sexta-feira, 31 de maio de 2013

Sobre o amor

Eros e Psiquê

Do que sei sobre o amor? Um nada, um grão de areia ao vento. E, no entanto, ele sempre esteve em mim desde antes de Adão e Eva. Estava lá no silêncio do nada que não havia. Pois antes de existir a forma que hoje chamam Universo, lá estava o amor. Estava no escuro do silêncio. Nas franjas do mundo por existir ele também estava. Era o gênesis do Gênesis. Estava encoberto por uma névoa-nada e nem era Eclesiastes, O-Que-Sabe. Pois o amor não era sapiência, mas também ignorância não havia. Era amor em estado puro, nascente de si próprio. O amor gerou-se como uma máquina anti-autofágica. Dele se fez a luz que banhou as sombras. Dele se fez a lua para os amantes e a cama para suas necessidades. O amor se fez de perfumes das matas e orgias das espumas alvas dos oceanos. Fez seu nome morar dentro das conchas e receber em sua cona o mel que embriagou os cantores do amor trovadoresco.
O amor inaugurou o coração dos loucos e estes deliraram por suas amadas. Veio com a força dos animais e se instalou no lado esquerdo do peito inaugurando o que hoje chamam de coração. Antes do amor este não havia. O que existia era um buraco negro que hoje ocupa os desvãos das galáxias. Estes restos foi o que nos chegou aos dias de hoje. Fragmentos de uma e história sobre a história do amor que existiu antes de toda Existência.
Esta é sua eternidade. Meu grão ao sabor do vento. Ele foi. Ele é. Ele será?

Ah, meu amor, isto só depende de nós dois...

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A valise de palavras



Gosto mais de viajar por palavras do que de trem - Manoel de Barros


Desci na estação de trem e quando dei por mim percebi que havia esquecido minha valise de palavras dentro do trem e que este partira há uma hora. Voltei correndo tentando rastrear nos trilhos o cheiro das minhas palavras. Na estação quis perguntar a um funcionário sobre o trem, mas não consegui dizer nenhuma palavra. Abria a boca, mas os sons não saíam. Peguei uma caneta e um bloco de rascunho e tentei escrever, mas também as palavras não vinham. Era um estranho embaçamento nas ideias e no sentido. Estava mesmo fora de mim. Era como se estivesse numa espécie de limbo; zona fronteiriça entre o pensamento e a vida por dizer. Eu que achei que sempre tinha tanto a dizer agora me encontrava num deserto árido e sem destino. O trem levara não só minhas palavras, mas toda a possibilidade de ser. De estar-aí-no-mundo. 
Desassossegado, percebi que sem as palavras eu me tornara frágil como um 'cão sem plumas'. Tentei uma interjeição, um grito, um 'ai', mas nada adiantava. Algumas pessoas chegavam perto de mim e pensavam que eu havia enlouquecido. Ao verem aquela cena de um homem que abria e fechava a boca desesperadamente, uns riam com escárnio enquanto outros fugiam apavorados. Eu me esforçava guturalmente. Meus lábios se mexiam, mas a voz continuava turva como quem perde repentinamente a visão com a areia que se levanta abruptamente na ventania de uma praia. 

Foi quando surgiu uma criança. Não devia ter mais do que seis anos e, vendo minha aflição, começou a me emprestar algumas palavras que não existiam. Foi assim, através da rica imaginação de uma criança, que reinventei as palavras e a vida. Afinal, as crianças não nos ensinam sobre a vida todos os dias e como sair dos trilhos? Nós é que, tristemente, as colocamos na indefectível linha reta das nossas pesadas e arcaicas valises

sábado, 25 de maio de 2013

Aula 7 - 25/05/2013 O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector




Aula 7 - 25/05/2013

O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector

"No entanto, na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. E? também, também."

C.L. A Paixão Segundo G.H. p.17/18 (Francisco Alves Editora, 1990)

"No entanto, na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então que eu tive medo e criei a terceira perna?"

Aqui entramos no misterioso e fascinante mundo infantil. Retorno necessário para um avanço definitivo? Freud acreditava que sim e Lacan o seguiu bem de perto.
O embate do sujeito com o mundo se apresenta muito cedo. Muito antes de este sujeito estar preparado ou ter as condições necessárias para re-pensar o mundo. A infância não dá muita chance ao retorno. É só quando a idade alcança o esquecimento que vem a vontade de voltar a ser criança. Quando pequenos, queremos sair daquele estágio (probatório?) e pensamos firmemente em como seria bom já termos 10, 15, 18, 21 anos.
É uma pena, mas a criança não se dá conta do que é a infância. E este atrapalhamento da fala em relação a linguagem que inaugura a vida, é o que precipita o pequeno ser em abismos que ele vai preferir recalcar no inconsciente do que viver o que ele mal sabe. Medo, vergonha, repugnância e luto são palavras freudianas (Cf: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905) para destacar o grau de desamparo (hilflösigkeit) da criança diante do mundo. Acrescento uma outra palavra bem cara aos filósofos: espanto. A criança espanta-se em regozijo e felicidade extrema com seus balbucios, suas tagarelices onomatopaicas, seus olhinhos descortinados diante do mundo. Não. Não são coisas enormes: são formigas em trilha, joaninhas, buraquinhos na tomada de luz, uma luz que brilha sobre o berço (sem nenhum misticismo, por favor. Era só o abajur mesmo.), enfim, uma infinidade de coisas que nossos olhos desacostumam com o passar do tempo. Quando vamos envelhecendo nossos olhos se embriagam de coisas grandiosas e infelizmente perdemos a capacidade de ver o que as crianças veem: o mundo com o espanto da descoberta do novo.
A infância da palavra (do Outro) muitas vezes vem traumatizar o sujeito, através de suas modulações e equívocos da linguagem e dubiedades que os significantes possuem.
Creio que se ninguém corrigisse uma criança ela se tornaria Guimarães Rosa. Mas estas são outras 'veredas'.
A criança é o sintoma de seu meio. Sintoma de seus pais.
É como criança que se finge ser Capitão Gancho, Cinderela, Peter Pan, Mônica, Cebolinha e finge também ter uma terceira perna.
Depois, por garantia ou por medo, fica-se inseguro de retirá-la porque no laboratório da vida "se acha o que se achar." O sintoma torna-se a garantia do sujeito diante do mundo. Seu passe, seu passaporte para atravessar fronteiras do desconhecido. Então, é através deste mancar, desta forma desconcertada, edipiana e deambulante de andar na vida que a criança vai percebendo a dimensão do Outro em sua ficção. A criança precisa ser forte quando ainda não o é. A criança precisa ter coragem quando ainda não a tem. Mas, mesmo assim, ela avança e rasga a cortina do passado. Deixa para trás o que ela quer esquecer (porque ela quer ser grande, não esqueçam) e depois os analistas vão se debatendo em fazer estes pequenos-grandes sujeitos rememorarem através de suas intervaladas reminiscências o paraíso perdido. Bem, não era tão paraíso assim e também não está tão perdido. Os trilhos da associação livre vão sendo abertos através das formações do inconsciente que insiste sobre o impossível de ser dito. Re-dizer o infantil. Este sim é o retorno em avanço.
A descoberta, a curiosidade sexual infantil não tem limites. Quem põe freios (ou não) são os adultos. Limites necessários...a castração por fim: condição de possibilidades.  
O gosto neurótico por se fazer perguntas também tem seu início na infância. São os porquês. Por que o sol cai no mar ou atrás daquela montanha? Por que eu nasci antes do meu irmão? Por que papai fecha a porta do quarto com a mamãe?
Por que eu criei a terceira perna? Pois as perguntas sobre o sentido da vida não param nunca: "Foi como adulto então que eu tive medo e criei a terceira perna?"
Não se tenta responder indagações assim. Para estas questões o importante é a travessia da pergunta muito mais do que a resposta.

"Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa."

A criança tem coragem ou simplesmente ainda não tem a noção do perigo? Andem para que lado for com esta pergunta, mas a questão é que não se possui todas as respostas e muito menos garantias para o fort-da, para o perder X se achar, ir embora X aparecer, presença X ausência do Outro em sua vida. Que garantia ter então quando a perna fraqueja? Criar a terceira. Responderia com satisfação G. H.
O paradoxo em questão, o conflito entre aquilo que é e o que deveria ser, está posto: "perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende."
Perder é a possibilidade de ganhar. Esta é a lógica da vida e mesmo a lógica do inconsciente. É como se o analista dissesse: 'você vai ganhar autonomia em seu bem-dizer com a condição de perder o medo de deixar de ser infantil.'
Alguns pensam que isto seria perder a criatividade. Muito pelo contrário. Tornamo-nos mais criativos quando não temos medo de experimentar nossa potencialidades. E o sujeito infantilizado é este que não quer andar na vida. "Eu quero ser presa."

"Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. E? também, também."

Por acaso, a liberdade atrapalha? Ah, os excessos, os excessos. Quando se tem todos os caminhos para seguir fica-se atrapalhado e não se consegue prosseguir por nenhum. O homem se queixa quando possui infinitas variações para escolher. Mas também se queixa se só deram um caminho sem possibilidade de escolha. Poder escolher é uma das formas mais explícitas de liberdade. Aquele que não pode escolher está alienado no desejo do Outro. E espera, como todo prisioneiro, que este Outro o liberte. Ou neuroticamente fica planejando rotas de fuga, quando muitas vezes basta saber enfrentar a vida através da ética de seu desejo. Bem, não é de todo fácil, mas é um caminho através do qual o sujeito poderá se responsabilizar pelo que diz ou faz. Porque muitas vezes é mais cômodo ser prisioneiro, e não fazer nada, do que lutar pela sua liberdade e construir seu próprio caminho.
G.H. possui esta condição ética e, apesar dos pesares, e das suas gigantescas inquietações, não ceder diante do horror que sua fantasia infantil a aprisiona: a barata.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Nu com D. Arlinda


Seu Gervásio, aos 73 anos, tinha lá sua rotina costumeira diária. Resultado do laxante da noite anterior, acordava já a passos acelerados ao encontro do alívio imediato. Depois, como também era de costume, descia as escadas de sua casa onde morava sozinho e ia para cozinha preparar seu café da manhã. Enquanto tomava seu leite quente com nescafé e comia uma fatia de pão light e queijo minas magro, Seu Gervásio ligava a televisão muito mais para não se sentir só do que para ver as notícias que eram a repetição do jornal da noite anterior. De madrugada não acontece o dia, filosofava ele. Não sabia muito bem para que  servia esta frase, mas já a usava há bastante tempo desde que sua esposa, D. Ermelinda, falecera. E lá se iam uns bons oito anos. 
A vida não tinha surpresas. Aos sábados e domingos seus 4 filhos e 9 netos se revesavam em visitas e almoços com o Vôvásio, como dizia o menorzinho de 3 anos. 
Mas naquela manhã de quarta-feira, um trivial incidente mudou os rumos da sua vida.
Depois do café e na segunda ida ao alívio imediato, Gervásio foi tomar banho. Não trancava a porta do banheiro porque não havia razão, pois morava só. Mas, cuidava para que o blindex de vidro branco fechasse hermeticamente para que não passasse nenhuma corrente de ar frio. Ao final do banho quando quis abrir a porta de vidro não conseguiu. Tentou mais uma vez com força e a porta nem se mexeu. Fez pressão, pensou. Espertamente jogou sabão, shampoo, condicionador e nada. A porta estava inabalável. Quebrar era impossível. Já não tinha tanta força para isso e, de mais a mais, poderia se cortar todo ao cair por cima dos estilhaços. 
Estava nesta situação dramática e já sentindo frio, quando a campainha da porta tocou. Lembrou que era quarta-feira, dia de D. Arlinda, sua diarista. D. Arlinda estava na casa há mais de trinta anos. Era um membro da família. Vira os filhos e netos nascerem. Lavou muita bunda suja e trocou muita fralda das crianças. Era empregada de segunda a sábado, mas com o falecimento de D. Ermelinda e a aposentadoria de Seu Gervásio, ficou combinado que ela viria as quartas-feiras e "quando precisasse". 
Ela tinha a chave da casa, mas isso foi apenas a sua sorte e o início do seu drama.
- D. Arlinda! Ô D. Arlinda!
- Estou aqui embaixo, Seu Gervásio.
- Pois eu estou aqui em cima no banheiro. 
- Ah, tudo bem. Vou aqui ajeitando a casa.
- Não, não está tudo bem.
- O Sr. está passando mal?
- Não. 
E pensou em dizer que estava nu, mas faltou-lhe pernas nas palavras. Seu Gervásio era homem correto, pudico, mania de pessoa do interior. Tinha lá seu recatos e a flacidez tornava tudo ainda mais vergonhoso.
- O Sr. está se sentindo bem? perguntou D. Arlinda.
Tomou coragem no frio que sentia e gritou:
- Nãooooooooooooooo. Por favor, venha até aqui no banheiro. 
Ouviu os passos apressados dos sapatos de salto eclodirem escada acima.
D. Arlinda deteve-se diante da porta entreaberta. 
- O que houve, Sr. Gervásio?
- A porta do box do chuveiro emperrou e estou preso aqui dentro. 
- Ai, que horror. ela gritou fininho. - O que o Sr. quer que eu faça? 
- Me dê a minha toalha porque estou com frio.
- Mas o Sr. não está nu?
- Estou, ora bolas. A Sra. já viu alguém tomar banho com roupa? Entre de costas, pegue a minha toalha pendurada no cabide e me ajude a sair daqui.
D. Arlinda não estava acostumada a uma situação destas. Já dera muito banho nos meninos, sabia o que era um corpo de menino, mas, solteirona e carola convicta que era, jamais havia visto um homem nu. 
- Estou entrando. Avisou como se ele não soubesse e esperasse por isso.
Cheio de cuidados ela entrou de costas assim como fizeram os filhos de Noé quando com um manto cobriram a nudez do pai. 
- Se a senhora não abrir os olhos não vai enxergar onde está minha toalha. 
E foi neste lance, na verdade foi apenas num ápice de segundo, que ao abrir os olhos eles se olharam através do espelho que fazia um ângulo preciso para onde estava o Seu Gervásio. E ela o viu nu. Ou melhor, eles se viram. E ao se cruzarem os olhares ela ficou tonta, cambaleou, as pernas estremeceram e o coração parecia que ia faltar descompassado que estava. Ele pressentiu e gritou:
- Num desmaia não se não a coisa vai piorar. E neste momento Seu Gervásio sentiu uma leve tumescência entre as pernas como há muito sentia. Estou vivo, pensou ligeiro. Sorriu descompassado no que a inusitada situação lhe permitia. 
E foi com o grito dele que ela se recobrou. Ainda corada, amparou-se na pia e, de costas, pegou a toalha e deu a Seu Gervásio. Ela já ia saindo quando ele falou:
- O problema ainda não está resolvido, D. Arlinda. A senhora precisa me ajudar a sair daqui. Eu já estou enrolado na toalha.
Então, num esforço supremo a porta destravou e os dois ficaram cara a cara pela primeira vez em muitos anos. Entre a névoa do banheiro sorriram. 
Naquele mesmo dia D. Arlinda voltou na sua casa só para pegar algumas roupas, outras coisas de uso pessoal e nunca mais saiu da casa de Seu Gervásio.