sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Cores do Inconsciente




As Cores do Inconsciente
Por que as cores do inconsciente? Por que um psicanalista se dedicaria a pintar quadros? Porque a vida não cabe apenas na tela imaginária da mente. É uma resposta? Não. Um percurso. Posso dizer que nasci com Van Gogh me iluminando, pois em todos cômodos de minha casa tinha a reprodução de um quadro dele. O louco e genial holandês. Aquelas cenas das telas nunca saíram da minha cabeça. Quando fui estudar psicanálise me interessei muito por sua vida e li com avidez as Cartas a Theo. Talvez a loucura, o inconsciente a céu aberto e as cores tivessem ficado em mim mais do que eu supunha. De início, o figurativo me chamou para dentro das cenas como descreve Maurice Merleau-Ponty as obras de Cézanne: o pintor chamado para dentro da paisagem. Com o psicanalista também nasceu o poeta e o escritor. Aí já estava o inconsciente transbordado para as palavras. Num determinado momento o psicanalista descobriu que o homem que o habitava precisava se iluminar. Descobriu que as palavras tinham cores e cada cor possuía uma forma, um contorno, uma densidade de massa textual diferente. Volumes, formas e cores que um dia deram-lhe medo, agora eram jogadas com impetuosidade e paixão sobre as telas. Óleo, acrílica, aquarela, carvão, lápis, tudo era amalg(a)mado para o mundo onírico. Não foi apenas uma necessidade que tomou conta da vida do psicanalista. Antes. Foi uma paixão muito mais forte que o próprio homem que o habitava. Assim como o inconsciente habitou o psicanalista, assim como os personagens habitaram o escritor, as cores do inconsciente também passaram a habitar o pintor. Esta exposição é o triunvirato artístico como resultado daquilo que não cessa de pulsar: a vida como outro modo de ver o mundo. Um mundo inacabado que ainda espera pela próxima interpretação, pela próxima palavra, pela próxima pincelada...

                                                 Carlos Eduardo Leal          Nov/2015

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O rio

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A gente caminha na vida por dois grandes motivos: o amor e o trabalho. O resto é invenção nestas Terceiras Margens da vida. Digo ainda: que amor vem e amor vai, mas o rio da vida escorre num só leito...às vezes transborda, noutras corre solto, ligeiro, testemunhando os beirais, os pássaros ariscos a bicar frutos, os jacarés escorregarem macios sumindo no lodoso do rio, a chuva tororoma inundando mananciais, os outros bichos que vem beber ou simplesmente se refrescar como o bicho homem. A vida sempre escorre e dão a este contínuo escoar o nome de tempo. O tempo voa sem asas e eu que só as tenho na imaginação, também vou esbarreando nas margens, nas pedras roliças, caçando nuvem com as mãos trêmulas de emoção.
Quando qualquer parte de mim chegar ao mar vou, num ímpeto bravio, lançar-me rio acima para desovar a experiência da descida da vida.

domingo, 7 de junho de 2015

O livro e o leitor


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Estava passeando dentro de uma livraria (coisa que faço religiosamente ou compulsivamente, dependendo da fé neurótica de cada um) quando de repente um livro soltou-se da prateleira e se jogou nos meus braços.
- Não te quero. Nem te conheço. falei com determinação.
- Por favor, leve-me contigo. suplicou o paginado.
- Diga-me uma boa razão. Apenas uma e vou contigo direto ao caixa e de lá para casa.
- Abra-me na página 386.
Aquilo me intrigou muito. Olhei para um lado e para outro. Só agora me dera conta do inusitado da situação. Jamais havia visto cena como aquela. Nem soube de um livro que se joga como um suicida da prateleira nos braços do leitor. Comecei a ficar nervoso pensando ser algum tipo de delírio meu. Certifiquei-me de que o livro ocre-azulado de capa de baixo relevo, estava realmente em minhas mãos. Deveria ter uma 600 páginas. Não gosto de contar páginas de um livro. Por respeito ao autor e pelo medo de a alma não aguentar e ler a frase final. Contenho-me neste ponto e simplesmente vou lendo. Mas este havia me intrigado.
As pessoas continuavam a circular como se nada de muito estranho não houvesse ocorrido. Olhei para o vendedor com o crachá e parecia que nem havia notado o fato.
Cuidadosamente, e agora com as mãos um poco trêmulas, fui correndo com os dedos a lombada como se pudesse adivinhar de sobressalto a página indicada: 386.
Levei o livro para um canto da livraria onde havia uma poltrona destinada a leitores de orelhas e prefácios.
Sentei e procurei como quem procura um misterioso tesouro pela tal página indicada para mim.
Li com muita atenção sem parar para respirar. Na verdade, ao final da página, meu coração disparou e o ar parecia faltar como a um asmático.
Fechei o livro e os olhos, agora úmidos, acompanharam o movimento do livro.

domingo, 31 de maio de 2015

É isto um homem? ou sobre O Sal da Terra

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É isto um homem?
Este é o título do livro de Primo Levi, mas que poderia servir como uma luva para o "Sal da Terra "(O homem é o sal da Terra) filme sobre a vida, o olhar e a fotografia de Sebastião Salgado.
Em "É isto um homem", Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, diz nas primeiras páginas que não vai narrar as atrocidades dos nazistas, mas simplesmente aquilo de que um ser humano é capaz de fazer com outro: a maldade sem fim.
O registro fotográfico de Sebastião Salgado no belo filme de Win Wenders e Juliano Ribeiro Salgado (filho de Sebastião) apoia-se na longa jornada de vida de um rapaz saído de Aimorés no Espírito Santo, a fuga para Paris em meio a ditadura e a descoberta quase ao acaso da fotografia através de uma máquina que Lélia, sua esposa, ganhou. Aos poucos Sebastião Salgado vai descobrindo o poder do registro da fotografia social com a denúncia de condições devastadoras da 'condição humana' (para retomar uma expressão de Hannah Arendt). Narrado algumas vezes pelo próprio Sebastião e noutras pelos diretores (Wenders/RibeiroSalgado) o filme mostra as tensões e conflitos, a morte e a miséria, as guerras e a fome em regiões esquecidas pelo resto do mundo. Obviamente o P&B de Salgado é maravilhoso e por vezes aplaca a dureza das imagens que fazem com que o próprio fotógrafo desabafe que muitas vezes deixou o equipamento no chão para chorar diante de tamanha brutalidade, por exemplo no genocídio na África entre os Tutsis e os Hutus com centenas de milhares de mortos despedaçados pelo chão. Pais e mães que mal tem tempo para enterrar os filhos.  Sebastião chegou a acompanhar por 2 anos os Médicos sem Fronteiras em condições severas e precárias.
 Por isto discordo do crítico de cinema José Geraldo Couto quando diz que faltou sal ao filme e dá como exemplo outro fotógrafo após tirar uma foto de uma criança e um abutre e ganhar o Pulitzer, se suicida. " Apenas a título de contraste incômodo (o sal que falta a O sal da terra), cabe lembrar, por exemplo, o destino do fotógrafo sul-africano Kevin Carter (1960-94), que ganhou o prêmio Pulitzer por uma imagem que correu o mundo: um abutre rondando uma criança famélica no Sudão. Semanas depois de conquistar repentina fama e fortuna, Carter sucumbiu a seus fantasmas e se suicidou aos 34 anos."
Era isto que ele queria para Sebastião Salgado? Que ele sucumbisse e se suicidasse? Sebastião não é Kevin Carter, Van Gogh (tão bem descrito por Antonin Artaud: Van Gogh o suicida da sociedade, com belo prefácio de Ferreira Gullar) ou o próprio Primo Levi que se suicida aos 80 anos após ter sobrevivido heroicamente a Auschwitz.
Há todo o drama do pai que se fasta por longos períodos da mulher e filhos (Juliano depois de 30 anos vai entender ao acompanhar o pai pelo mundo), o homem em crise com seu olhar pelo descaso das autoridades que poderiam alimentar, mas preferem virar as costas e deixar morrer milhares de pessoas...
Parece que os brasileiros possuem uma dificuldade enorme em reconhecer os brasileiros. O amor ao que não é nacional parece ser um mote para dificuldade de Couto em perceber que os livros de luxo feitos pelo fotógrafo não possam existir. Pergunto assustado: os livros precisam se suicidar também?
Para quem quiser tirar suas próprias conclusões recomendo vivamente o 'sal' de Salgado, O Sal da Terra. Afinal de contas, como se diz em culinária, "sal a gosto".

Carlos Eduardo Leal

terça-feira, 12 de maio de 2015

A Vertigem da Palavra

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A vertigem da palavra

Era uma vez uma palavra velha, amarrotada, gasta pelo mal uso em geral que faziam dela. Não era uma palavra mal-dita (disto ela até ficaria orgulhosa), mas antes, era uma palavra dita de qualquer maneira, sem ênfase, sem acentuação nenhuma, até sem afetação. Ela se via num estado quase-morto, quase-isto, pouco aquilo. Nas escolas não entrava mais. Nas conversas pela internet tinha sido reduzida, mutilada e só lhe restava uma espécie de interjeição gutural inexprimível.
Andava assim quase a ponto de osso, sem circunflexos, sinônimos ou mesmo uma metaforonímia que fosse. Nada aplacava sua dor de existir. Nada tirava de seu semblante uma nuvem carregada de ninguém. Havia nascido no lugar errado e na hora errada, pensava com suas letras esparsas e quase apagadas pelo tempo. Pensou que fosse uma palavra-esperanto e quis se jogar do ponto mais alto da estante. Pensou que fosse uma palavra-latim e franziu por pouco tempo as circunflexas sobrancelhas na esperança que algum filósofo ou douto empertigado quisesse fazer uso formal em algum empolado discurso.
Estava condenada à extinção, pensou mais uma vez sem pressa de concluir o que realmente era inconclusivo: uma palavra em abismo. Vertigo.
Estava lá na oitava prateleira dentro de um antigo livro que por falta de uso já não lembrava mais do título. Era o resto do resto. Lembrou que certa vez passeou durante dias na bolsa de uma mulher empertigada que parava nos cafés e fingia ler. Aquilo a aborrecia demais. Era só uma leitora fake. Tudo menos isso. Tudo menos fingir-se de letra morta. Tudo menos ser aparência de aparência. Queria a essência do texto. Queria estar numa plateia, envaidecida por circular pelos ouvidos atentos daqueles estudantes sempre ávidos de saber. Sim, tinha lá em seus recônditos suas antigas convicções narcísicas. Ainda lhe restava alguma auto-estima. Já não lembrava mais onde, mas mesmo assim o pouco que tinha permitia o não amarelar por completo de suas páginas. Mas já era um fiapo de vida. Já era um sopro rudimentar de um velho bêbado numa noite escura e fria de inverno. Já via se cobrindo com o manto negro e sufocante do corvo de Poe ou na ponta da lança ensandecida de Quixote a lhe varar as vogais sempre tão mais aveludadas que as consoantes.
Lembrou de Racine, Sófocles, Eurípedes e sua desconsolada Medeia. Nem tinha filhos para matá-los. Muito menos havia marido para feri-lo segundo a desconcertante tragédia. Sua vida havia sido um drama medíocre sem tragédias. E isto era bem pior, pensou. Não haveria ninguém para recontá-la como se faz ad nauseum com as tragédias que não cansam de renascer nos arautos dos mais jovens. A tragédia não esquece por si mesma. Ela lembra de rememorar. Como uma compulsão ela não cessa de não se inscrever.
Quis pedir ajuda a um vetusto livro bem ao lado, mas não teve mais forças. Olhou para baixo e sentiu asco de sua própria vertigem. Estava na Roda da Fortuna e a sorte escorria-lhe entre uma sílaba e outra. Não tinha pena de si mesma, mas o sentimento de desamparo era fatal.
Estava nesta vertigem de si mesma, pronta para o ato final quando um curioso e sedento menino, vindo não se sabe de onde, empurrou a enorme porta da sala e avançou feroz e sorridente em sua direção como quem acha um grande tesouro há muito procurado...

Carlos Eduardo Leal

terça-feira, 5 de maio de 2015

Clarice Lispector: o amor e a verdade inventada

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Clarice Lispector: o amor e a verdade inventada
                                                              Carlos Eduardo Leal

O inferno mesmo é o do amor. Amor é a experiência de um perigo maior – é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior.

No amor há um ponto de não-retorno. Assim como quem atravessa um grande deserto, o sujeito chega num determinado ponto em que a dimensão do inevitável emerge e não há mais como retornar para começar tudo de novo. A estrada, o percurso, as veredas e a própria vida é sempre outra. Se o caminhante quiser retornar de sua travessia do deserto de sal (como vi recentemente na tv um homem atravessar o Salar, o maior deserto de sal do mundo no altiplano da Bolívia) ele estará se condenando a morte. Só se pode continuar. Assim é também na vida e no amor. Há um ponto de não-retorno para quem inicia a jornada: só lhe resta avançar. Lacan dizia que sobre a cena da vida ele avançava. Pois não é assim também nas (in)consistências do amor? Então, se não há como retroceder o que nos resta é reinventá-lo. E esta não será nossa pior verdade? Nossa alegria banhada nas margens do pior? Este inferno, esta alegria pior. Mas o que é uma alegria pior? Como escaparmos desta dualidade, desta contradição a qual nos convida Clarice: que seja alegria e que seja pior?  
Inferno ou passagem que vira travessia: no amor a alegria pior é o confrontar-se com um ponto de não-retorno. Penso o não-retorno na literatura como um ponto epifânico e na vida como o surgimento do real no qual algo que até então sustentava e dava a garantia cotidiana e necessária se desamarra, desestabilizando o sujeito para fora de seu campo de compreensão. Qual é o ponto certo da estrutura no qual o laço de amor deveria ser um lago especular, narcísico e sem ondulações? Qual é o ponto no qual o amor fica cego ao invés de ser reflexo de reflexo dando ao sujeito esta dimensão de amor infinito como dois espelhos paralelos? Dois olhos apaixonados que se olham como narciso diante do lago a pensar ilusoriamente na eternidade que sua beleza emanava. Pobre Narciso.
É o poeta Ovídio quem nos responde: A mãe do jovem efebo ao perguntar ao oráculo se o filho teria vida longa, responde: ‘se não se conhecer’. E mais adiante uma deusa enciumada diz: “que ele ame e não possa possuir o objeto amado!” “Enquanto bebe,” prossegue Ovídio, “arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra.”(...) “Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e louvando, é a si mesmo que louva. Inspira a paixão que sente, e, ao mesmo tempo, acende e arde. Quantas vezes beijou em vão a água enganosa! Quantas vezes, para abraçar o pescoço que via, mergulhou os braços na água, sem conseguir abraçar-se! Não sabe o que vê; mas o que vê o inflama, e o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo. Afasta-te do que amas, e o verás desaparecer. Essa sombra que vês é o reflexo de tua imagem. Nada é por si mesma. Contigo, ela aparece e permanece; com tua partida desaparecerá, se tiveres a coragem de partires.”
A infinitização do olhar produz a ilusão da perfeição. Porém, “o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo” A quebra desta ilusão também desmantela o desejo e a pulsão sexual fica à deriva. Por isso Freud diz que o encontro com um objeto de amor na verdade é o reencontro dele, pois um dia em nossa idílica infância narcísica nós ilusoriamente o retivemos em nossos sonhos. E ao nos deparamos com o novo objeto amado o sentimento oceânico de amor volta a nos invadir dando-nos esta dimensão de eternidade. Pois então, como pode existir esta alegria pior no amor? Como pode existir este inferno do amor?
Com Ana, no conto Amor do livro de Clarice Lispector, Laços de Família, também houve este ponto que tenho chamado de não-retorno. Ana, protagonista do conto, era uma mulher comum com bons filhos que “cresciam, tomavam banho e exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. Como um lavrador ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas.” (...) “Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.” (...) “Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca.”
Aí está Clarice nos convidando para um ápice, um voo supremo para lá do alto nos aplicar seu golpe fatal e epifânico: o encontro com o perigo maior. E, a partir disto, para produzir uma saída: ter que se haver com uma verdade inventada. “Dias calmos, tranquilidade com os filhos, tudo passível de aperfeiçoamento; a vida podia ser feita pela mão do homem”.
Onde encontrar a imensidão destes primeiros dias tranquilos de Ana? Como encontrar com ela estes laços de família que por serem tão precavidos constrangem o entardecer? ‘a hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela’.  Teria ela na alcova do lar, neste casamento com um homem verdadeiro e filhos igualmente verdadeiros a aptidão para uma “exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável?”   
Engana-se quem lê o mundo na aparência. Debaixo do dia há muito mais da vida a ser provada como quem prova a beleza do intragável. Por debaixo da vida há um muro. Por detrás do muro há um mundo. E de fora do mundo que brota o amor que não cabe em qualquer significação. Ana não poderia saber disso. Nós, oh, pobre de nós leitores, jamais adivinharíamos aonde Clarice quer nos levar e, no entanto, quando iniciamos a sua leitura constatamos que estamos inexoravelmente numa topologia dentro/fora do mundo que é preciso lê-la com quem lê um mundo sem legendas. É como cegos que tateamos suas palavras através dos trilhos deste bonde chamado desejo. O lugar descarrilado para fora dos trilhos habituais onde a palavra acaba por se acomodar no signo. E o que é o amor senão a busca por um signo que o acalente? Que diga sim. Que diga venha que te espero e outro responda com sua chegança. Sim, o amor quer fazer signo. Uma carta que seja, mas, ah, já não se escreve mais cartas como antigamente. E isto faz-me lembrar da máxima do correio francês. Quando quem escreve esquece de colocar algo que localize corretamente o destinatário, o correio francês usa um carimbo que diz: lettre um souffrance. Uma carta à espera, em suspenso/em suspense. Uma letra que ficou sem encontrar seu amor e fazer signo. Que fosse uma palavra tola, porque as cartas de amor são assim mesmo, ridículas. Mas que chegasse ao seu destino. Edgar Allan Poe teria escrito a partir daí sua Carta Roubada? Ou esta fala dos trilhos dos significantes e já outra coisa?
 Lettre en souffrance que traduzo literalmente: cartas em sofrimento. Falta-lhes a marca final. Falta-lhes o signo do amor.
Vejam que a marca final é também a que inaugura a esperança, assim como o significante do Nome-do-Pai, desde antes, desde sempre, é quem inaugura para a criança um mundo novo e a acolhe no desamparo.
Mas, e quanto a Ana? Estaria submetida a um signo do amor? Que estranho lugar é este que desaloja o sujeito de suas mais redundantes certezas? Certezas e garantias imaginárias. Tudo arrumado. Tudo em seus devidos lugares. Nada faltando... Uma vida chata com toda certeza.
Que lugar é este para o qual Clarice nos convida e nos conduz com sua desescrita? Uma escrita para se refazer no insistente apagamento do novo sobre o antigo que reaparece como um retorno do recalcado. Reaparece de um lugar de onde nada deveria advir. Assim: lá onde isso estava deve o eu permanecer. Mas, não. O aforisma freudiano correto é: lá onde o isso estava deve o eu advir. Lá onde estava o não dito deve um novo significante ser bem-dito. No sentido do bem dizê-lo. (e não como contrário ao mal dito). Mas que lugar é este para o qual Clarice conduz nosso olhar?
O que devo olhar quando ando distraído?
Shakespeare nos adverte quando Horácio diz para Hamlet: “cuidado meu amigo, basta um cisco para turvar os olhos do espírito”. Basta uma fagulha para desalojar, tirar da loja, tirar do invólucro que garantia com segurança nossa sobrevivência. Clarice não nos adverte de nada. Nem a sua Ana. Não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura. Nem é com bons sentimentos que se faz a vida, muito menos o amor. O amor é narcísico, Freud adverte. Ele quer tudo para si. Ela é egoísta. Lacan vai além: amar é dar ao Outro aquilo que não se tem. E vai mais adiante: amar é dar ao outro sua própria castração. Freud, no Mal-Estar na Civilização nos diz que ele não pode concordar com o mandamento cristão de amor ao próximo. O que ele diz com todas as letras é que você pode amar a quem te ama, a quem do amor lhe dê reciprocidade. Mas não amar ao próximo como a ti mesmo. Só para lhes avivar a memória na concordância com esta afirmação freudiana, basta que lembremos do sujeito masoquista que vê em seu sofrimento o gozo com o qual deambula dolorosamente através dos corredores em sua vida. Amaria ao próximo como a si mesmo? Não creio ser o melhor para o outro...
Então, o que devo olhar quando ando distraído? Seria bom se com Paulo Leminski pudéssemos dizer que “distraídos venceremos”. Talvez pudesse evocar esta frase para o texto clariceano “Das vantagens de ser bobo”, mas esta é outra história.
Ana está desavisada nos dias de sua vida. No bonde sem desejo Ana sacolejava no vacilamento dos trilhos. O vento soprava “mais do que o fim da tarde, soprava o fim da hora instável.” Ao respirar fundo Ana deu ao seu rosto um ar de mulher. Há ali uma mulher, podemos afirmar. Há ali uma mulher na tranquilidade de seus dias. Olhando para sua vida sem olhar para o mundo. Mas, eis que o mundo, lá de onde ela menos esperava olhou para ela.
Maurice Merlau-Ponty, em seu livro O Olho e o Espírito nos diz que quando o artista olha uma paisagem é por que algo lá dentro daquela paisagem também olhou para ele e a única maneira de sair de lá é pintando um quadro. Ana, não é pintora. Ela é uma mulher neste momento. Que apenas caminha, mas ainda não atravessa. Ou melhor, é conduzida pelo motorneiro e pela vida, mas não as tem em suas mãos.
“Foi então que olhou para o homem parado no ponto.” E, lembro que o ‘ponto’ é uma escansão a fazer metáfora. Metáfora que remete a outra coisa. “A diferença entre ele e os outros”, continua Clarice, “ é que ele estava realmente parado”. Há aqui um congelamento da cena como se ela quisesse estancar o bonde com o que virá. Como se aquela cena contivesse o mundo e quando uma cena quer conter todo o mundo o que acontece é que você é violentamente jogado para fora dele. Para fora de suas certezas, suas garantias imaginárias, como disse anteriormente. Conter o incontornável é um risco de um perigo maior. O homem que ela viu não a via. E aqui jogo com a homofonia: ele não a via (de ver) e não havia (no sentido de existir). Como é que algo que não existia (nela, é claro) pode de uma hora para outra caber dentro de sua vida? A resultante é um transbordamento, este é o auge da epifania clariceana, o auge do contato com o real, quando um impossível na cena da vida surge e é preciso que se dê conta disto sob o perigo da crise que se abaterá para sempre. Em Laços de Família, Clarice nos diz textualmente: “Em que momento é que a mãe,  apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se bateria para sempre sobre o futuro homem.”
Lacan, em “Intervençao sobre Daniel Lagache”, um texto de seus Escritos, nos diz que “uma desestabilização imaginária, produz uma quebra no simbólico, fazendo emergir o real”. Estamos neste ponto, neste ápice da angústia por vir em Ana. 
“A diferença entre ele e os outros”, retomo Clarice, “ é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicletes...Um homem cego mascava chicletes.” Em A Paixão Segundo G.H. ela afirma: “Mas vê, meu amor, a verdade não pode ser má. A verdade é o que é.”  E o que é esta verdade? O encontro com o real, o impossível de se dizer. Mas o que acontece com Clarice? Ela vai e diz. Não o óbvio. Ela não responde ao impossível de ser dito, mas digo que ela empurra a cena da vida apara mais adiante para que o confronto com o amor se dê em sua incerteza mais radical. Que o amor lhe venha de um lugar totalmente novo. Ao se descortinar uma verdade, não há mais como escondê-la. Por isso Lacan diz que a angústia é da ordem de uma certeza. Mas, é uma certeza desacompanhada de um saber. Isto é o que desaloja o sujeito de sua garantias. Isto desassossega. Leiam Fernando Pessoa em seu Livro do Desassossego.
“Inclinada,” continua Clarice, “olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. E mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado.” É neste movimento de ir e vir, fort-da, ausência e presença, neste movimento da criança que joga o carretel para trás da cama e grita “fort” foi embora, e logo ao recolher grita exultante “da” apareceu, que o insulto à vida lhe é feito. Aí está o drama da compulsão à repetição, da pulsão de morte que só pode surgir da epiderme do real. Do insulto da compulsão á repetição que Clarice faz Ana enxergar no movimento de sorrir e deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir. Assim fazendo, produz na protagonista a desestabilização de suas certezas atávicas. Retirando-a para fora de seus dias, de seus trilhos urbanos. Demasiadamente humanos. Viria o amor de algo que desestabiliza que joga o sujeito para fora de seus dias? Não teria ele a face bondosa de um cupido com seu arco e flecha? Não estamos mais no romantismo alemão, mas se quiserem uma cena do amor, que lembremos do gozo místico de Santa Teresa de Ávila esculpida por Gian Lorenzo Bernini.  Ali há dor e prazer. Sofrimento e gozo beatífico.
Por isso quem passasse e olhasse para Ana pensariam que ela tinha ódio, mas não era. Era a outra face da moeda que vem acompanhada desta dimensão que não é feita apenas com bons sentimentos. Ser desalojada de seus dias para o imponderável exigia-lhe uma dor sem igual. Mas era inevitável que vivesse, pois agora não havia só uma mulher, mas a própria Ana que existia em sua intensidade, em sua alegria pior.
O mal estava feito. Este é o Mal-Estar do qual Freud fala no Mal-Estar na Civilização. Trata-se muito menos do social do que das apenas injunções subjetivas que atravessam a vida do sujeito e que, uma vez que aparecem surge um ponto de não-retorno. Este Mal-Estar faz com que ela seja “expulsa de seus próprios dias”. O que poderia haver de pior? Como se organizar no pensamento, para tomarmos uma expressão kantiana, se ela está exilada de seus dias?
“O que chamava de crise viera afinal.” Clarice não nos poupa de olharmos o que não deveríamos ter visto. Assim também é com G.H. e a barata. “E sua marca (a marca da crise) era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. (...)Um cego mascando chicletes mergulhara o mundo em escura sofreguidão. O cego despedaçou, estilhaçou como uma bomba fragmentária a mulher que existia e fazendo com que Ana caísse numa bondade extremamente dolorosa.
A partir de então, “ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. ...lhe haviam ferido os olhos.” “Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. (...) A vida arrepiava-a, como um frio.” (...) O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?”
Já em casa, o marido, num gesto que não lhe era natural, “segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.”
Viver é negócio muito perigoso, afirmava Guimarães Rosa e suas Veredas: travessias do sertão.
Não há amor sem que haja travessia. É preciso se haver com algo imponderável, algo que lhe retire dos eixos e provoque a certeza de estar para sempre alijado de seus dias. Um ponto de não-retorno. Assim é com G.H. diante da barata. Para sair de si e atravessar a porta da vida, é preciso nomear o inominável. Comer a barata, mastigar o nojo nominativo, o nojo  nomear os fantasmas que assolam o real do inconsciente do sujeito. Quota de gozo ou empuxo ao pior de si mesmo? Não querer saber sobre a vida é diferente de querer não sabê-la. O primeiro é uma alienação e o segundo é uma posição na qual, mesmo com o temor há que enfrentá-la.
Não há possibilidade de viver e amar senão vivendo e amando. “Para se ter o incenso,” diz G.H. “o único meio é o de queimar o incenso.”  A grande transmutação em G.H. é botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do...divino? do que é real? O divino para mim é o real.” PSGH

“ O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.” PSGH 

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Temor e Terror no Mundo Globalizado - Sobre a Banalidade do Mal


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Temor e Terror no Mundo Globalizado - Sobre a Banalidade do Mal

                                                                             Carlos Eduardo Leal

Deixai toda esperança, ó vós que entrais

                                      Dante - Inferno. Canto III
De que temos medo? De nosso corpo.
                                       J. Lacan - A Terceira

A entrada no mundo não é sem conseqüências. Parafraseando o poeta, se aquilo que herdamos de nossos pais, devemos conquistar para fazê-lo nosso, a maior herança em questão é a linguagem. E a entrada na linguagem, que é feita através de um significante que já está à espera, é da ordem do traumático. “O Espírito Santo é a entrada do significante no mundo”, ironiza Lacan.[1]  O Mal, diz Mateus, o apóstolo, não é o que entra em nossa boca mas o que sai dela. Então, é do Outro que vem o mal? Esta, me parece que seja uma posição reivindicatória, ou seja, dizer que é do Outro que vem o mal e não nos responsabilizarmos por aquilo que fazemos. O que é o mal em sua banalidade, o mal entendido e o mal-estar do sujeito no mundo? Qual é a posição ética do sujeito em relação ao seu desejo?
Que mundo é este que herdamos hoje e que pretendemos deixar para nossos descendentes?
Na ópera Orfeu e Eurídice, Esperança só irá acompanhar Orfeu até a entrada do Hades. Lá, diz o libreto escrito por Monteverdi, ele encontrará a célebre frase de Dante: ‘Deixai toda a Esperança, ó vós que entrais.’ Orfeu terá que ir por si próprio, ou melhor, na certeza que seu canto de amor irá remover todos os entraves do caminho. A Esperança não entra no inferno, assim como também não entra no céu, porque o que mais se poderia esperar para os cristãos se já encontraram Deus? A esperança está conectada aqui na terra ao campo da promessa. No inferno ela não entra e no céu não há mais o que esperar porque já se encontrou com o Deus que se esperava encontrar. Sobra para a esperança aqui na terra a dimensão de estar fadada a ser um encontro faltoso. O que faz com que surja na clínica a dimensão da dívida, do ressentimento e da culpa.
Por sua vez, Dante sabe que para encontrar Beatriz ele deverá descer até ao inferno enfrentando toda a sorte de transgressões: ‘incontinência, violência e fraude’[2] que tentarão impedi-lo de seguir adiante até encontrar sua amada. Para isso ele contará coma ajuda do poeta latino Virgílio, que será seu guia, seu senhor e seu Mestre e irá desde então representar sempre a Razão humana, que é, na concepção aristotélica adotada por Dante, condição da Virtude.
Então, é no plano da condição humana que a esperança acaba por se desfazer diante das promessas não cumpridas. E hoje sabemos através do campo da ética, o quanto a covardia moral tem tornado as relações humanas em verdadeiras banalizações do mal[3].
Foi assim que Otto Adolf Eichmann, capturado pelo Mossad, a polícia secreta de Israel, num subúrbio de Buenos Aires na noite de 11 de maio de 1960, “foi levado a julgamento na corte distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961, objeto de cinco acusações: entre outros, cometera crimes contra o povo judeu. (...) A cada uma das acusações, Eichmann declarou-se: ’Inocente, no sentido da acusação’.”[4] “Em que sentido então”, pergunta-se Hannah Arendt, ele se considerava culpado? Na longa inquirição do acusado, nem a defesa, nem a acusação, nem nenhum dos três juízes se deu ao trabalho de lhe fazer essa pergunta óbvia. (...) ‘Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, dizia Eichmann, nem um não-judeu - nunca matei um ser humano’. Segundo Hannah Arendt, só havia provas de que ele podia ser acusado de “ajudar e assistir” à aniquilação dos judeus...”[5] Ainda segundo ela, a defesa não prestou a menor atenção à teoria do próprio Eichmann, mas a acusação perdeu muito tempo num mal-sucedido esforço para provar que Eichmann, pelo menos uma vez, matara com as próprias mãos um menino judeu na Hungria.  “Será”, pergunta Arendt, “que ele teria se declarado culpado se fosse acusado de cumplicidade no assassinato?”[6]
Aí está para mim a questão principal que gostaria de debater: até que ponto estamos sendo cúmplices em relação ao terror que se instala no mundo? Qual a nossa parcela de responsabilidade sobre a banalidade do mal no mundo moderno? Será que por não matarmos com nossas próprias mãos uma pessoa poderemos ser cúmplices? No dia a dia, será que por muitas e muitas vezes não acabamos sendo cúmplices de pequenos delitos da vida cotidiana? E será que estas micro relações possuem alguma ligação com o macro social? Em que escala métrica de valores estamos vivendo para pensarmos ou talvez até nos iludirmos, com o fato de que a nossa não participação direta em algo não tem nada a ver com o que acontece, por exemplo, atualmente no Iraque, no longo conflito entre judeus e suas parcas fronteiras, ou na África aidética, ou mesmo ali ao sopé das Senzalas chamadas de “Juramento”, “Mineira”,  “Macacos”, “Vidigal”, “Rocinha”, “Alemão” e tantos outros? Onde estamos no conforto das nossas Casas Grandes entrincheirados atrás das enormes cercas elétricas e econômicas? Aqui não há segregação étnica como na Bósnia? O que é o Brasil hoje? Quem somos nós e o que queremos quando queremos nos reunir para falar dos nossos medos? Se o que temos medo é do nosso corpo, como nos diz Lacan, é porque ‘concentrada está nossa alma’ na irredutível dor do corpo em sofrimento.
Qual é a política do medo? Lacan cita Renan para dizer que a estupidez humana dá uma idéia do infinito.[7]  A política do terror é a destruição da palavra, do diálogo. A violência é o que destrói a palavra. Hannah Arendt, em seu livro Sobre a Violência, enuncia a seguinte fórmula que nos parece muito apropriada: ela diz que “a forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos”.[8] Ela faz uma distinção importante entre o poder e violência. Para Arendt, a violência tem sido incrementada pela revolução tecnológica.[9] Ela diz neste livro que o poder é legítimo. O poder é sempre poder outorgado e reconhecido pelos outros, enquanto que a violência está no campo da impostura perversa e da usurpação. Para ela, o tema político mais crucial é, e sempre foi, a questão sobre “quem domina quem.[10] Poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem.”[11] Não dá para não nos remetermos aqui ao dizer de Freud em seu texto Mal-Estar na Civilização, sobre de onde provém nosso sofrimento. Ele diz que vem de três direções: do poder superior da natureza, da fragilidade de nossos corpos - do que temos medo? de nosso corpo - e do domínio de um homem sobre o outro. E cita Plauto: Homo homini lupus.[12] O homem é o lobo do homem.  E mais adiante ao falar sobre o ‘narcisismo da pequenas diferenças’ diz que “não é fácil aos homens abandonar a satisfação para a agressão”.[13]
Se tentamos pensar o social, não devemos esquecer uma crítica do próprio Lacan de que a psicanálise não pode ser uma espécie de remédio social. [14] Crítica que permanece atual, mas que temos que nos aparelharmos com as implicações do nosso tempo para repensarmos as categorias que nos estão sendo impostas pela dimensão globalizadora do terror. É, porque há aí um gozo, um gozo a mais que é pura destrutividade. A violência implementada toma a forma do desconhecido, que não é mais só da ordem do unheimlich freudiano. A impotência gera a violência.[15]
O objeto do terror já não é mais o objeto do fetiche nem mais o objeto da fobia. O medo de Hans jamais será igual ao terror dos tempos modernos. O medo de Hans é localizável e funciona como um apelo ao pai. Mas, a quem apelar hoje em dia? Qual instância institucional é apelável quando as fronteiras deixaram de ter alfândegas - os exemplos vão da internet à invasão dos EUA sobre o Iraque contrariando a resolução da ONU - ou quando as fronteiras tornaram-se apenas linhas imaginárias tais como se recortou antigamente a Terra entre meridianos e paralelos.
O que alguns filósofos políticos, tais como Habermas e Derrida[16] têm dito que o que se deve fazer é criar um organismo internacional que tenha a força de Lei que a ONU e o Tribunal Internacional de Haia já não possuem mais.
O objeto do terror adquire um certo ar topológico já que ele está dentro desde fora, isto é, o objeto do terror pode ilusoriamente aparecer como i(a) disfarçado na multidão, quando na realidade ele é uma célula do Hamas, ou da Al Qaeda pronto para explodir tudo à sua volta. Portanto, o objeto do terror já não pertence mais à categoria do unheimlich por maior angústia que esta inquietante estranheza possa nos causar. Parece que ele nos leva à condição do que tenho chamado de certeza instável, que é uma categoria de eventos não lineares e que estão abertos à dimensão do evento, como nos fala Badiou, ou do Espanto (Thaumatdzein) tal como nos fala Hannah Arendt retomando a dimensão platônica em seu olhar sobre o mundo. Esta categoria, pode e creio que deva ser pensada como algo que faz uma desestabilização das garantias Imaginárias, produzindo quebras no Simbólico e fazendo a irrupção do Real.[17] Esta certeza instável é produto dos nossos dias, produto da volatilidade das relações e do trabalho, produto da fragilidade do futuro e produto do desenraizamento do passado. Creio que o exercício do nosso pensamento e das nossas ações devam se mover na lacuna entre o passado e o futuro para que possamos encontrar saídas éticas e não tão sombrias para os dias atuais.
As incertezas e as especulações sobre como quando e aonde acontecerá novamente o ato terrorista, tudo isso trai a incapacidade que as pessoas possuem de pelo menos determinar a magnitude do perigo. Assim, o medo a respeito da infinitização da banalidade do mal do homem sobre ele mesmo, acaba por produzir uma ferida constantemente aberta diante do futuro, e não só do passado.
Para concluir, gostaria de retomar o conceito de frustração no seminário Livro 4, A Relação de Objeto: “A frustração é, por excelência, o domínio da reivindicação. Ela diz respeito a algo que é desejado e não obtido, mas, que é desejado sem nenhuma referência a qualquer possibilidade de satisfação nem de aquisição. A frustração é por si mesma o domínio das exigências desenfreadas e sem lei.[18]
Ora, a nossa sociedade está perversamente reorientada para um gozo desenfreado compulsivo onde impera o domínio das exigências desenfreadas e sem lei. Em R.S.I. Lacan dirá que o gozo é aquilo que não se submete a Lei. Parece que o terror é desta ordem, isto é, um gozo fundamentalista do Outro que massacra adultos e crianças inocentes como recentemente em Beslam na escola da Rússia. 
Será que para nos guiarmos pelas veredas da terra teremos que encontrar um poeta, tal e qual Dante lançou mão de Virgílio, ou será que nós, analistas, estamos numa posição ética tal que possamos em nossas práticas clínicas, em nossos depoimentos, ou na psicanálise aplicada, encontrar meios que possam permitir a outros a atravessarem a fúria diabólica do terror?
Conclamo a cada analista, que cotidianamente, se ponha a responder estas questões que há muito foram propostas para Lacan em Televisão: Que posso saber? Que devo fazer? Que é-me permitido esperar?
 




[1] Lacan,J. O significante e o Espírito Santo, in, A Relação de Objeto, livro 4. Jorge Zahar Editor. RJ. 1995.
[2] Alighieri,D. Inferno, Canto I, in, A Divina Comédia. Editora 34, SP. p.25
[3] Arendt, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Cia das Letras. SP. 2000.
[4] ibid. p. 32
[5] ibid. p. 33
[6] ibid. p. 35
[7] Lacan, J. ibid. p. 24.
[8] Arendt, H. Sobre a Violência. Relume Dumará. RJ. 1994. p. 35.
[9] Neste sentido é interessante citarmos Jacques Derrida em sua entrevista logo após ao atentado ao WTC em 11 de setembro de 2001, quando ele diz que “a relação entre Terra, terra, território e terror mudou, e é necessário saber que isso ocorreu por causa do conhecimento, isto é, por causa da tecnociência. É a tecnociência que empalidece a distinção entre guerra e terrorismo.  Borradori,G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. J. Z. E. RJ. 2004. p. 111.
[10] ibid. p. 36.
[11] ibid. p. 36. grifo nosso.
[12] Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. [1930(1929)]. ESB. Imago Editora. RJ. Vol XXI. p. 133.
[13] ibid. p. 136.
[14] Lacan, J ibid.. p. 17.
[15] “O terror global que culminou com o ataque de 11 de setembro carrega os traços anarquistas da revolta impotente dirigida contra um inimigo que não pode ser derrotado em qualquer sentido pragmático. O único efeito possível que ele pode exercer é chocar e alarmar o governo e a população”.  Borradori,G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. J.Z. E. RJ. 2004. p. 46.  Para isto, ver também a citação que Eric Laurent faz sobre Habermas como um filósofo político que pensa sobre a insurreição como modo de ir contra certos tipos de poder e o horror. Laurent cita três horrores nomeados por Lacan: “o horror da verdade, o horror do ato, e o horror de saber.” , in,  A Escola e o Pior, Opção Lacaniana n. 7e8. 1993.
[16] Borradori, G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. Jorge Zahar Editor. RJ. 2004.
[17] “Tecnicamente falando, uma vez que nossas sociedades complexas são altamente suscetíveis a interferências e acidentes, elas certamente oferecem as oportunidades ideais para a pronta interrupção das atividades normais. (...)O terrorismo global é extremo, tanto em sua falta de metas realistas como na exploração da vulnerabilidade dos sistemas complexos.” Um diálogo com Jürgen Habermas. ibid. p.46.
[18] Lacan,J. ibid.p. 36.

Godofredo em Teoria


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Godofredo em teoria
                                                                                      
O carteiro carrega nas costas um mundo de palavras, todas elas, seja em que língua for, o peso é sempre o mesmo e a tradução é uma só: esperança.
Godofredo era um bom carteiro, aliás, um homem bom. Tinha duas coisas das quais muito se orgulhava. Uma penca de filhos e uma penca de cartas que ele distribuía como uma árvore distribui suas folhas no outono. Deixava cair cada envelope, cada pacote, cada misteriosa encomenda diretamente nas mãos dos destinatários. Não gostava das caixas de correios, pois as julgava frias. Pensava em quem havia escrito cada carta e a saudade do encontro ali depositada. Mãos velhas de tanto capinar, mãos jovens de tanto se masturbar, mãos trêmulas necessitando se amparar e outras solitariamente desgarradas precisando se entrelaçar.  
Com apenas o segundo grau completo - o que era exigido por profissão – Godofredo, se não tinha a instrução necessária para ler muitos livros, sabia da importância das palavras na vida de cada um. Sabia também que ele era o último elo que faltava na corrente da memória das distâncias intransponíveis. Via com uma lucidez espantosa o rumo das vidas percorrerem nas suas costas o fardo do perdão, a alegria do reencontro, a tristeza de uma eterna despedida, a possibilidade de um novo emprego, o rito sumário da demissão indesejada, a convocação para uma assembléia, a mala-direta comercial, a convocação sempre incômoda do dentista, a carta de amor perfumada e o telegrama aflito do ciúme doentio da paixão: ‘Estou muito mal sem você. Preciso te ver. Urgente’.
Aconteceu certa vez de entregar mais uma carta para D. Clara, uma mulher dos seus quarenta e poucos anos (Godofredo não era muito bom em correlacionar a fisionomia com a idade). Na verdade, D. Clarabóia do Brasil Teixeira. Achava engraçado aquele nome. Uma Clarabóia para o Brasil. E sorria caminhando, apertando os passos com seus sapatos corroídos pelo asfalto quente ou pela chuva impiedosa. Sempre andando para chegar a tempo ao esperado destino. Deveria, segundo seus cálculos, ser a décima terceira carta. “Número da sorte dona. É a décima terceira carta do Sr. Renato para a senhora”, disse o encabulado God, que quase nunca puxava assunto com as pessoas para não parecer intrometido ou descomposturado, conforme ele mesmo gostava de dizer. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a voz que correspondia àquela destinatária. “Ele só vive em teoria. Promete, promete, mas não cumpre nunca o que escreve.” Godofredo sorriu agradecido sem saber o que dizer ou o que contrapor para continuar o assunto. Ajeitou o boné azul com a bandeira do Brasil na cabeça, arremessou a pesada mochila amarela com o restante das cartas para as costas, e ficou só com a metade da frase: ‘ele vive em teoria’. É bem verdade que a gente só ouve o que quer, mas God, por educação e respeito hierárquico, não quis ouvir o resto. Achou sonoro aquele ‘viver em teoria’ e percebeu que aquelas palavras traduziam de maneira formidável a vida que ele levava. Se ele levava cartas, papéis escritos por inúmeras pessoas para tantas outras inalcançáveis, ele deduziu que também levava a vida em teoria. Sorriu encabulado, agradeceu a frase que ela parecia ter-lhe destinado por encomenda. Achou estranho por que em geral ele não era o destinatário, mas o meio caminho, a ponte-levadiça, o pombo-correio, o fiel mensageiro, o arauto entre a mão por dizer e o coração por escutar.
Foi a partir deste dia que as coisas começaram a andar um pouco estranhas para o carteiro. Botou na cabeça que queria ser uma palavra. Qual? Não importava. Achou tão bonito aquilo de se levar uma vida em teoria, embora sua interpretação não estivesse lá bem de acordo com a D. Clarabóia, mas para ele que havia se agarrado como um marisco à rocha, só a primeira parte da frase deveria ser levada a sério. No fundo, só aquela vida em teoria importava. Achava assim um sentido que faltava à sua vida. Era um bom homem, como já disse, mas cumpria o seu destino, como Isaac diante da adaga na mão impiedosa do pai. Caravaggio que o diga! Aquela frase havia revelado uma epifania em sua vida que ele iria doravante tratar de lavrá-la como um bom ourives faz diante do seu tesouro.
Queria ser uma palavra. Já se disse. Mas, a pergunta insistia. Qual? Não nele, mas em mim. Ele não estava preocupado com qual palavra, mas simplesmente A palavra. E qualquer que fosse a palavra ele já ficaria satisfeito, pois estaria se transformando em teoria. Era fácil, muito simples até. Mais simples do que a simplicidade humilde com a qual tinha vivido até então: a profissão de carteiro, o cuidado com os inúmeros filhos – isso sabia fazer bem, jactava-se orgulhoso - da mulher iletrada, mas mãe zelosa, do culto aos domingos na igreja vizinha da sua casa. Sua mulher ia sempre ao culto do pastor Antenor Diógenes, mas ele mostrava-se zeloso por tanta coisa por fazer que nunca quis se ater à demanda divinatória. Até que um dia, por opção ou osmose, acabou cedendo aos louvores e pulou o muro da incredulidade. 
Mas agora era diferente. E qual era esta magnífica diferença? É que a escolha era genuinamente dele. Sem influência dogmática ou ritos impostos. Sentia-se feliz nesta liberdade de poder escolher. E sem saber muito bem o porquê, esta idéia de querer ser uma palavra era a coisa mais sublime que poderia fazer na sua vida. Nada poderia atrapalhá-lo ou mesmo detê-lo. Na verdade, não havia razões explícitas para tal, mas dentro do seu peito borbulhava uma espécie de comichão ou êxtase como se estivesse prestes a alcançar o Nirvana. Já fazia muito tempo que não estudava, mas com algum esforço e pesquisa num caderno de português de um dos meninos, reencontrou o sentido quase exato para a palavra teoria.  Anotou numa folha avulsa que arrancou de um dos cadernos das crianças: O substantivo theoría (achou que o filho tinha copiado errado a palavra. Tinha um agá ali de intrometido, pensou. Precisava mais tarde chamar a atenção do menino na hora da cópia. Escreveu ao lado da página: corrigir o Aristeu no ditado. Teoria e não theoria.) significa ação de contemplar, olhar, examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Conjunto sistemático de opiniões, regras ou leis. Escreveu também. Construção imaginária; utopia, sonho, fantasia.
É isto! Exclamou feliz. Utopia, sonho, fantasia. Viver a vida em teoria é viver a palavra sonhada. Contemplação, olhar, espetáculo. Mas é tudo isso que eu vivo cotidianamente! Gritou exultante. Só não sabia que era isso. Vou virar mesmo uma palavra. Cantou exultante. Uma palavra contemplada, uma palavra-espetáculo, uma palavra olhada. E passou a se dedicar a cada minuto do seu trabalho em ser uma palavra. A cada passo que dava queria ser uma palavra difrente: nos primeiros dias quis ser uma palavra azul, depois uma palavra luz, depois uma palavra jardim, depois uma palavra surda, depois a palavra vampiro. E teve medo. Mas depois, as palavras iam-lhe e vinham-lhe numa velocidade espantosa sem que ele pudesse retê-las ou abandoná-las. Gostava disso, gostava principalmente das palavras que não compreendia de imediato, mas que depois iam-lhe abrindo os poros assim como as lágrimas da chuva cavavam sulcos na terra ressequida. O barulho que estas lhe faziam parecia infernal, mas à medida que as compreendia eram os mais lindos sons. Foi assim que ouviu pela primeira vez a palavra ‘Celta’ e um som extremamente melodioso invadiu-lhe o passado, de forma que o atavismo das experiências esquecidas retornaram como se estivessem adormecidas há séculos. Agora lhe eram extremamente familiares e ele falava e compreendia uma profusão de línguas.
Godofredo andava diferente. Quem o olhava passar percebia que ele estava contínuamente falando sozinho. Andava com um olhar distante, mas com um inseparável sorriso nos lábios. Foi no final de uma tarde de verão, num dia de extremo calor, enquanto Godofredo voltava para casa, que Natanael, o açougueiro, deu o grito: gente! Venham ver! A sombra da perna do Godofredo transforma-se num A quando ele anda. Vejam só! É quando ele abre as pernas. Sua sombra é um A. Gritava espantado e surpreso.
Pois bem, se a primeira letra foi o alfa, antes de se chegar ao ômega, a sombra de Godofredo denunciava no chão uma infinidade de outras letras, que se juntavam em palavras para se desfazerem na próxima passada. Algumas crianças corriam divertidas ao seu lado tentando adivinhar a palavra que ele ia formar. Alguns faziam cantigas das palavras, os poetas rimavam poesias, os amantes recolhiam entusiasmados pequenos montículos da palavra paixão, os mal-educados abaixavam-se para pegar os palavrões e lançar contra o próprio God, que sem se importar continuava seu caminho coberto por outras palavras que lhe protegiam dos arranhões. Caminhava enquanto pensava cada vez mais crédulo que elas eram uma parte do seu corpo, assim como suas mãos eram apenas a continuação dos seus braços. As palavras continuavam através do seu corpo tornando-o cada vez mais infinito. Definitivo.
A última vez que viram o Godofredo, se é que ainda se pode dar este nome a ele, já não tinha mais nada que se assemelhasse a um corpo. Era uma montanha de letras que se acotovelavam umas por cima das outras, cada uma querendo fazer mais e mais parte daquele ser. E, se por ventura uma caía ao chão, logo era substituída por mais duas, dez ou mesmo trinta. A velocidade com que isso ocorria era espantosa. Parece que agora ele estava virando uma página. Talvez já pudesse até mesmo ser uma carta de amor ou um livro por fazer...
   

Carlos Eduardo Leal