segunda-feira, 19 de junho de 2017

A escrita como ofício


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A escrita como ofício

“É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho.” (Marguerite Duras – Escrever/ Rocco)
É sempre marcado pelo passado que se escreve. O ato de escrever é, de alguma maneira, uma tentativa de reconciliação com nossas memórias. Ora, a memória é também composta por restos fragmentários que ficaram inconclusos na vida cotidiana. Muitas vezes são restos que nos assombram, noutras nos deterioram pela fragilidade à qual eles nos expõem. Duras nos diz que o que ela condena nos livros “é que eles não são livres. Vê-se isto através da escrita: eles são fabricados, organizados, regulamentados, convenientes, poderíamos dizer. Uma função de revisão que o escritor, muitas vezes, exerce em relação a si mesmo.”
Freud, dizia que uma das funções de uma análise era preencher as lacunas da memória e, assim, livrar o sujeito de seus traumas e medos infantis que ficaram soterrados sem a menor possibilidade de dar um sentido claro ou uma significação coerente. Então, uma análise também é resignificar os fatos adormecidos, as histórias submersas, verdadeiros tesouros arqueológicos da nossa infância vivida ou devaneada. “Esse escrever”, continua Duras, “é perder-se de si mesmo no interior da casa. É escrever apesar do desespero. Não: com desespero”. Para Marguerite Duras, escrever é como estar só numa casa. “Não do lado de fora, mas dentro.”
Entrar dentro de um livro é como entrar numa enorme caverna com seus labirintos em busca de uma aventura, um romance ou de uma caçada policial sem passar pelos perigos que os personagens vivem.
Assim, o leitor se torna co-autor do autor passando magicamente a fazer parte da 'memória' vivida deste. Memória vivida ou memória inventada, pouco importa.
São memórias afetivas que estimulam nossas identificações. São atavismos perdidos que um livro pode recuperar. Um livro diz respeito à memória do seu autor, mas produz do lado do leitor, a possibilidade de recuperar imagens perdidas, tal como num filme musical remasterizado. Porém, o que é mesmo memória e o que é memória inventada em relação ao próprio leitor? O déjà vu é algo que o sujeito viveu, ou foi 'fabricado' pelo autor confundindo de vez as lembranças perdidas?
O ofício do escritor é inventar memórias: as suas e a dos outros. Lá onde não havia nada, você coloca uma ação, um romance no qual o sujeito no próximo encontro com sua amada vai dizer as palavras que o protagonista disse e que parece que saíram de sua boca. É comum lermos trechos inteiros de um livro, ou uma poesia, e acrescentarmos que "era exatamente isso que eu pensava, mas não sabia como falar". O escritor fala, então, ao coração do leitor. Empresta sua voz (e , claro, dos seus personagens) àquele que o lê.
Muitas vezes, o escritor se torna uma espécie de ghost writer para o leitor. Mas, isso acontece também dentro do próprio romance como é o caso de Cyrano de Bergerac, no qual o personagem, que se achava muito feio, escreve para que um outro o interprete.
A palavra do escritor tem por função fazer ponte entre os abismos que existem na vida das pessoas e, assim, possibilitar a crença de que o leitor possa tocar com suas próprias mãos regiões antes inalcançáveis.
Há enormes paralelos entre o escritor e um psicanalista. Um deles diz respeito a que ambos possibilitam que o leitor ou o paciente interprete seus próprios textos. O texto do escritor é interpretado pelo leitor através de suas experiências pessoais e outras leituras. O psicanalista leva o paciente a formular também seus próprios textos, a escutá-los, dando a cada palavra proferida a devida dimensão de sua paternidade e autoria. Não é à toa que alguns analisandos terminam suas análises e vão escrever livros relatando sobre o percurso transcorrido. Vão ficcionalizar sobre a realidade inventada, a memória perdida e a redução inesgotável de suas dores. Escrever sobre o resgate da memória perdida é refazer a parábola do filho pródigo ou do pastor que tendo cem ovelhas e perdido uma, largou as noventa e nove e foi atrás da que se perdeu. Certos pequenos restos perdidos do passado são mais incômodos e contundentes (possuem a força de um tsunâmi) do que toda uma biblioteca de Alexandria de pura e boa memória.
O escritor é um sujeito que sofre. Também possui suas humanidades, poderiam vocês contra-argumentarem. Mas, não só. O escritor sofre, padece da palavra. Sofre dela, por ela e através dela. Sofre e se regozija pelo encontro. Sofre pelo desencontro tal como no fim de um baile de máscaras; 'não era ele, não era ela'. É como pensava Duras sobre estar dentro, mas do lado de fora. Solidão.
A memória do escritor é atualizada na palavra construída, inventada por ele e, assim, resignificada sobre o tempo perdido. Quem escreve, não perde tempo. Quem escreve, não se perde do seu tempo. Quem escreve, não se perde no tempo. No tempo das memórias inventadas.

Carlos Eduardo Leal
Psicanalista e escritor
Para quem gosta de ler ouvindo música: Marina de La Riva – c

HERANÇAS


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HERANÇAS




Qual é a maior herança que um pai pode deixar para seu filho? Ou, pensando de outra maneira: o que um pai pode transmitir ao seu filho? Qual é a lição de uma vida?
O livro
A maleta do meu pai, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras), ganhador do Nobel de literatura de 2007, tenta resgatar a importância daquilo que um pai delega ao filho. Na verdade, este texto é o discurso de O. Pamuk na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura do ano passado.

É inevitável lembrar de Quase Memória (Objetiva), de Carlos Heitor Cony, que também fala de uma relação entre pai e filho. O protagonista após receber um embrulho misterioso, passa a identificá-lo como tendo sido enviado pelo seu pai após a morte deste. A partir daí, Cony explora um delicado território que oscila entre a ficção e a memória a partir das reminiscências do pai morto. Os sentimentos contraditórios entre pai e filho, as amizades, as alegrias, as tristezas e os anos de convívio e aprendizagem parecem estar contidos dentro daquele embrulho preso por um barbante, com o qual só seu pai poderia ter dado aquele nó. Nó que os enlaça num afeto de cumplicidade e saudade reinventada após um período de adormecimento.
"Aquela maleta", continua Pamuk, "era uma velha amiga, uma poderosa lembrança dos meus tempos de menino, do meu passado, mas agora eu nem conseguia encostar nela. Por quê? Sem dúvida por causa do peso misterioso do seu conteúdo. Agora vou falar do que esse peso significa. Ela tem o significado daquilo que toda pessoa cria quando fecha a porta e se refugia num canto, diante de uma mesa, para exprimir os seus pensamentos – o significado da literatura." A partir daí Orhan Pamuk irá descrever seu medo e encanto de encontrar um pai totalmente desconhecido dentro daquela maleta. Um pai que por algum motivo pudesse ter sido um grande escritor sem ter publicado um único livro; apenas suas anotações. Mas, "a primeira coisa que me mantinha distante do conteúdo da maleta era, claro, o medo de não gostar do que pudesse ler. Como meu pai sabia disso, tomara a precaução de agir como se não desse muita importância ao seu conteúdo. Depois de 25 anos trabalhando como escritor, isso me incomodou. Mas não quis me irritar com meu pai por ele deixar de levar a literatura a sério... Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que eu não queria aprender ou descobrir, era a possibilidade de que ele fosse um bom escritor. Era esse o medo que me impedia de abrir a maleta." Para Pamuk, um escritor é uma pessoa que passa anos tentando descobrir com paciência um segundo ser dentro de si. "Escrever é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma – com paciência, obstinação e alegria."
O medo de encontrar um bom escritor no pai é porque ele sabia que seu pai amava a vida, a liberdade, os amigos e muita gente ao seu redor. E um escritor é uma pessoa que "fecha a porta e se recolhe com seus livros." Este é o belíssimo contraponto deste texto: seu pai em suas viagens para fora da Turquia sempre lhe trouxe livros de presente. Sempre recusou a mostrar-lhe um "mundo dotado de um centro". Esse olhar que se costura por fora da margem dos limites de seu país, era também um olhar construído a partir de alguém que sabia que a literatura abria outros caminhos que não só aqueles que rivalizavam o ocidente com o oriente. Assim, Pamuk aprendeu que viver era participar da vida real modificando-a através da escrita, pois tal como diz Mallarmé, "tudo no mundo existe para ser posto num livro".
Reconheço em Orhan Pamuk um processo muito semelhante àquele que encontro na psicanálise. Aliás, este mérito é do próprio Freud que dizia que os poetas e romancistas sabem muito melhor descrever os processos psíquicos do que os próprios analistas. "Para mim", diz Pamuk, "ser escritor é reconhecer as feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal temos consciência delas, e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos dessas dores e feridas e transformá-las em parte consciente do nosso espírito e da literatura." Isso é exatamente o percurso de uma análise: explorar com paciência as feridas secretas – do inconsciente – para que se possa iluminá-las e dar-lhes outro destino. "O escritor fala de coisas que todos sabem, mas não sabem que sabem." Não poderia haver definição melhor do que é o estatuto do inconsciente: um saber não sabido. Seria isso uma literanálise? Creio que seu pai não poderia ter lhe deixado uma herança melhor do que esta. A transmissão de um mundo a ser continuamente reinventado através da ficção.
Carlos Eduardo Leal
Psicanalista e escritor
Para você que gosta ler ouvindo música, não perca o cd da Stacey Kent: "The boy next door"


Os Anjos Caídos no Paraíso Perdido


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Os Anjos Caídos no Paraíso Perdido

A recordação da felicidade já não é felicidade, enquanto a dor é ainda dor.
                                                                           Lord Byron

A idéia do Paraíso Perdido sempre foi fascinante para o ser humano. A vontade de reencontrá-lo parece ter sido substituída por um lenimento na tradição cristã, um adiamento post mortem, ou seja, a felicidade seria alcançada no encontro com Deus. Por que Adão, o primeiro anjo pecou, nós, anjos caídos descendentes dele, estamos fadados a cada passo a estarmos mais próximos do cadafalso. A esperança plantada como uma célula terrorista em nossos corações, ou como um chip infestado de vírus em nossas almas é de que a Terra é tudo aquilo que não é o Paraíso Perdido. E, de nossa parte, parece que estamos bastante empenhados em fazer dela a confirmação do que disse: uma devastação nas condições de vida que vão das relações do homem com o meio-ambiente até as mortificações das inter-relações.
O escritor holandês Cees Nooteboom teve uma experiência real muito interessante. Nooteboom relata que foi convidado para um evento de arte em Perth, pequena cidade da Austrália: ele e algumas outras pessoas iriam fazer um percurso por certos lugares na cidade para encontrar anjos. Pessoas comuns vestidas de branco e com asas, nas mais diversas situações. Num prédio abandonado, atrás de um armário, olhando para a parede estava uma mulher imóvel vestida de anjo. Um anjo decaído. Ficou fascinado por aquela personagem ali jogada olhando para o nada. Tentou conversar com ela. Após algum tempo, o máximo que ouviu foi: “não posso falar com o senhor”.  Foi a partir desta experiência que ele escreveu Paraíso Perdido (Companhia das Letras).
O livro conta a história de Alma - o nome é proposital – uma linda e jovem brasileira que após ter sido estuprada numa favela em São Paulo, voa para a Austrália com sua melhor amiga, Almut. Ambas têm descendência alemã, estudam história da arte e Alma é obcecada por anjos. Ela terá um affaire com um pintor aborígine feito de sexo e longos silêncios à beira-mar. É ela quem se transformará no anjo cênico. Paraíso Perdido é um pequeno labirinto metalingüístico onde o acaso anda à solta, como um anjo, a promover encontros e presenciar desencontros e mal-entendidos humanos, demasiadamente humanos, diria Nietzsche.
Em certo momento dá-se o encontro com o anjo: “E ele? Um homem num aposento fitando um anjo estendido no chão. Anjos são seres míticos, mas em pleno século XX caem na categoria do kitsch, da ironia ou da encenação. E, ainda assim, aquele corpo mirrado e encolhido, aqueles pés descalços, todo aquele ser feminino – porque era uma mulher, ele tinha certeza, por mais que parecesse com um menino – causara nele um efeito: medo, comoção, desejo. Ele precisava vê-la levantar-se e bater aquelas asas que jaziam, grotescas, na poeira.” Retorna ao hotel, mas naquela noite ele não irá dormir. Pensa nela continuamente nela. Todo anjo é atemorizante, escreveu Rilke. E onde há medo, também há desejo. No dia seguinte ele retorna. “Pousa o olhar no rosto imóvel, nos pés descalços, nas asas. O que aconteceria se ele dissesse alguma coisa? Um tijolo arremessado contra um espelho, um ruído de cacos se quebrando, uma espécie de gemido vítreo, e o silêncio volta a se impor. Um silêncio dos que violam o intangível. Senta-se, de costas para a parede. O tempo, desprovido de peso, recebia um lastro em que tudo pesava: a tensão, o pressentimento de uma cilada. Pensa ter ouvido alguém se aproximar, mas é um alarme falso. Ele toca uma das asas bem de mansinho, com a maior ligeireza possível. – Please, go away. – I cannot. I want to talk to you. (...) Acontece que me apaixonei perdidamente por você”, ele diz. “Foi por causa das asas. Você não foi o único. Mas anjos e seres humanos são incompatíveis”.
É nesta tênue linha entre ficção e realidade que Cees Nooteboom transita e parece nos levar ao intangível das relações.
O acaso faz com que o ‘autor’ e Alma se encontrem no avião de volta. Ela lhe sussurra: “Será que o senhor já parou para pensar no inventor do Paraíso, um lugar onde não ocorrem mal-entendidos? O tédio incomensurável que deve reinar lá só pode ser entendido como uma punição. Para inventar algo assim, só mesmo um mau escritor.”
Se estamos fora do Paraíso, qual é o habitat que esta Terra nos reserva? Será que a humanização tem nos tornado demoníacos?
Harold Bloom, Anjos Caídos (Objetiva), escreve que “o anjo Adão foi um anjo caído que logo pôde ser distinguido de Deus. (...) Eu afirmo alegremente que todos nós somos anjos caídos, e trato agora de nos separar e de nos afastar para longe de nossos primos mais antipáticos, os demônios e os diabos.”

Carlos Eduardo Leal
Psicanalista e escritor

Para quem gosta de ler ouvindo música, a voz de um anjo: Virgínia Rodrigues no cd Recomeço. Principalmente, a primeira faixa: Todo o sentimento (Chico Buarque e Cristóvão Bastos). Biscoito Fino.



sábado, 17 de junho de 2017

No sítio do meu vô




João Luis não sabia o que era o amor. Sua mãe avisou que não era negócio seguro não. Pegava, virava ao avesso e depois deixava assim na grama sem desvirar feito jabuti. Achou engraçado porque gostava de desvirar jabutis. Tinha lá seu quinhão de sabedoria e alguma astúcia ao fazê-lo. Seu vô disse: o retorno do vento no rosto é garantia de enamoramento. Se nos olhos entrasse poeira, areinha que fosse, e lacrimejasse, era amor na certa. O certo é que João Luis tinha uma árvore que era só sua. Ficava lá no mais alto dos morros do sítio. Assim: havia um descampado, e no meio do nada do capim, brotava imensa, majestosa e com copa suficiente para abrigar o menino e sua enorme imaginação. Da sombra assentada sobre o capim, sombra que balançava e voava nas horinhas do dia, João Luis sentava e fertilizava amores por aquela árvore. As raízes eram o prolongamento de suas ideias e seus braços esticavam tanto que faziam cosquinha do verde das folhas com o azul do céu. De lá avistava o mundo. Diante de seus olhos descortinava um vale e vez por outra, algumas vacas e inúmeros passarinhos. O amor por aquela árvore havia fisgado nos olhos e na carne macia de sua alma. Reciprocidade e reconhecimento não eram nomes ditos pelo avô Chico, mas era sentimento que transbordava sem carecer de palavras. Dizem que até hoje, face enrugada, olhos cansados de marejar a vida, o menino ainda aparece por lá naquele amor só dele. Amor endoidecido de menino pela natureza nunca careceu de razão não senhor.

Carlos Eduardo Leal