se inevitáveis com fugas espetaculares em altíssima velocidade ou com enormes saltos em altura. Os delinquentes, que costumam ser os mais ousados, proporcionam momentos de cinema hollywoodiano que a televisão mostra ad nauseum, quotidianamente. Os muros de proteção das casas deixaram de ter qualquer função. Pulá-lo tornou-se brincadeira de criança.  
O meridiano de Greenwich deixou de ser a referência para medir o tempo universal e o tempo das efemérides. Portanto, as referências essenciais a respeito do dia e da noite a que estávamos tão habituados, deixaram de existir desde este fatídico e catastrófico dia.
A lua, pobre dos poetas, melancolicamente fixou-se num eterno quarto minguante com pequenas variações indefiníveis quando observada de certos pontos do nosso planeta.
Estamos, mais do que nunca à mercê do destino e, pelo que parece, diante de um apocalipse sem esperança de um Deus ao final.
Não há mais variações climáticas como as quatro estações, no máximo duas: verão escaldante e inverno seco. O vento deixou de soprar, as chuvas são ridiculamente esparsas no lado noite da Terra pela falta de evaporação e, no lado claro, há a incidência contínua e não previsível de fortes tempestades e inundações insuportáveis.
As cidades costeiras tiveram que ser evacuadas, pois o mar avançou em alguns lugares, algumas centenas de quilômetros. Aqui no Brasil a primeira cidade a ser evacuada por causa da invasão do mar foi Recife. Na Europa, quase toda a Holanda e grande parte da Inglaterra estão submersas. Veneza não existe mais assim como também grande parte da Ásia, principalmente a Indonésia, as ilhas Jacarta, Maldivas e grande parte do Japão. Nas regiões mais altas, como a cordilheira dos Andes, a vida tornou-se impossível.
O que talvez seja melhor sejam as regiões do meio, nem muito altas nem tanto ao nível do mar.
Quanto a mim, um informe: tentei sair deste lugar muitas vezes, mas não consigo. Parece que não me deixam ou não encontro forças. Agora faço um último esforço para vencer a inércia e partir rumo ao desconhecido. Quero ir para lugares arejados que ainda tenham alguma outra chance de vida, algum lugar da Terra que não esteja tão inóspito como no local onde vivo ao nível das intempéries do oceano. Uma região que não seja tão inóspita, nem tanto aos céus nem tanto a Terra. 
Quero ter forças para andar, preciso encontrar um meio de subsistir nem que para isso eu tenha que me tornar um outro, diferente de tudo aquilo que aprendi ou sonhei... 


- O que houve com ele? Cochichou o enfermeiro apontando para Davi Matheus.
-          Foi há quatro anos quando sua avó morreu. Respondeu o médico. -Eles eram muito apegados. Viviam estranhamente como numa simbiose, um para o outro, não tinham mais ninguém na família. Quando ele era criança, seus pais e sua irmã morreram num trágico acidente de carro e só ele se salvou. Eu era amigo dos seus pais. Foi horrível. A partir daí ele conseguiu levar uma vida aparentemente normal. Depois da morte da sua avó sua vida estagnou por completo, ficou taciturno e não deu mais nenhuma palavra. Está então assim imóvel há quatro anos. O único fato realmente estranho e curioso é que ele só chamava sua avó de Mãe Terra. 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012


FERNANDO
PESSOA

Poesias de
Álvaro de Campos



      PASSAGEM DAS HORAS
    Trago dentro do meu coração,
    Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
    Todos os lugares onde estive,
    Todos os portos a que cheguei,
    Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
    Ou de tombadilhos, sonhando,
    E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
    A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
    O coral das Maldivas em passagem cálida,
    Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
    Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-...
    E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
    A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
    Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
    Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
    Tempestades em torno ao Guardafui...
    E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
    E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...
    Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
    Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
    Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
    Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
    E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
    A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
    Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
    Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
    Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
    Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
    Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
    Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
    Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
    Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
    Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
    Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
    Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
    Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
    Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
    Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

    Seja o que for, era melhor não ter nascido,
    Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
    A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
    A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
    Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
    E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
    Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
    E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
    Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

    Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
    É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
    Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
    Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
    Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

    Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
    Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
    Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
    Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
    Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
    Só estou bem quando ouço música, e nem então.
    Jardins do século dezoito antes de 89,
    Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

    Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
    A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

    Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
    Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
    Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
    Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
    Minha quinta na província,
    Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
    Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
    E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
    Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

    Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
    Só humanitariamente é que se pode viver.
    Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
    Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
    Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!

    Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
    Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
    Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
    E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
    Amei e odiei como toda gente,
    Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
    E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

    Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
    Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
    Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
    Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
    Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
    Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
    A direção constantemente abandonada do nosso destino,
    A nossa incerteza pagã sem alegria,
    A nossa fraqueza cristã sem fé,
    O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
    A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
    A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...

    Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
    De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
    Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
    Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
    Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
    Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
    Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.

    Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
    Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
    Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
    Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,
    Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
    Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
    Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
    E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...
    'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
    Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
    Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
    Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
    Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
    Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
    Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

    Sentir tudo de todas as maneiras,
    Viver tudo de todos os lados,
    Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
    Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
    Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

    Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
    Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
    Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
    Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
    Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
    E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
    São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
    E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
    Porque ser inferior é diferente de ser superior,
    E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
    Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
    E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
    E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
    E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
    Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
    Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
    Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
    (No mesmo abraço comovido)
    O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
    O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
    E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
    O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
    O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
    Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.

    Beijo na boca todas as prostitutas,
    Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
    A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
    E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
    Tudo é a razão de ser da minha vida.

    Cometi todos os crimes,
    Vivi dentro de todos os crimes
    (Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
    Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
    E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

    Multipliquei-me, para me sentir,
    Para me sentir, precisei sentir tudo,
    Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
    Despi-me, entreguei-rne,
    E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

    Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
    E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

    Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
    Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
    Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
    Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
    Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
    E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
    Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

    (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
    Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
    Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
    Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
    Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
    A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
    Os seus half-holidays inesperados...
    Mary, eu sou infeliz...
    Freddie, eu sou infeliz...
    Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
    Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
    Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
    Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,
    Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
    Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

    Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
    E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
    Meu coração tribunal, meu coração mercado,
    Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
    Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
    Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
    Estalagem, calabouço número qualquer cousa
    (Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
    Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
    Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
    Meu coração postigo,
    Meu coração encomenda,
    Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
    Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
    Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

    Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
    Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
    Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
    Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
    E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

    (Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
    Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
    Com as cabeças femininas coiffées de lin
    E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
    Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
    E a fita entalada com o fechar da gaveta,
    Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
    Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...

    Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
    Definitivamente para todo o resto do Universo,
    E que os carros me passem por cima.)

    Fui para a cama com todos os sentimentos,
    Fui souteneur de todas ás emoções,
    Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
    Troquei olhares com todos os motivos de agir,
    Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
    Febre imensa das horas!
    Angústia da forja das emoções!
    Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
    A cadela a uivar de noite,
    O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
    O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
    A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
    Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
    Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
    Orgia intelectual de sentir a vida!

    Obter tudo por suficiência divina —
    As vésperas, os consentimentos, os avisos,
    As cousas belas da vida —
    O talento, a virtude, a impunidade,
    A tendência para acompanhar os outros a casa,
    A situação de passageiro,
    A conveniência em embarcar já para ter lugar,
    E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
    E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

    Poder rir, rir, rir despejadamente,
    Rir como um copo entornado,
    Absolutamente doido só por sentir,
    Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
    Ferido na boca por morder coisas,
    Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
    E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

    Sentir tudo de todas as maneiras,
    Ter todas as opiniões,
    Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
    Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
    E amar as coisas como Deus.

    Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
    Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
    Que a dor real das crianças em quem batem
    (Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
    E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
    Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
    Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
    Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
    E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
    Eu, enfim, literalmente eu,
    E eu metaforicamente também,
    Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
    As leis irrepreensíveis da Vida,
    Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
    O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
    Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
    E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
    Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
    Sem personalidade com valor declarado,
    Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
    Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
    E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria
    Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
    Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

    Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
    Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
    Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
    Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
    Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
    Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
    Coada através das árvores do jardim público,
    Eu, o que os espera a todos em casa,
    Eu, o que eles encontram na rua,
    Eu, o que eles não sabem de si próprios,
    Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
    Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
    O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
    O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
    A cicatriz do sargento mal encarado,
    O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
    A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
    E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
    Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
    Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
    Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
    O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
    O sacana do José que prometeu vir e não veio
    E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
    Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
    Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
    E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
    Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
    A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
    Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto,
    E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...
    Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
    E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
    Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
    Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
    Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
    Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
    O baú das iniciais gastas,
    A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
    Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
    E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
    A Brígida prima da minha tia,
    O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
    E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
    Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
    Caem as folhas secas no chão irregularmente,
    Mas o fato é que sempre é outono no outono,
    E o inverno vem depois fatalmente,
    há só um caminho para a vida, que é a vida...
    Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
    Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
    E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
    Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

    Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
    E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
    Não me subordino senão por atavisnio,
    E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

    Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades
    Acessíveis à imaginação
    Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
    Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
    Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

    No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
    Vou ao lado dela sem ela saber.
    No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
    Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
    Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
    Não há modo de eu não estar em toda a parte.
    O meu privilégio é tudo
    (Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

    Assisto a tudo e definitivamente.
    Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
    Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
    Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
    Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
    Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

    Fui educado pela Imaginação,
    Viajei pela mão dela sempre,
    Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
    E todos os dias têm essa janela por diante,
    E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

    Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
    Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
    Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
    Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
    Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
    Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
    Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
    Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
    E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

    Ho-ho-ho-ho-ho!...
    Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
    Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
    Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
    He-la-ho-ho ... Helahoho ...

    Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
    A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
    As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
    E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

    Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
    Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
    Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
    De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
    Ho ----

    Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
    Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
    Ave, salve, viva a grande máquina universo!
    Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
    Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
    A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
    A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
    O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
    Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
    Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
    Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

    Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
    Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
    Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

    Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
    Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
    Infinito...
    Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
    Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
    E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
    Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

    Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
    Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
    Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
    Rola ...

    Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
    E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
    Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
    Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
    Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
    Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
    Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
    A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...

    Ah, não estar parado nem a andar,
    Não estar deitado nem de pé,
    Nem acordado nem a dormir,
    Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
    Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,
    Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
    Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...

    Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

    Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
    Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
    Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...

    Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
    Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
    Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
    Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
    Hup-la hup-la hup-la hup-la ...

    Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
    Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
    Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
    Clarim claro da manhã ao fundo
    Do semicírculo frio do horizonte,
    Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
    Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...

    Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
    Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...

    Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
    Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
    Tosse seca, nova do que sai de casa,
    Leve arrepio matutino na alegria de viver,
    Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
    Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
    Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
    Inevitavelmente vital,
    Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
    Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
    Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...

    Toda a madrugada é uma colina que oscila,
    ...................................................................
    ... e caminha tudo

    Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
    E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

    Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
    Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
    Do rodopio parado da minha retentiva seca,
    Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

    Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
    Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos
    Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
    Passeio lojistas "perdão" rua
    Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
    Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
    A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
    O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
    O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua

    Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
    Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
    Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
    Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
    Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
    Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
    Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
    Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
    Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
    Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
    Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
    Por todos os precipícios abaixo
    E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

    À moi, todos os objetos projéteis!
    À moi, todos os objetos direções!
    À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
    Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
    Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
    A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

    Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
    Velocidade entra por todas as idéias dentro,
    Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
    Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
    Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
    Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
    Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
    Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
    Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
    Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
    ...............................................................
    ...............................................................
    ...............................................................
    ...............................................................

    Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
    Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
    Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
    Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
    Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
    Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
    Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
    Calcar, calcar, calcar até não sentir.
    Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
    Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

    Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
    Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
    Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
    Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
    Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...

    Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...

    Álvaro de Campos, 22-5-1916

segunda-feira, 10 de setembro de 2012




  
Plantação de amanhãs

“Então a imaginação volta a ser o inseto que voa, esquecendo as distâncias, e pousa na beira do presente” Felisberto Hernández

“Afinal, em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontem ou mais amanhãs?” Mia Couto

 “Existem palavras que deveriam servir uma única vez”  F.-R. de Chateaubriand

Retomo meus amanhãs. Minhas memórias inventadas na infância. Memórias que fabrico na saudade dos dias e na felicidade dos reencontros. Reencontrar-se com o passado é fabricar amanhãs. Fábrica preciosa de palavras, letras e textos que escorrem prateados de estrelas. O hoje é apenas ponte entre passado e futuro e, por isso, deve ser construído com as mãos cheias de outros pequenos trechos da vida. Hannah Arendt sabia disso. Clarice Lispector vivenciava isso, não-sem sofrimentos e Stéphane Mallarmé jogava com seu dia quando dizia que "um lance de dados jamais abolirá o acaso". O hoje, nascimento diário, surpresa por ter acordado e saber-se vivo, precisa ser fabricado e não importa de que material você o fabrica. O que é importante é que este material seja verdadeiro, honesto para com você mesmo. Ética, dirão alguns. Trabalho árduo de lapidação com as palavras, dirão outros. Tudo estava no sítio. Tudo está sempre no mundo. É o real da vida, sua áspera dureza, dirão ainda muitos outros. Tal qual ela se nos apresenta: tudo está, mas nada garante que você não irá naufragar diante da gigantesca onda de fragilidades inaugurais. Há que se ir até lá no mundo para buscar o suprimento necessário para atravessá-la. Por isso a vida é um atravessamento: ela te atravessa e te prova – Clarice também sabia disso -, e você precisa atravessá-la. Fabricá-la.
Alguns fabricam seus dias com Pina Bausch, outros com Chet Baker, outros ainda com Baudelaire, Rimbaud, Drummond, Platão, Sócrates, Freud, Homero, Sêneca, Pessoa, o avô, Almodóvar, Van Gogh, Frida Kahlo ou Diogo Rivera, entre tantos outros. Alguém me puxa pela manga da camisa para dizer: "ei, espera aí. Eu fabrico meus dias com Einstein e relativizo tudo." Paro, atento, e sorrio um meio riso relativo. Fico feliz porque esta pessoa me retribui com a generosidade da curva do seu tempo
Seguir em seu dia acompanhado da dura leveza dos encontros é morrer um pouco. E se é feliz quando se morre um pouco. Não-todo. Porque nestas pequenas mortes você tem a possibilidade de dar lugar para renascer amanhãs.