quarta-feira, 24 de março de 2010

A ilha

Marc Chagall

A ambiguidade daqueles dias destemperava a monotonia. Então acabei entrando no mar de outonos. Já não sabia ir sem ela, já não me sabia sorrir sem ela como espelho. E o mar todo me espelhava sorrisos naquela manhã rasteira de saudades. Fui para tão longe que por muito pouco não me perdi dos espelhos de espuma encardida de branco a roçar lembranças e areias. Depois de tanto mar encontrei uma ilha. Não, ainda não era ela. Eram apenas vestígios, leves pegadas de que ela ainda estaria por ali. Então, na falta de papel e garrafa, peguei um graveto e escrevi na areia carregado de esperança de que o mar embrulhasse as palavras e as entregasse como oferenda de um náufrago das utilidades desnecessárias: o presente é um passado que me relança a futuros. E fiquei com a frase espetada nos meus olhos sem conseguir enxergar mais nada como se o vento fustigasse uma paixão fugitiva. Precisava me livrar daquelas palavras que não tinham sentido algum. Precisava me livrar dela antes que a maré subisse. Fui rodeando a ilha procurando abrigos para a paixão: vestígios de seus cabelos nas algas, vestígios de suas roupas rasgadas nas pedras angulosas, vestígios do seu perfume no rio que cantarolava entre as pedras antes do encontro com o oceano. Enfim, vestígios dos nossos reflexos que tal como irmãos gêmeos não se sabem ser-sem-o-outro.
Uma pequena chuva adentrou a ilha e uma névoa cercou-me de mistérios o horizonte. Petrifiquei na ausência de coragem. Falei alguma coisa que não lembro, apenas para evitar a solidão. A tarde ausentava o dia. Havia rigor naquilo tudo, mas uma certa magia ancorava meus desentendimentos. A maré subia para além da minha compreensão. Não enxergava mais do que um míope sem seus apetrechos. Tudo me era tão claro no escuro do dia. Tudo me era tão azul no veludo da noite.
Talvez tenha cantarolado uma frase ou outra: uma antiga música que certamente havíamos dançado. Foi então que em meio a bruma você me ofereceu seu corpo: quente, úmido, selvagem. Entrelacei minha saudade e juntos ficamos ilhados em névoas atordoadas de palavras. Certamente que o outro dia não precisaria ter nascido. E já nem sei mais se realmente aconteceu.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Outono


Outono em Paris, Rosah Casanova

...então ela veio caindo sem peso aparente. Corri no afã de protegê-la da queda. Estava assustado, talvez mesmo perplexo porque jamais presenciara tal beleza. Meus pés estavam frios, quase inúteis e muito dormentes. Mas eu tentava me manter lúcido tanto quanto a ocasião me permitia. E minha lucidez era frágil, abafada pela excitação de um corpo que transbordava silêncios. Queria estar ali quando acontecesse. "Sempre acontece", me sussurraram. "Você é que nunca prestou atenção". Minha eterna distração com as coisas ao meu redor caracterizava minha pintura. Eu é que nunca a havia notado. "Você nunca nota nada", reafirmaram. Segui ao encalço da queda, mas os olhos agora embaçavam úmidos na emoção de olhar para o alto. Não muito, mas apenas suficiente para diferenciá-la das nuvens violáceas. Mal era um fim de tarde. Mal era um dia por inteiro. Não, não era a noite, mas eu temia que as horas não fossem suficientes.
Carreguei a palheta com muitas cores. Destaquei meus melhores pincéis. Desanuviei sobre a tela em branco e colori meu dia. Ela me trazia o amor-apaixonado há muito esquecido.
A luminosidade havia chegado em meus espaços, em meus intervalos irregulares. Intercalado, percorri meus humores e notei que ela estava ligeiramente diferente do que da última vez. Sim, sempre notei sua presença, mas cegava-me as possibilidades. Então, sofria feliz apenas por compartilhar suas quedas repentinas, transversais do tempo, antes do fim do dia.
Isto ela me ensinou: a morrer antes de morrer e a viver antes que seu nome fosse pintado em minhas telas. Desprender-se do céu, desprender-se de uma árvore, desarvorizar, como ela me dizia aos sussurros, era um ensinamento orgástico e diário que percorria minha espinha nas cores do outono que mais tarde tentaria reproduzir, como se isso fosse possível, em minhas telas.
Neste momento, por exemplo, já poderia morrer exultante antes do fim do dia: sua luz me engravidara sem metáforas.

segunda-feira, 8 de março de 2010

"Educação" ou aprendizagem?

foto de Educação

A vida corre sem mistérios, sem riscos e, por isso mesmo, monótona, entediante. Jenny (Carey Mulligan), uma jovem de 16 anos quer ir para Oxford estudar literatura inglesa. Questiona seu destino de mulher: sua perspectiva é que sucumbirá sem esperanças como mais uma professora de Letras. Toca violoncelo como hobby, mas é através deste instrumento na chuva que ela conhecerá David (Peter Sarsgaard), um homem com o dobro da sua idade que "oferece carona ao cello". Sedutor, apresenta uma outra vida a jovem adolescente. Com um tom bem mais ameno do que o Marquês de Sade descreveria a iniciação de uma menina na vida adulta. Do glamour das noites de música clássica em Londres dos anos sessenta, das casas noturnas de jazz e os luxuosos leilões, até a conivência com as transgressões de seu sedutor, Jenny oscila entre a educação formal e a aprendizagem da vida que é mais curta e bem mais divertida, folhetinesca. David 'perverte' não só a menina como também encanta (fascina) seus pais. O fascínio é também um fetiche: feitiço que encanta e atordoa os sentidos.
Se perverter é uma errância de caminho, o filme Educação (Dir. de Lone Scherfig, com roteiro de Nick Hornby) não mostra maquiavelicamente o que é certo ou o que é errado. Ele não cai neste clichê. Apenas diz que na vida a escolha é de cada um e que todo um curso de vida, bem o sabemos, pode desabar para outros destinos como um cisco que cai nos olhos, turvando-os em relação à antiga realidade. Um pequeno desvio inicial, nos lembram os montanhistas, pode fazer com que nos desviemos muito da nossa trilha original. Se vamos nos perder ou nos encontrar em novas bifurcações, só o tempo de caminhada dirá.
Na vida não há atalhos, porque até estes também são cursos da vida. Se é para ser vivida ou como ela será é que conta o desejo de cada um. Jenny é uma menina de seu tempo e seu tempo será o de ser mulher. Sobre isso ela não abre mão e não cede em seu desejo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

...

A cor da tristeza é cinza
Cinza é uma esperança que outonou.

Heranças




Qual é a maior herança que um pai pode deixar para seu filho? Ou, pensando de outra maneira: o que um pai pode transmitir ao seu filho? Qual é a lição de uma vida? A palavra do pai rateia em sua função de transmitir. A palavra do pai, ao se veicular primeiramente através da mãe, carrega em seu interior, a incerteza sobre o lugar a ocupar na economia psíquica do filho. Sempre é demais, sempre é de menos. Falta-a-ser: palavra que não chega, palavra que escorre deslizando entre significantes. Palavra pulsional, à deriva, sem margens. "Do rio que tudo arrasta", diz-nos Bertold Brecht, "diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o aprisionam".
O livro A maleta do meu pai, de Orhan Pamuk (Cia das Letras), ganhador do Nobel de literatura de 2007, tenta resgatar a importância daquilo que um pai delega ao filho. Na verdade, este texto é o discurso de O. Pamuk na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura do ano passado.
É inevitável lembrar de Quase Memória (Objetiva), de Carlos Heitor Cony, que também fala de uma relação entre pai e filho. O protagonista após receber um embrulho misterioso, passa a identificá-lo como tendo sido enviado pelo seu pai após a morte deste. A partir daí, Cony explora um delicado território que oscila entre a ficção e a memória a partir das reminiscências do pai morto. Os sentimentos contraditórios entre pai e filho, as amizades, as alegrias, as tristezas e os anos de convívio e aprendizagem parecem estar contidos dentro daquele embrulho preso por um barbante, com o qual só seu pai poderia ter dado aquele nó. Nó que os enlaça num afeto de cumplicidade e saudade reinventada após um período de adormecimento.
"Aquela maleta", continua Pamuk, "era uma velha amiga, uma poderosa lembrança dos meus tempos de menino, do meu passado, mas agora eu nem conseguia encostar nela. Por quê? Sem dúvida por causa do peso misterioso do seu conteúdo. Agora vou falar do que esse peso significa. Ela tem o significado daquilo que toda pessoa cria quando fecha a porta e se refugia num canto, diante de uma mesa, para exprimir os seus pensamentos – o significado da literatura." A partir daí Orhan Pamuk irá descrever seu medo e encanto de encontrar um pai totalmente desconhecido dentro daquela maleta. Um pai que por algum motivo pudesse ter sido um grande escritor sem ter publicado um único livro; apenas suas anotações. Mas, "a primeira coisa que me mantinha distante do conteúdo da maleta era, claro, o medo de não gostar do que pudesse ler. Como meu pai sabia disso, tomara a precaução de agir como se não desse muita importância ao seu conteúdo. Depois de 25 anos trabalhando como escritor, isso me incomodou. Mas não quis me irritar com meu pai por ele deixar de levar a literatura a sério... Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que eu não queria aprender ou descobrir, era a possibilidade de que ele fosse um bom escritor. Era esse o medo que me impedia de abrir a maleta." Para Pamuk, um escritor é uma pessoa que passa anos tentando descobrir com paciência um segundo ser dentro de si. "Escrever é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma – com paciência, obstinação e alegria."
O medo de encontrar um bom escritor no pai é porque ele sabia que seu pai amava a vida, a liberdade, os amigos e muita gente ao seu redor. E um escritor é uma pessoa que "fecha a porta e se recolhe com seus livros." Este é o belíssimo contraponto deste texto: seu pai em suas viagens para fora da Turquia sempre lhe trouxe livros de presente. Sempre recusou a mostrar-lhe um "mundo dotado de um centro". Esse olhar que se costura por fora da margem dos limites de seu país, era também um olhar construído a partir de alguém que sabia que a literatura abria outros caminhos que não só aqueles que rivalizavam o ocidente com o oriente. Assim, Pamuk aprendeu que viver era participar da vida real modificando-a através da escrita, pois tal como diz Mallarmé, "tudo no mundo existe para ser posto num livro".
Reconheço em Orhan Pamuk um processo muito semelhante àquele que encontro na psicanálise. Aliás, este mérito é do próprio Freud que dizia que os poetas e romancistas sabem muito melhor descrever os processos psíquicos do que os próprios analistas. "Para mim", diz Pamuk, "ser escritor é reconhecer as feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal temos consciência delas, e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos dessas dores e feridas e transformá-las em parte consciente do nosso espírito e da literatura." Isso é exatamente o percurso de uma análise: explorar com paciência as feridas secretas – do inconsciente – para que se possa iluminá-las e dar-lhes outro destino. "O escritor fala de coisas que todos sabem, mas não sabem que sabem." Não poderia haver definição melhor do que é o estatuto do inconsciente: um saber não sabido. Seria isso uma literanálise? Creio que seu pai não poderia ter lhe deixado uma herança melhor do que esta. A transmissão de um mundo a ser continuamente reinventado através da ficção.