quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Frases recortadas




Estou nascendo. Contigo aprendi a abrir os olhos e a fechá-los na confiança de teu colo. Nasço devagar como quem espreguiça no amanhecer. Nasço como uma palavra nova, sorrindo ainda encabulado por não ter grande compreensão do mundo. Tudo me é novo. Tudo me é presente: teus olhos que me lêem, tuas mãos que me tocam sem me ver. Tudo é um compasso; não de espera, mas de virtude de aprendizado no amanhã. Vamos juntos?

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Lúcio envelheceu os ombros. Tinha os olhos cansados das palavras. Algumas letras grudaram-lhe às pálpebras. Arrastou a ponta do indicador ao lábio e virou mais uma página. Era tarde da noite. Era tarde em sua vida. Maria cobriu seus olhos com um beijo. Lúcio adormeceu entre os lábios aveludados de palavras sensíveis, femininas.

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O dia está amanhecendo e levando com ele minhas estrelas. Já era um azul quase púrpura quando todas as estrelas sumiram do céu. Rolei para o outro lado, passei as mãos em teus cabelos que ainda dormiam e vi que o céu havia se distraído. Esquecera uma estrela em minha cama.


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Para todos, deixo na alegria deste fim de ano, as minhas melhores palavras, inclusive aquelas que não escrevi. Saio pelas lacunas da vida à procura de outras palavras: esquecidas, que não fizeram rimas, que não couberam em nenhuma estrofe, que ficaram entaladas na garganta, em suspenso num cair de noite e se perderam pelas sombras. Palavras, todas elas - mesmo as que machucam -, para mim são luzes que ora ofuscam (cegam), ora iluminam caminhos. Assim vou. Noutras palavras, abraços iluminados a todos.

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Heráclito disse que não se banha duas vezes no mesmo rio. Com a psicanálise aprendi que não se banha duas vezes na mesma palavra. Como escritor tenho aprendido que quando se entra numa palavra para se banhar, sai-se outro. Como leitor, adoro estar i-mundo de palavras.

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Quem protege o telhado da chuva? Quem protege a palavra de uma frase? Quem protege um escritor das palavras? Quem protege a chuva dos olhos do escritor? Quem protege a mão que em noite escura procura a música na palavra que contém teu nome? Quem protege teu nome da chuva de minhas palavras? Quem protege a chuva do chão que a acolhe? Quem protege o céu sem azuis?

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Hoje de manhã, ao acordar, dei de cara com a morte. Perguntou-me sobre a verdade. Respondi que sobre isso não saberia nenhuma palavra. A morte sorriu em seu não-rosto uma verdade revelada. Propôs uma troca:a verdade pela minha insciência. Prefiro os mistérios de uma palavra por dizer, disse. E saí para colhê-la nas mãos do campônio que cuidava do jardim.

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Quando te vi nesta manhã voando como um pássaro, pensei em colher uma flor para te dar quando você pousasse em solo firme. E a primeira flor que encontrei foi um girassol do campo. Uma estranheza me percorreu a espinha. Ele se movia e não era em direção ao sol, mas em sua direção. Foi impossível arrancá-lo. Então, em segredo, cochichei junto ao caule, o nome da seiva que escorria em meus olhos para te dar.

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Já era velho, mas trazia a verdade da palavra tatuada sobre sua fina epiderme. Para cada um que passava, retirava uma parte da verdade. Assim, deixava seus rastros de saber numa generosidade infinda. Ainda hoje, ao passar pela praça, posso vê-lo distribuindo meias-verdades aos mais jovens que sorriem com desconfiança daquele velho que tanto me ensinou: meu pai.

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Teus olhos reclamavam um entardecer. Como nunca tive sabedoria para pôr de sol, puxei um touceira de samambaias que cresciam na encosta de sua primavera. A sombra fez com que você achasse que já era o fim da tarde. Você disse: tá na hora. E, em silêncio de pássaros, mergulhamos um no mistério do outro.

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Aquele menino tinha mania de não se conformar com o nome das coisas. Parecia Adão. Tudo tinha que nomear. E para cada coisa nova que seus olhinhos encontravam, escrevia a lápis num minúsculo caderno o novo nome inventado. Dizem que um dia, estupefato, viu a cor do silêncio. E não parou mais de escrever invencionices para tentar dizer o indizível. Foi assim que virou escritor.

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O avô disse para o menino que era necessário adubar bem a horta para que tudo crescesse em abundância. No dia seguinte o avô encontrou o neto no meio da horta com estrume até o pescoço. Foi preciso o menino morrer de metáfora umas seis vezes até poder nadar novamente no rio de palavras do avô.

Teus cílios longínquos anunciavam outros horizontes quando abri meus olhos em tua direção. Foi então que vi pela primeira vez: as palavras alargavam o mundo, estendiam pontes sobre versos de oceanos, escalavam montanhas ficcionais, abriam vales de rimas, mas tudo era feito de infinitudes. Então chorei a distância entre nossos nomes. E o mundo coube numa única palavra...

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A enorme pirâmide havia mudado de lugar e deixou um rastro profundo nas areias escaldantes. O oceano ficou imóvel por muito tempo. O céu estava tão escuro que ao meio dia surgiram estrelas. Em seguida, o próprio Universo parou seu movimento espiralar durante mais de quatro semanas e não houve mais qualquer espécie de vida na Terra. As páginas já estavam quase amarelando quando voltei a escrever...

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

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O tempo pareceu-me insuficiente. A vida corria veloz ao meu lado num paralelo de infinitudes. Olhei pela janela. Chovia lá fora. Você vinha encharcada de mistérios. Vestida de palavras colhidas dos teus últimos dias. Corri ao teu encontro. Abri sobre você um grande livro. Foi inevitável: as palavras caíram sobre teu úmido rosto. Olhou dizendo em meus olhos:palavras são ampulhetas. E, sorrindo, me beijou entre vogais.

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..e depois houve a palavra-abismo. Era uma palavra que não se encontrava em lugar nenhum. Nem em mim. Passei a mão por suas falésias e retirei de sua encosta um edelweiss. Tornei a olhar para a palavra e ela, estranhamente, iniciou uma metamorfose transformando-se lentamente num rosto. Agora, a palavra-abismo ganhava um sentido para além de mim. Voava sem peso aparente. Enigmática, bela, translúcida, feminina.

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Acordo e me deparo que durante a noite, algumas de minhas melhores palavras desistiram de habitar meu corpo. Olho para o lado e vejo, banhado na alegria, que sorrateiramente elas escorreram sob o lençol. Agora habitam tua pele nua como tatuagens de amores e paixão.

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Gênesis: As palavras, nervosas, faziam volteios na ponta da língua e estrelavam-se assanhadas no céu da boca. Assim, resplandeciam frases que inauguravam o mundo. Exodus: Quando as cuspia no caderno pautado, já era o inferno.

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As palavras que escrevo são as que não couberam dentro do rio. Transbordo. Nas margens alagadas na alegria germinam frases que me descompletam. Uma janela se abriu. É você

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Amanhecer é acordar para a vida.

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O tempo é também o tempo de duração uma palavra em nossa vida. Pode ser o nome de uma pessoa que se gastou com o uso. Pode ser o tempo da memória que se esvai. Pode ser o tempo de uma saudade que não retorna. A palavra tempo pode chover ou fazer sol em nosso quotidiano: depende do tempo que nós quisermos despender para aproveitarmos as estações da vida.

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De noite, quando a cidade dorme, pego meu velho caderno transformado em rede. Então, retorno ao cais em busca das palavras esquecidas, das interjeições de dor, dos lamentos devolvidos, das palavras que não encantaram e as recolho cuidadosamente ao caderno. Retiro os excessos, as impurezas (não de todas, obviamente) e, na manhã seguinte, caminho rumo ao cais das palavras-partidas.

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Todos os dias, de manhã bem cedo, vou à beira do cais e me despeço de algumas palavras. Não há tristeza em meu coração. Antes, leveza, porque eu as deixei ir fertilizar outros mares.

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Há certos dias em que trans-bordo. Hoje é um destes em que transbordo palavras. E é dos retalhos das palavras que sobram que construo as melhores partes da vida.

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Passarinho tem dias de muda onde troca suas penas. Escritor tem seus dias de renovar palavras. A escrita é um exercício de sair de si mesmo e ser outros.

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Fui andar descalço nas nuvens e espetei o pé numa estrela.

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Com os olhos dispersos em sua melancolia de primavera, saiu para ver o mar. Com ele, só Kind of Blue, de Miles Davis.

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...então quando minhas palavras começam a me estranhar e criar um rosto próprio, faço com que elas caminhem frases afora. Enfim, que sigam suas vidas: intrépidas, loucas, vadias como prostitutas para quem as lê e santas para quem as reescreve.

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O autor, ao escrever, se desfaz de suas palavras para que o leitor as tome como suas.

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Assim, naquele tumulto de sensações de seu coração ainda tão pequenino, ela não conseguia distinguir se era uma gota de chuva que escorria do lado de fora da vidraça, ou uma lágrima do lado de dentro.

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Há palavras que deveriam dizer mais do que dizem./Há outras que testemunham felizes a madrugada./Há outras tantas que deveriam silenciar mais do que o vento./Mas há aquelas imprescindíveis / que ainda preciso inventar para poder dizer o teu nome.

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Chover. Um verbo impessoal. Agora, chove lá fora na minha cidade. Muito. Vou votar. Há uma impessoalidade em mim com toda esta política nefasta. Dentro de mim também chove. Aflito, respiro. Vou vo(l)tar encharcado.

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Escrever é estar sedento de uma doença incurável. É morrer em cada palavra para renascer nas entrelinhas. Sinto o estancar do sangue em minhas veias quando aborto uma palavra indizível. E, novamente, a sede eleva-me a um estado inseguro, quebradiço, mortal como o instante anterior à próxima palavra.

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Amor: aquele que não pode ser nenhum outro...

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Podia ver naquele homem-livro, o texto impresso de sua vida, nas rugas antigas de seu corpo. Assim, podia lê-lo como quem se alfabetiza na descompletude de seu tempo.

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Uma palavra sussurra o amor indecifrável. O amor se despalavra prazeroso na pele alva, quase-intocável. Palavra e amor se roçam sexualmente selvagens naquilo que ambas possuem de nuvem: o vento escorre ao infinito na emoção por dizer.

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E anoitecer era ser meio-irmão das estrelas. Uma cadente, outra candente que dobrou a página logo ali na sua frente. Sem poder deixar de avançar, mas com enorme emoção, dobrou a página e seguiu a estrela, pois ela havia lhe soprado a promessa de outras palavras. Novinhas em folha. Palavras que ele desconhecia.

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Assim seria este livro. Seria um livro com três partes. Agora ele sentia sua pele como se fosse um papel. De tão fininha já podia ver as veias por debaixo, ou as palavras que lhe corespondiam. Escorreria pelas páginas e levaria a memória de seu pai dentro do baú mágico de seu avô.

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Para onde foram minhas palavras quando coloquei um ponto final em meu livro? Por que fiz isso? Agora, as palavras me desacompanham. E esta solidão de personagens-palavras dói como um luto irrealizado. Também morri um pouco. Sempre se morre em pequenas doses ao término de um livro.

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As palavras se foram. O escritor ficou só. Seus personagens também já não lhe pertencem. Foram-se como quem pega um trem de nuvens. E o vento sopra estrondoso. As letras copulam. É necessário que o escritor morra um pouco para que suas palavras ganhem vida. Luto com palavras. Sem elas, a luta é vã, dizia o poeta.

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Sigo sem as palavras que me descompletam como uma tarde cai sem a brisa que acelera o pôr-de-sol. Deito-me sobre a pedra para observar melhor sua silhueta. Você escorrega silenciosa em seu perfil molhado. Mergulho minha mão num pote de palavras usadas para anoitecer. Adormeço sem você: sonho a palavra que diria o seu nome.

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O silêncio sempre ronda a voz. Sempre está à sua espreita pronto para dar o bote e engolir a palavra.

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a escada de descida para o ateliê de meu pai a mão quebrada de um anjo estava caída ao longo de uma asa partida. Não ouso dizer o que pensei. Desajeitado, mas com extremo carinho, segurei na mão do anjo e, com um pedaço de barbante, atei-a a asa. A mão do anjo segura o voo, protege a asa da queda, e reconstrói a madrugada.

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Estava quase a segurar a palavra eternidade com uma só de minhas mãos, mas a outra ainda estava cega, tateando teu corpo. Estava nos confins de uma alegria-triste.

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Dizem que o maior invenção do homem foi a roda. Não acho. A roda em sua forma já existia na natureza. Para mim a maior invenção do homem foi o livro. Entre duas capas há um mundo de ideias que está sempre a surpreender e a alargar o conceito de infinitude do próprio homem.

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Tinha por vício minha irmã gêmea, assim como a nuvem tem por vício o ar e, por inimigo, o vento que dispersa os limites da existência.

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Silêncio. Longo silêncio quebrado pela cumplicidade entre nossos olhos deitados na grama da dor: cílios e lágrimas. Nossos olhos cruamente nus. Vertidos um sobre o outro sob os auspícios do horror como pano de fundo. Dizíamos tudo sem que uma palavra fosse proferida. Dizíamos sobre a dor que não nos cabia e sobre o sexo como um contrabando. Dizíamos sobre nossos corpos que não nos pertenciam.

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Quando se fecha os olhos sua vigilância diminui e se é assaltado por seus fantasmas. A culpa era a vertiginosa vingança e a punição parecia-me eterna. Molestador, agora era molestado pelo mais terrível dos monstros do qual não se consegue fugir: o pensamento.

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E, aos poucos, sentia exatamente isto: que o meu amor iria se revelando com nítida limpidez a cada movimento em direção ao seu corpo. Tudo me era tão claro e inverossímil. Tudo me era possível e impenetrável. Tudo tinha a força de um vulcão e a maturidade de uma mariposa que não enxerga na lâmpada incandescente, o êxtase da luz e a morte por vir.

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Mas, para que serve mesmo uma porta? Fiz a mim mesmo esta pergunta e gelei de medo por pressentir atravessada na garganta a resposta inconsolável. Sim, porque a resposta a esta pergunta me levaria a outras portas igualmente densas, quase impenetráveis e femininas como esta. A porta era o cheiro fermentado do feminino em mim.

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E, por acaso, muitas vezes não temos a transtornada sensação de que nossa família é feita por milhões de braços e abraços despedaçados que precisam ser restaurados? São milhares de ex-votos, pedaços de corpos onde os pedidos estão perdidos entre letrinhas miúdas, papéis amarelados, amargurados pelo esquecimento de quem se espera o reconhecimento. Re-conhecer é também outra maneira de restaurar.

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"Deus, se ele existe, é uma touceira de bambu. Aquela ali que dá sombra bonita". E apontou com seus dedos longos sujos de tinta e barro para fora da janela de madeira vermelha e verde. (Conversa colhida com Berzé, artesão em Bichinho, Tiradentes.)

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As palavras secavam-me idéias. As páginas corriam encharcadas sem vento. Agora sei. As palavras podem partir-me. Estou partido. Estou sempre partindo.

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Escrever, escrever, escrever até sangrar palavras.

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Vou subir a serra / botar os pés na terra / alcançar com as mãos as estrelas / Vou subir a serra / lá não estarás / também não estarei / Vou subir a serra / onde estás? / estarei?

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Por que algumas palavras ainda não alcançaram a maturidade e já se tornaram escritas?

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Palavras: quanto mais nos aproximamos delas mais nossas almas se revelam.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Sobre Alberto Giacometti

Tudo está por um fio. Sempre se está em perigo. Alberto Giacometti

A paixão pelo inacabado.
Desde que o conheci, ando sofrendo de Giacometti. Eu sou um destes traços, esquálidos, quase indefiníveis, que testemunham desaparições. Restos. Sou a tinta que se esvai numa compulsão frenética, apaixonada, como quem não consegue terminar a obra. Sempre por fazer. Sempre por acabar. Inconclusa. In-finita. Jean Genet disse que suas obras só poderiam sair de um lugar. De um lugar de onde não se volta: da morte. Sombras, vultos, corpos em magreza-de-movimentos. Mas, com uma força de levantar todos os mortos de seus sonos atávicos.
Sim, estou, estamos nas esculturas e pinturas de Giacometti. Somos ossos, sempre a nos restar. Somos traços nervosos como no retrato de James Lord (primeiro da esq. p/ a direita na segunda fileira). J. Lord, o crítico americano foi visitá-lo em Paris e faria uma entrevista com ele. Giacometti se ofereceu para pintar seu retrato. Lord adorou a ideia. Escreveria sua matéria e ainda ganharia um quadro de ninguém menos do que Giacometti. Pois o pintor não conseguia acabar de pintar seu rosto dizendo que era impossível capturar a alma humana. E J. Lord dizia que ele era um mestre exatamente em capturar em suas pinturas a essência da alma humana. James Lord tinha ido passar uma semana e já estava lá há um mês. No dia seguinte a cada tentativa, Giacometti apagava obsessivamente o rosto e o repintava. Tendo observado isto, J. Lord passou a fotografar em segredo todos os quadros antes que Giacometti voltasse para apagá-lo. Lord não escreveu uma matéria para sua revista. Escreveu um livro com todas as fotos que parecem a mesma. Isto levou seis meses. J. Lord teve que pedir duas vezes autorização à sua revista para permanecer em Paris. Este quadro ai acima é uma das inúmeras variações... ao infinito.
Como se livrar do Giacometti que me habita? Talvez escrevendo? Talvez. Não é preciso. Seguro? Nem pensar. Mas escrever é arriscar-se. Na vida. Então, como dizia Lacan, sobre a cena do mundo (de Alberto Giacometti) eu avanço. Não quero mais me livrar dele. Que ele habite minhas palavras-sombra.
Lord, James. Um retrato de Giacometti. Iluminuras
Genet, J. O ateliê de Giacometti. Cosac & Naify

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Os Anjos Caídos no Paraíso Perdido - leituras


Francis Bacon

Os Anjos Caídos no Paraíso Perdido


A recordação da felicidade já não é felicidade, enquanto a dor é ainda dor. Lord Byron

A idéia do Paraíso Perdido sempre foi fascinante para o ser humano. A vontade de reencontrá-lo parece ter sido substituída por um lenimento na tradição cristã, um adiamento post mortem, ou seja, a felicidade seria alcançada no encontro com Deus. Por que Adão, o primeiro anjo pecou, nós, anjos caídos descendentes dele, estamos fadados a cada passo a estarmos mais próximos do cadafalso. A esperança plantada como uma célula terrorista em nossos corações, ou como um chip infestado de vírus em nossas almas é de que a Terra é tudo aquilo que não é o Paraíso Perdido. E, de nossa parte, parece que estamos bastante empenhados em fazer dela a confirmação do que disse: uma devastação nas condições de vida que vão das relações do homem com o meio-ambiente até as mortificações das inter-relações.

O escritor holandês Cees Nooteboom teve uma experiência real muito interessante. Nooteboom relata que foi convidado para um evento de arte em Perth, pequena cidade da Austrália: ele e algumas outras pessoas iriam fazer um percurso por certos lugares na cidade para encontrar anjos. Pessoas comuns vestidas de branco e com asas, nas mais diversas situações. Num prédio abandonado, atrás de um armário, olhando para a parede estava uma mulher imóvel vestida de anjo. Um anjo decaído. Ficou fascinado por aquela personagem ali jogada olhando para o nada. Tentou conversar com ela. Após algum tempo, o máximo que ouviu foi: “não posso falar com o senhor”. Foi a partir desta experiência que ele escreveu Paraíso Perdido (Companhia das Letras).

O livro conta a história de Alma - o nome é proposital – uma linda e jovem brasileira que após ter sido estuprada numa favela em São Paulo, voa para a Austrália com sua melhor amiga, Almut. Ambas têm descendência alemã, estudam história da arte e Alma é obcecada por anjos. Ela terá um affaire com um pintor aborígine feito de sexo e longos silêncios à beira-mar. É ela quem se transformará no anjo cênico. Paraíso Perdido é um pequeno labirinto metalingüístico onde o acaso anda à solta, como um anjo, a promover encontros e presenciar desencontros e mal-entendidos humanos, demasiadamente humanos, diria Nietzsche.

Em certo momento dá-se o encontro com o anjo: “E ele? Um homem num aposento fitando um anjo estendido no chão. Anjos são seres míticos, mas em pleno século XX caem na categoria do kitsch, da ironia ou da encenação. E, ainda assim, aquele corpo mirrado e encolhido, aqueles pés descalços, todo aquele ser feminino – porque era uma mulher, ele tinha certeza, por mais que parecesse com um menino – causara nele um efeito: medo, comoção, desejo. Ele precisava vê-la levantar-se e bater aquelas asas que jaziam, grotescas, na poeira.” Retorna ao hotel, mas naquela noite ele não irá dormir. Pensa nela continuamente nela. Todo anjo é atemorizante, escreveu Rilke. E onde há medo, também há desejo. No dia seguinte ele retorna. “Pousa o olhar no rosto imóvel, nos pés descalços, nas asas. O que aconteceria se ele dissesse alguma coisa? Um tijolo arremessado contra um espelho, um ruído de cacos se quebrando, uma espécie de gemido vítreo, e o silêncio volta a se impor. Um silêncio dos que violam o intangível. Senta-se, de costas para a parede. O tempo, desprovido de peso, recebia um lastro em que tudo pesava: a tensão, o pressentimento de uma cilada. Pensa ter ouvido alguém se aproximar, mas é um alarme falso. Ele toca uma das asas bem de mansinho, com a maior ligeireza possível. – Please, go away. – I cannot. I want to talk to you. (...) Acontece que me apaixonei perdidamente por você”, ele diz. “Foi por causa das asas. Você não foi o único. Mas anjos e seres humanos são incompatíveis”.

É nesta tênue linha entre ficção e realidade que Cees Nooteboom transita e parece nos levar ao intangível das relações.

O acaso faz com que o ‘autor’ e Alma se encontrem no avião de volta. Ela lhe sussurra: “Será que o senhor já parou para pensar no inventor do Paraíso, um lugar onde não ocorrem mal-entendidos? O tédio incomensurável que deve reinar lá só pode ser entendido como uma punição. Para inventar algo assim, só mesmo um mau escritor.”

Se estamos fora do Paraíso, qual é o habitat que esta Terra nos reserva? Será que a humanização tem nos tornado demoníacos?

Harold Bloom, Anjos Caídos (Objetiva), escreve que “o anjo Adão foi um anjo caído que logo pôde ser distinguido de Deus. (...) Eu afirmo alegremente que todos nós somos anjos caídos, e trato agora de nos separar e de nos afastar para longe de nossos primos mais antipáticos, os demônios e os diabos.”

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Foi andar descalço nas nuvens...





Era um menino que havia esquecido de contar seus dias

Desfez-se de seus olhos e saiu mundo afora

A olhar recantos com outros olhos

A olhar encantos através de outros olhares.


De coração em coração experimentava desditas

E outras veredas sem fim

Experimentava tecidos das peles

Cílios que se dobravam em olhares

Mãos que acolhiam curvas feitas de esmeraldas.


Um dia, sem querer, entrou nos trigais

De um quadro de Van Gogh

Os corvos assustaram-se e pôde olhar o mundo

Através do azul.


Disse para si mesmo que se encantara pelas estrelas

Uma em especial chamara-lhe a atenção.

Uma que tinha em suas mãos restos de um pôr-de-sol.

Uma estrela que a chuva havia acabo de enxaguar.


Ingenuamente tirou os sapatos

Pôs-se a andar pelas nuvens

E acabou por espetar o pé na estrela.


Porém, não sabia que era uma estrela cadente

Então, seus olhos abriram-se na tristeza:

Verdade sem nenhum saber.


A poeira estelar ainda ardia-lhe os olhos

Quando seus pés clamaram por um retorno.

Saberia o caminho de volta?


Haveria mesmo uma volta possível, ou

Seus olhos teriam-se perdido

Pelo universo infinito

Na velocidade esmeralda daquela estrela?

sábado, 9 de outubro de 2010

O farol







"O senhor...Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. (...) Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina..." G. Rosa - Grande Sertão: Veredas



A neblina sobre a retina não me permitia distinguir as fronteiras do coração. No entanto, aprumava o leme com a confiança de um dia claro, sol de meio dia. Enganava-me na inútil certeza dos arrogantes.

Finalmente, a temida chuva veio. De início, tímida como uma criança em seu primeiro dia de aula. Não sabia se me molhava ou misturava-se ao mar revolto. Por fim, cansada de bordear-me pelos flancos, tomou-me inteiramente de assalto. Veio com a força das potestades. Parecia querer arrancar-me do leme. Minhas mãos, após longas horas de aflição, pareciam não mais querer corresponder ao que eu lhes dizia. Temiam no pior frio que se possa enfrentar numa situação dessa. Arranhavam-se no frio do medo. O escuro jazia entre um raio e outro a rasgar noturnas Billie Holidays. A pequena embarcação era menor que meu corpo. Tudo que não era tempestade, tormenta, tinha uma dimensão não superlativa. A vela era tragada pelas vagas como se fosse um fino lenço de cambraia a querer enxugar as lágrimas de uma enchente do Amazonas.

O corpo, já disse, não cabia no cansaço extenuante das horas. Estava a ponto de largar o leme quando avistei, na ilusão da miragem que o coração tanto desejava, um farol. Aprumei o resto de força que tinha sobre os remos e, com uma estranha lufada, em poucos segundos já me encontrava num pequeno cais entre duas rochas pontiagudas. Certamente se tivesse me afastado meio metro, teria afundado. Mas o meu barco coube como se fosse feito como um terno sob medida.

Rapidamente pulei da pequena embarcação e subi por uma longa escada escavada nas pedras. Avancei esperançoso para aquele farol que jorrava 360 graus de luz no meio da escuridão.

Uma pesada porta vermelha estava apenas aferrolhada pelo lado de fora, felizmente. Assim que fechei a noite chuvosa do lado de fora, avistei uma tabuleta na parede em frente: Esperávamos por você.

Por detrás da previsível escada em caracol que me levaria ao topo do farol, havia uma portinhola verde com uma maçaneta de cobre amarelo, desgastado, como se muitas mãos, ao longo dos séculos, tivessem passado por ali. Se o farol já havia sido uma salvação, o que me reservaria por detrás daquela porta?

Abri com cuidado. De início fiquei totalmente cego, como se a cegueira fosse para apagar tudo o que até então eu havia visto na aprendizagem sobre o mundo. Aos poucos fui me acostumando àquele excesso de claridade. Havia muitas pessoas naquele lugar. Pude ver as paredes infinitas e tão altas como o pensamento. Todas recobertas por livros, ao infinito.

A primeira pessoa que vi foi Virginia Woolf. Ela veio me receber. Cabelos grisalhos em coque, vestido preto com um broche que reclamava seu lugar entre os seios, colar de pérolas certamente dado por Leonard, seu marido. Nos olhos, uma melancolia a prenunciar sempre o ato fatídico. "Bem vindo ao Farol. Sinta-se em casa, aliás, esta será sua nova casa." Virou-se como se eu sempre estivera ali. Entre muitas mesas repletas de livros fui encontrando todos os escritores que poderia pensar. Mais, muito mais do que poderia imaginar. Maria Kodama, a escrever para Borges, Dante Alighieri revisando a Divina Comédia, a pequena Orides Fontela com um diminuto lápis a escrever seus poemas, Platão, agitado, entrava e saia de sua caverna, Dostoiévski tentava organizar os irmãos Karamazóvski, Machado de Assis olhava o ciumento Bentinho atrás de sua Capitu, Guimarães Rosa aproximava no infinito Riobaldo e Diadorim, enfim, todos, absolutamente todos os escritores estavam lá numa Babel de línguas e histórias sem fim.

E, na medida em que iam terminando seus escritos, colocavam os livros num enorme tubo que os aspirava até o alto do farol. E dali voavam rápidos, na velocidade da luz, ou melhor, através dela, iluminando a escuridão do mundo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Programa Sem Censura

Queridos amigos,
Hoje, quinta-feira, dia 07 de outubro, estarei no Programa Sem Censura às 16:00h (Programa da Leda Nagle TVE BRASIL, canal 2, ou TV Cultura) para debater sobre traição. Aguardo vocês por lá.
Abraços,
Carlos Eduardo

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O fotógrafo iluminado



Anastácio era um bom fotógrafo. Alma boa, saliva melhor ainda. Era um lambe-lambe. O único fotógrafo da pequena e acolhedora cidade de São Sebastião das Boas Almas, lugarejo esquecido pelo mundo. Minas Gerais. Depois da sua imaginação. Além do sertão das veredas roseanas. Homem bom, como já se disse. Grande coração. Mas pobre, tão pobre que sua casa cabia espaçosa numa foto 3x4. Não sabia o que fazer para ganhar dinheiro, pois só sabia fotografar e ninguém parecia querer tirar mais fotos.
Mas sua vida começou a mudar quando seu melhor amigo morreu. Poderia ser tragédia, mas Anastácio mesmo me contou que a gente aprende muito com os mortos. Eles ensinam a ver coisas do nosso passado que até então vedavam a alma. Pois foi lá no enterro do amigo que lhe surgiu a ideia. De início, todos acharam macabra, mas depois tudo mudou. Foi assim que aconteceu. E reproduzo aqui com a mais fiel exatidão da inconstância de minha memória.
Anastácio estava na pracinha sentado ao lado de sua máquina, sob sol escaldante, quando vieram com a triste notícia. Zé de Cima havia morrido de estalo. Foi coisa repentina e insolúvel. Passou a mão em sua máquina e foi com aquilo para o velório. E viu os filhos de Zé de Cima aos soluços diante do paizinho falecido. Aquela cena arregalou sua alma num clique. E, zás! Sem vacilar, fotografou. Olharam o abusado. Como aquilo? Como ousas? Sem titubear, Anastácio sentenciou: É para a posteridade. Posteridade? indagaram indignados. Eternidade, tentou emendar. E entraram as carpideiras com seus véus e trajes pretos. Os gritos e lamentos alheios já iam alto. Ele viu um teatro. E, novamente, clicou. Como ousas novamente? Para a eternidade do meu amigo. Agora já respondeu mais convicto. E aquilo impressionou a família de jeito. Afinal, o Anastácio era amigo indissolúvel. Mesmo no álcool. E, verificaram, estava sóbrio. Tirou mais umas dez ou doze fotos. Fez um lindo álbum e enviou em papel celofane azul marinho para viúva. De início estranhou, mas foi só Leonilda, a vizinha, dizer que haviam ficado lindas para que o luto abrandasse o sofrer. E toda a cidade correu para ver as fotos do velório.
Quando Janildo morreu de velho que era, a família, ainda tímida, foi pedir para que Anastácio tirasse umas fotos e fizesse um álbum da fúnebre cerimônia. Tirou a poeira do lambe-lambe e aquilo virou um sucesso. E quando outros morriam ele era disputado a ponto de D. Maricotinha chegar a exclamar: "Bem que Honorato poderia morrer só um pouquinho. Iria fazer o álbum velórico mais bonito que já se viu por estas bandas."
E foi um rebuliço quando dois na cidade morreram no mesmo dia. O jeito foi realizarem juntos o velório para que Anastácio caprichasse ao máximo nas fotografias. E, empolgado, já dizia abertamente: "Olhem o defuntinho"; "Façam cara de sofrimento atroz"; "Deem uma choradinha prá cá"; "Olhem o beicinho!" Tudo em nome da boa e eterna morte.
Anastácio comprou outra máquina. O tempo passou. Ele comprou outra melhor. Melhorou sua casa com um puxadinho para um quarto para as crianças. Anastácio era um homem bom. Destes que deixam saudade por onde passa.
O tempo fez morrer outras pessoas e ele comprou uma nova máquina. O tempo corria a seu favor? Pode-se dizer que sim e não. Sim, porque sempre havia a chance de uma nova e boa morte. Não, porque o futuro chegava veloz. E, com ele, as novas e modernas máquinas fotográficas digitais.
Agora, ninguém mais precisava do Anastácio. Todos tiravam suas próprias fotos. Aquela moda passou ligeiro como a vida de um passarinho.
Anastácio, aos 78 anos, veio até meu consultório. E me contou esta história. Pedi para que ele voltasse na próxima semana.
Ele veio. E eu levei minha máquina e tirei muitas fotos dele. Fiz um álbum dele ainda vivo. "Isto é para sua eternidade em vida", falei ao entregar o álbum para ele um mês depois.
Nesta semana seu filho me ligou. Contou-me da morte de seu pai. E me disse que ele comentava sempre que eu era um bom fotógrafo. Fotografava a alma, dizia rindo com seu sorriso de transbordar o Amazonas. Disse ao filho que Anastácio é que tinha a alma fotografável. Recobria seu corpo todo. Portanto, era fácil. Fiquei muito triste como se o conhecesse ao longo de seus 78 anos. Gostaria de ter passado mais tempo com ele e aprendido como se fotografa sorrindo a alma da morte. Anastácio olhava o mundo através das lentes.
Olhava com sua alma generosa e fotografava o invisível que havia em cada um...

Este texto é uma pequena homenagem ao meu amigo Norberto Villalba Pires. Um homem bom.

sábado, 18 de setembro de 2010

Livia, a folha


Livia nascera numa inquieta manhã de primavera. O vento assobiava fininho como o uivo de uma criança que ralou seus joelhos. E era entre os galhos mais apertados que se ouvia no, ao longe, os filhotes de um ninho que teimava em não cair.
Livia era pequenina como as centenas de seus irmãos e irmãs quando nasceram daquela majestosa árvore que reinava solitária no meio de um imenso capinzal. Verde, viçosa, espreguiçava-se a cada dia reparando com seus olhinhos perscrutadores, tudo o que havia à sua volta: um pequeno riacho entre pedras serpenteava mais afoito após cada noite de sereno e chuva fina; uma touceira de bambu tingia de verde-escuro sua vista um pouco a leste; no alto da colina, um pouco mais ao sul, estava plantada a casa de seus donos. Plantada sim, pois no pensamento das árvores, tudo devia existir como elas. As pedras e as montanhas, o sol, a lua, as estrelas e mesmo as nuvens eram plantadas. É verdade que algumas destas plantas duravam pouco tempo, como as plantas-nuvens. Livia achava graça disto tudo. Daqueles seres plantados que andavam, Livia ainda não tinha tido nenhuma visão. Eram pessoas simples - ela sabia por causa de seus irmãs folhas-mais-velhas e seus tios galhos - que viviam da horta, galinhas e uma meia dúzia de vacas que, no cansaço do sol, procuravam a sombra produzida para esquecerem do calor.
Livia crescia rápido aproveitando a luminosidade informal da primavera e a chuva ocasional que lhe favorecia por estar num dos galhos mais altos de onde tinha uma visão privilegiada de todo o mundo. O mundo existia em Livia e ela adorava a seiva que alimentava seus sonhos sazonais, feitos de pássaros, raios de sol, ventos e nuvens noturnas.
Certo dia ela viu. Era a primeira vez que via. Abriu bem seus olhos por entre suas ranhuras. Esguichou-se toda por cima de outras folhas. Lá vinha o pequeno rebanho. Eram vacas holandesas, gorduchas-leiteiras. E, logo atrás, com uma varinha feita de oiti (ela reconheceria de longe), um menino de seus oito anos. Não batia nas vacas. Apenas levantava a varinha - como se fosse mágica - dava uns gritos ôôôô - e chamava cada uma pelo seu nome. Livia chegou a ouvir: Mimosa, Carambola, Azeitona..., mas o vento mudou súbito de direção e não conseguiu mais ouvir o nome entoado das outras. Eles se chegavam, suados, cansados de pastarem. Pediam por sombra e Livia entendeu de imediato que poderia ser parte do frescor que procuravam. Encheu-se de orgulho por que, pela primeira vez, iria participar de tão sombrinha causa.
Quando todos já estavam debaixo da árvore, Livia quis ser mais. Queria ser toda a árvore. Então, esforçou-se por ser maior. Procurou pela seiva que havia acumulado num tronco logo abaixo dela. E, num esforço arbóreo para buscar mais seiva, acabou, por uma destas infelicidades, por soltar-se do galho que delicadamente a prendia.
E voou. Sentiu o gosto de ser livre. Mas pagava um preço sem retorno. Desprendera-se para sempre. E o vento, caprichoso, levava-a de um lado para outro. Ora encostando nos galhos, ora despedindo-se de suas irmãs, que atônitas, olhavam sua queda.
Mas o destino quis que ela fosse cair justo no colo de André, o menino que tirava sua merecida sesta. Ele levou um susto com a folha em seu colo. Pegou-a e, instintivamente, jogou no chão. Livia ficou ali olhando o céu azul através de suas irmãs. Estivera tão próxima dele. Agora jazia entre outras folhas já mortas. E, pela primeira vez, chorou. Entendeu que a morte a acolhia, fria, como futuro adubo.
André levantou. Era hora de reconduzir o gado para o curral. Mas ele olhou para aquela folha que havia caído em seu colo. Reverenciou-se num gesto oriental e colheu Livia de seu desprendimento. Levou-a pelas mãos com carinho como se carregasse um bolo de fubá quentinho feito pela sua bisavó. Ao chegar em casa foi direto para seu quarto. Procurou pela sua coleção de Monteiro Lobato que ele carregaria por toda sua vida. Abriu nos Doze trabalhos de Hércules e, carinhosamente, depositou Livia entre as páginas 198 e 199.
Muito tempo havia se passado e André continuava fascinado por aquela coleção de Monteiro Lobato. E, sempre que chegava naquelas páginas, ele acrescentava aos feitos de seu herói, a história de Livia: uma folha que se juntou a outras folhas. André lia Livia nas entrelinhas.

domingo, 12 de setembro de 2010

JOSÉ


Cristo na Cruz - Salvador Dali

JOSÉ

Olhos cobertos de lágrimas
ombros curvos
asfixiado, mãos atadas
pelo destino
que era, é e será.

Pouco a fazer
pelo filho
ali exposto
quase nu
ensanguentado
mãos perfuradas
olhos ao céu,
arregalados
dizia em súplicas;

Pai, por que me abandonaste?

gritava o filho,
condenado.

E ele,
José,
ali, ali para sempre (invisível),
perguntava
porque seu filho
não o fitava.

Por que não era ele?
Por que não era?
Que fosse ele, o pai,
no lugar do
do filho.
Por que não?

Carpinteiro,
lançou último olhar
para a lasca
de vida
pendurada.

O filho em cruz,
suspenso no ar
e o pai,
ínfimo na terra,
sem entender
porque o filho
agiu, agia e agirá
deste modo.

Por dentro,
o pai gritava
silencioso:

Filho, por que me abandonaste?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Um trem de genealogias


José Bonifácio acordava todo dia às duas da manhã. Fazia seu próprio café e comia o bolo de fubá da noite anterior àquele dia. Esta era sua refeição para o dia inteiro. Dizia não precisar de mais. JB era foguista do Vitória-Minas. Trem sestroso, fogoso, diria rindo desdentado o próprio José Bonifácio. Quando chegava à estação, fazia mais do que verificar a lenha e o carvão para a viagem. Ele mesmo se encarregava de vistoriar cada um dos seis vagões de passageiros e os duzentos e sessenta e oito vagões que seriam carregados de minério de ferro. Era viagem para dia inteiro. Tudo tinha que estar em seu lugar para que a vida não descarrilasse, solfejava JB, filosofando.
Mas eis que certo dia a madrugada acordou chuvosa. Ou era o próprio José Bonifácio que perdera a graça no viver? Os filhos haviam casado, a mulher havia voltado para a casa dos pais na Bahia, e ele ficara de resto, como um peixe que esqueceu de subir o rio para desovar.
Pois foi na descida da serra que se deu seu grande feito. O trem já vinha embalado com suas composições serpenteando o vale que marcava a divisa de Minas para Vitória, quando teve uma ideia inusitada. O fogo ardia bem ali na sua frente. Resolveu ser ele próprio o combustível daquela composição. Queimaria pela última vez seus próprios despojos.
E foi destacando as partes de seu corpo. Primeiro retirou os pés que eram iguais ao do avô materno. Depois as coxas que eram muito semelhantes as de seu pai. Retirou os órgãos sexuais: bela lembrança arqueológica paterna. Tudo agora ardia no fogo. Deslocou a bacia, fez um torção e lá se foram as costelas também. Um olhar pela pequena janela e pode constatar como a composição ganhava velocidade jamais pensada. O fogo ria alto, sem tréguas. Desatarrachou o braço forte esquerdo e longilíneo, marca registrada do avô paterno. Jogou com leveza para dentro da fornalha. Ali se queimavam genealogias. Lembranças atávicas, suspiros feitos tantas e tantas vezes na rota da saudade. Retirou a cabeça, intacta. O crânio, não havia dúvidas, era de sua mãe. Jogou certeiro no meio do fogo. Viu que seus olhos lançaram-lhe o último olhar de despedida. Mas não havia dor ou mágoa. Por fim, antes de retirar o tórax, enfiou sua mão para dentro de si mesmo e arrancou seu coração ainda pulsante. Jogou o tórax para dentro da fornalha e, num último gesto, antes de jogar o próprio braço, jogou seu coração pela pequena janela do trem. O coração rodopiou feito pipa no ar antes de desaparecer.
Nesta hora o trem passava por cima de uma ponte com um pequeno vilarejo embaixo. O coração caiu no colo de Maria, a bordadeira solitária. Ela olhou aquele coração ainda vivo e o bordou no canto do pano de prato.
Hoje, quem passa pelo vilarejo, encontra Maria sorrindo, enigmática, rodeada de filhos do coração.