segunda-feira, 29 de junho de 2009

Saudades

Fulda in Melsungen
Num determinado período da minha vida decidi morar na Alemanha. Não foi uma escolha fácil, mas decisiva. Alguns de vocês poderão me perguntar por que Alemanha? Razões particulares me levaram para lá como também outras igualmente particulares impulsionaram-me a sair daqui. Pois bem, fui. E, após um deslumbramento necessário, e também antes de comprar uma mochila para viajar pela Europa de carona ou trem, comecei a sentir saudades. De início não sabia muito bem do que eu sentia saudades. Ou de quem. Do Brasil, de alguma pessoa em especial? Eu estava longe. Longe de tudos e de todos. Foi quando numa noite ao chegar na estação após uma curta viagem até uma cidade vizinha e caminhar de volta até a minha casa, dei por mim sobre aquela estranha sensação. Eu estava longe, muito longe de mim. Comecei a sentir saudades de quem eu era no Brasil. Mas, eu não havia saído/fugido de uma insuportabilidade para a minha alma? Como agora eu poderia sentir saudades?
Foi caminhando pelas ruas desertas de Melsungen, pequenina cidade ao sul da Alemanha às margens do rio Fulda, que dei por mim. Ou melhor, dei pela minha falta. Faltava muito de mim em quem eu era. Atônito, atordoado, deambulei pelas vielas escuras, atravessei uma ponte, retornei pelo outro lado da estação e me debrucei sobre mim mesmo diante daquela constatação: eu estava desolado na alma. Ir para a Alemanha naquelas condições não me trouxera nenhum alívio, porque agora eu estava diante de um muro das lamentações e, este muro, só tinha um nome grafitado nele: o meu.
Assim, no dia seguinte, compulsivamente comecei a escrever cartas. Não eram quaisquer cartas. Eram cartas vigorosas, apaixonadas, decididas em seu propósito. Todas as cartas só tinham a mim como destinatário e um único endereço: minha casa no Brasil. Tinha medo de não me reencontrar, tinha medo da vertigem de não saber mais quem eu era, tinha medo de ter medo. E, nestas horas, a solidão te empresta o que ela tem de mais cortante para edificar os seus propósitos. A lâmina da saudade. Queria buscar uma pessoa que lenta, mas imperiosamente, desvanecia bem diante dos meus olhos. A cada dia diante do espelho, um pouco de mim se perdia na infinita reduplicação das minhas imagens. Em contrapartida, ainda mais febrilmente eu corria para escrever para mim mesmo as palavras que ainda eram possíveis de serem lembradas do que ainda havia dos contornos da minha imagem.
Devo ter postado mais de mil cartas, cada uma com cinco ou seis páginas escritas com minha letrinha miúda, o que significa que andei escrevendo um enorme tratado de umas cinco mil e tantas páginas sobre mim. Não sabia que tinha tanto assunto a meu respeito.
Depois de me escrever até onde a lembrança alcançava, comprei uma mochila e fui viajar pela Europa. Demorei o tempo da volta de uma enorme e secular roda-gigante até retornar ao Brasil.
Encontrei um maço enorme de cartas amarradas com um singelo barbante e dois nós bem dados por cima das minhas palavras. Ali estavam todas as palavras que não couberam dentro de mim naquela viagem. Elas cabiam uma dentro das outras, uma por cima das outras, irmanadas através da mesma letra.
Achei que elas ficariam melhor assim. Bem amarradas. Afinal, as cartas rascunhavam entre o peso da saudade e a leveza do reencontro.
Agora estão no fundo da minha gaveta. São minhas memórias, um pedaço importante da minha autobiografia. Talvez algum dia você as encontre e resolva levá-las para uma editora. Mas, por enquanto, elas precisam amarelar o risível de um tempo esquecido.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

moonwalker ou, Pai eu também sei dançar

Ia escrever sobre a alegria, mas a morte ontem de Michael Jackson me enveredou por outros caminhos. Não são caminhos da tristeza. Desculpe Michael, adoro música, você foi brilhante no que você fez e, confesso, muitas vezes dancei ao som de Thriller e sonhei enamorado ao som de Ben, mas eu, tal como grande parte do mundo que te conhecia, passamos a sentir mais pena no que você foi se tranformando do que tristeza. Temos a sensação de que toda a morte é prematura, pois ela parece vir sempre antes do tempo final. Mas, afinal, no que você foi se transformando?
Você se preparava para mais uma tournée e, segundo a imprensa, você estava feliz porque seria a primeira vez que seus filhos o veriam no palco. E isto é extremamente prematuro, não só por você, mas acentuadamente por causa deles.
Mas minha atenção se dirigiu para uma entrevista dada em tempo recente, ou quando você já havia se despigmentalizado. Você disse que seu pai batia bastante no seu rosto e o chamava de "feio, monstro horroroso, macaco", segundo suas próprias palavras.
Então, posso compreender o motivo da sua transformação. Ao menos conjecturo aqui uma hipótese. Você foi se transformando inconscientemente em alguém em quem seu pai pudesse ter amado. Ele era preconceituoso e você viu na possibilidade da transformação, um 'thriller' diferente para o curso da sua vida. Inventou este passo maravilhoso, o moonwalker, um passo suave que é como quem está andando na lua, no mundo da lua. De criança pobre, você se tornou o rei do pop. Um astro. Mas, no fundo, não era bem isso. Havia algo mais que não se contabilizava em números. Adotou crianças (quis ser pai sem o ser biologicamente), ajudava outras com doenças terminais, foi acusado de molestar algumas sexualmente, fez bizarrices inaceitáveis como sacudir um recém-nascido de uma varanda, morava num castelo e se resignava a crescer tal como o Peter Pan. Mas queria se modificar. E como se modificar sem crescer? Difícil paradoxo. O coração não aguentou. Seus filhos não o viram no palco da vida. Como ser pai sem querer deixar de ser uma eterna criança? Modificou-se por fora, mas dentro parece que sempre carregou o peso da palavra paterna a ferir-lhe a alma. Esta disjunção tornou-se incompatível e, sua voz, ficou presa em seus passos que agora devem estar mostrando ao pai como se anda na lua.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A inveja

Loretta sempre teve uma queda por homens mais velhos. Quando criança adorava os 'tios', fossem eles verdadeiros ou postiços. Chamava de tio qualquer um com mais de trinta e fazia questão de que eles a chamassem de sobrinha ou, quando muito, de Lori. Vai que a vida corre a galope sincopado e a menina cresceu em exuberância de seios e coxas bem torneadas, mas a ideia dos tios continuava a mesma de quando menina. Encasquetava de querer namorar só homens bem mais velhos. Aos dezesseis deu em cima do pai de Clarinha, sua melhor amiga da escola, que havia acabado de ficar viúvo. Seu Haroldo riu sem graça das insinuações quase que impertinentes da colega da sua filha. Mas Lori era insistente. Quando colocava uma coisa na sua cabeça, aquilo ganhava a dimensão de uma verdadeira obsessão. E esta ideia fixa a consumia em suas noites e dias. Ficava à la cebolinha tratando de arranjar um 'plano infalível' para caçar um 'coroa' que era como suas amigas chamavam os homens da preferência da Lori. Clarinha, passada a raiva da amiga ter dado em cima do seu pai logo após a morte da mãe, tentou arranjar uns quatro ou cinco caras para ficarem com a Lori, mas ela nem deu bola. - Clarinha, minha amiga, disse Lori, você só me arranja fraldários. Gosto de segurar nuns cabelos grisalhos. Eles possuem mais vivência e eu gosto da 'pegada' da experiência e não daquelas mãos que não sabem o que fazer com elas.
Mas o destino é embaraçoso em seus caprichos e as veredas sorrateiramente moleques a quererem pegar peça na pobre garota. Em todo cara que ela dava em cima tudo não passava de uma única noite. O livro podia ser lido numa única noite riam os homens da cara dela. Mas, o que acontecia que nada acontecia ou ia muito além? Era muito oferecida?
Pois acontceu o que de pior poderia acontecer a uma garota, agora com dezenove anos. Num fim de semana ela tinha ido viajar com os pais e, infelicidade, o carro desgovernou, saiu da estrada, capotou e sua mãe veio a falecer antes de chegar ao hospital.
Traumatizada e ainda chorando muito, ela e o pai conseguiram ficar no mesmo quarto do hospital. Ele havia fraturado duas costelas e o maxilar e Lori fraturara o punho esquerdo, e as duas pernas além de sofrer várias escoriações pelo rosto, marcando-o profundamente.
Mas nada é tão ruim que não possa piorar.
Clarinha, lembram dela? Há anos a melhor amiga de Lori... Pois é, ela veio visitá-los e quando os viu desmaiou. Os médicos acorreram em socorrê-la e, pelas condições precárias do hospital de beira de estrada, recostaram-na na mesma cama do pai de Lori. Quando acordou estava recostada no peito de Nataniel, o pai da Lori, que a estas alturas fuzilava a amiga com o olhar.
Mas, vocês podem estar se perguntando: como é que a Lori poderia nutrir um sentimento destes pela sua melhor amiga que nunca gostou de homens mais velhos e, ainda por cima, justamente quando sua mãe havia acabado de morrer? Recorro ao velho Shakespeare que dizia que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.
- Quer sair de cima do meu pai! Foi a primeira frase dita aos gritos e com extrema raiva pela Lori assim que Clarinha abriu os olhos. Mas Nataniel, tal como F. Pessoa, num gesto largo, liberal e moskovita, abraçou a menina com ternura e agradecendo pelo carinho disse quase que sussurrando: Clarinha, fique aqui o quanto você quiser. Clarinha sorriu condescendendo. Lori fuzilou ainda mais a amiga que recostou-se ainda mais e mais naquele ombro amigo.
Já em casa Clarinha ia todos os dias visitar os dois. Dava um beijo na amiga e sumia. Silêncio na casa e Lori com as duas pernas imobilizadas sem poder levantar-se gritava aos soluços que agora entendia tudo, entendia aquela sacanagem que os dois estavam fazendo com ela, só não entendia a vida. Ela que sempre quis um homem mais velho via agora como tudo se desenrolava. Não, não era possível, sua melhor amiga com seu pai.
Seus quarenta dias de agonia na cama deram-lhe tempo suficiente para municiar-lhe a inveja do romance que agora se consumara de fato. Entre os intervalos da fisioterapia pesquisava coisas em segredo na internet. Ficava horas trancadas em seu quarto e, obviamente, nunca mais dirigira a palavra para sua ex-melhor amiga que vivia não só na situação que ela sempre quis, mas que também roubara seu pai.
Estava decidida, se ela não podia ter ninguém como ela queria, sua amiga também não. Cegara-se em sua iracunda decisão: ia matar Clarinha. Só ainda não sabia como. E era isso que pesquisava na internet. Como cometer um assassinato perfeito.
Ah, mas a inveja é um para-chóque de caminhão. A inveja é uma merda, pois querer estar no lugar do outro é perder de vez o seu lugar. E entre o pensamento e o ato a excutar, eis que a pobre Lori perdeu a razão. Vestia-se com as roupas da Clarinha, cortava e pintava o cabelo tal como a amiga e dizia ser ela. E era mesmo impressinante a semelhança a ponto do próprio pai confundí-la com a amiga. Embirutou, diziam nas redondezas. Saía pelas ruas só de calcinha e sutiã com uma faca na mão e a foto da Clarinha na outra. Tentaram, acalmá-la, mas foi impossível. A menina gritava e chamava pelo pai, diga-se de passagem, chamava pelo pai de Clarinha, fique bem entendido. Chamaram o Corpo de Bombeiros e a internaram numa clínica psiquiátrica.
Quando o pai, consternadadamente triste foi visitá-la, não encontrando a Clarinha, acabou indo só. Achou inclusive que seria melhor assim para sua filha não ver sua rival e causa de toda aquela loucura. Mas quando ele chegou lá, qual não foi seu espanto quando encontrou Clarinha amarrada numa camisa-de-forças, e com os olhos esbugalhados de tanto haloperidol, apenas espumava com um sorriso perdido no horizonte e já sem o brilho dos dias felizes.
A inveja nem sempre mata, mas pode enlouquecer.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

mar dos sonhos

Mar de Libros Viejos por Bacteriano.

As páginas dos livros são labirintos que tal como a Esfinge também interrogam àqueles que se aventuram por entre elas. O "decifra-me ou te devoro" torna o livro vivo como se fosse, ele próprio, um personagem real.
Não posso fingir mais para vocês. Eu sou um deles. Sou aquele ali no alto à esquerda. Estava ali em pé com minhas páginas abertas tal como as portas de um santuário. Um santuário à espera de ser lido, compreendido, talvez. Não esperava muito das pessoas. É verdade que meus personagens, meu protagonista e seus coadjuvantes interpretavam uma história que oscilava entre a aventura romântica e o burlesco. Uma bela história, porém medíocre sem grandes mistérios ou enigmas. Passível de ser entendida até por iletrados. O meu único prazer era perceber que estava rodeado por celebridades, grandes nomes da literatura mundial e, assim, talvez por osmose, complacência ou fidalguia, eu conseguisse extrair uma grande teoria filosófica ou um verdadeiro drama humano que desse dignidade e consistência às minhas páginas. Mas ainda me sinto tonto, embriagado de letras: extemporâneas, pirateadas por algum marujo especialista em contrabando de ideias, loucas, doidas em sua origem, totalmente perdidas, destrambelhadas para a vida, corroídas por algumas ideias suicidas (talvez o Vila-Matas com seus Suicidios exemplares esteja por perto), frases mallarmaicas, prosas baudelaireanas e algum egoísmo em querer ser tudo e todos e, contudo, não conseguir nem passar por debaixo da porta. Não, não sou um livro para ser lido. Sim, fui escrito, mas caí em desuso. O tempo que se esvai esgota-me a força das ideias e o pensamento se turva entre uma página e outra. Amo meus pares. Amo estar no meio dos outros livros. Já disse. Se não for por osmose, que seja pelas mesmas traças que nos consomem. Assim nos livraremos do que há de pior em nós e pouparemos o leitor do cansaço e da perda do tempo. Seremos breves opúsculos. Poucas linhas em pé daquilo que restar de nós. Somos o resto do que não coube em nossos autores, somos a palavra decaída no papel e, se por força do destino ainda nos mantemos em pé, é só para que o vento nos colonize com os olhares da próxima primavera.
Digo novamente. Prefiro este ser labiríntico, enigmático, sonhador de esfinges. Eu sou um livro, um livro num mar de sonhos. Ainda assim, você insiste em querer nadar em mim?



sábado, 13 de junho de 2009

O ciúme

Cecília puxou repetidamente o decote da blusa com a ponta do indicador direito. Isto era um sinal claro da sua impaciência com o atraso de Oswaldinho. 'Filha única de dois casamentos'. Seu pai havia abandonado sua mãe logo após o seu nascimento, mas ela rapidamente arranjou outro marido/pai. Assim ela se definia: filha única, meio órfã, meio adotada de dois casamentos. Cresceu entre a saudade do pai biológico (que se mudou para a Escócia para trabalhar num barco pesqueiro) e o mimo exagerado de sua mãe e do pai adotivo. Ciça era mimada como a primeira boneca é para uma criança pequena. Soava mais à infantilização do que ao mimo, ou melhor, o excesso de proteção acalentava a vontade suprema de ser eternamente cuidada tal como um bibelô. Assim, exigia dos homens que cumprissem à risca os seus caprichos. Com o pobre do Oswaldinho não era diferente. O rapaz esforçava-se para atendê-la em seus mais inusitados pedidos. Parecia um astro da música em tournée pelo Brasil. No meio da noite cismava e pedia: "Quero um milk shake de baunilha com flocos de castanha por cima". "Quero que você me leve na casa da vovó antes dela ir para a missa de domingo". "Quero que você massageie os meus pés porque eu estou muito cansada". A todas estas tirânicas exigências, Oswaldinho tratava de cumprí-las à risca, apaixonado que era pela 'minha doce Ciçazinha'. Parece que ele incrementava na menina o estrago que a educação dos pais havia feito desde que ela ainda era uma criança. 'Cresceu cheia de vontades', diziam os avós, mas ninguém, nem mesmo eles, tinha coragem de dizer um único não para não contrariá-la.
Mas aconteceu que certo dia ao sair da faculdade, Estela - ah, a menina mais bonita da faculdade -, pediu carona ao Oswaldinho. Este bem que pensou na hora em recusar com o temor de que Cecília o visse com a espetacular loura mais cobiçada do pedaço. E aconteceu também, assim quis o destino, que Cecília fosse justamente naquele dia, coisa que nunca fazia, pois era smpre ele quem deveria buscá-la, fazer uma surpresa ao Oswaldinho encontrando-o na porta do estacionamento da faculdade. E como estas coisas acontecem num efeito cascata, Estela não conseguia prender o cinto de segurança e, com todo o jeito, mas muito sem graça, Oswaldinho virou-se na direção da loura para prender o cinto dela. Pois foi justamente nesta hora que Cecília viu a cena. Os longos cabelos de Estela encobriam o rosto de Oswaldinho que, de longe, parecia debruçado sobre o seio da menina. Ao ver esta cena, Cecília ao invés de ter um ataque histérico (era o que todos temiam pela sua iracunda fúria), caiu desmaiada como um pato selvagem abatido em pleno voo.
No dia seguinte Cecília não foi para a faculdade. Amanheceu com uma febre escaldante saída diretamente do Saara. Nem no outro dia e nem mesmo no outro e nem o resto da semana. Cecília podia ser extremamente mimada, mas par manter-se como primeira em tudo, er também aluna dedicadíssima. Jamais faltava a aula. A coisa deveria ser muito grave. Sua mãe ficou extremamente preocupada, chamou o médico da família que não descobriu nada, apenas fadiga pelas noites insones.
Oswaldinho chegou apreensivo na sua casa na sexta-feira por volta das 18:30h. Assim que ela o viu debulhou-se num tsunâmi de convulsões estarrecedoras. Por dentro gritava 'filho da puta, cretino, traidor', mas diferentemente do seu cotidiano tão falante e autoritário, não conseguia emitir nenhum som, nem uma única palavra sequer. O que ele ouviu foi um som gutural, quase balbuciante, que parecia com 'não me deixe', mas ele não entendeu. E não entendeu não só porque era cavernoso o seu falar, principalmente não entendeu nada porque ela nunca havia chorado ou mesmo abaixado o nariz da sua arrogância. Não entendeu porque quem era o submisso era ele, aliás, eram todos. E todos estavam estupefatos com o evento prá lá de incomum.
Deste dia em diante, Cecília não quis mais se arrumar. Andava largada, olheiras profundas, mal penteava os cabelos e olhava alucinada em todas as direções como se procurasse alguma coisa. Porém ela não dizia o que era. Achava que todas as mulheres eram mais bonitas do que ela. Na verdade ela foi tratando de fazer com que isso se realizasse, pois o seu desleixo chegou ao ponto de ficar alguns dias sem tomar banho. Fedia a pobre menina rica. Os braços estendidos sem viço ao longo do corpo demonstravam a sua falta de energia para com a vida. Era o inferno do ciúme. O inferno do amor possessivo, doentio.
Estava com depressão, atestou o psiquiatra. Qual era a causa? Toda patologia tem que ter uma causa, o médico investigava, investigava mas não encontrava a etiologia para tamanha falta de vontade de viver. Receitou-lhe a fluoxetina que é um medicamento antidepressivo.
Por insistência do padrasto foi procurar uma analista. Já na primeira sessão conseguiu balbuciar uma única palavra arrancada quase que à fórceps. "A outra, a outra". Foi isso. Na verdade foram duas palavras, ou melhor, uma repetida duas vezes. E só. Pela primeira vez na vida e, por um fato fortuito, na verdade irreal, Cecília descobriu que havia deixado de ser a única. Descobriu pela forma mais dolorosa que no mundo haviam outros/outras. E o ciúme, esta abissal intrusão do outro/outra na cena do seu 'eu' uno e até então indivisível, estraçalhou-lhe o coração e a vida tornou-se um brutal cinza-despedaçado. Oswaldinho não aguentou a pressão do interminável interrogatório e foi saindo de fininho. Cecília piorou. Sua suspeita tornara-se realidade.
Algum tempo depois surgiu por detrás do carro de Oswaldinho que estava parado diante da casa da Estela, aquela 'estrela de merda', que é como passou a se referir à rival. Cecília estava com uma faca na mão e, com extremo requinte, riscava a lataria do carro de seu ex-submisso. Não satisfeita, furou os quatro pneus do carro e só parou porque algumas pessoas na rua vieram ver o que estva acontecendo. Deixou o local do crime como se não tivesse acontecido nada. Isso era um nada para ela diante do que estava sentindo: largada, desprezada e abandonada. A sua vontade era arrancar os olhos da loura, mas preferiu conter-se um pouco. Ao menos por enquanto. Por hora deixaria apenas os dois a pé. Saiu satisfeita com sua catarse. Uma vencedora solitária. Nunca sentira esta estranha sensação.
Perdera a mania de puxar o decote da blusa com o dedo indicador. Estava mais autoconfiante, menos ansiosa e menos arrogante. Acabou descobrindo que o desdobramento do ciúme pode ser a inveja.
E, foi assim que os verbos ser e ter fizeram carne e passaram a fazer morada na outra vida que Cecília começava a dar existência a partir daquele dia. Podia não ser uma vida melhor, mas era diferente. Muitas vezes caminhava deambulante, sem rumo, mas caminhava com as próprias pernas. E isto para ela bastava.
Foi esta história que um dia ela me contou.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Recado para uma amiga



Escrevi para uma amiga que ela deveria continuar escrevendo da maneira como ela escrevia: "com a lama da alma na ponta dos dedos". Acho que é assim que se escreve quando se escreve algo para além das coisas simples da vida e, ao fazer isso, você acaba escrevendo tantas coisas simples que acaba se perdendo na multidão das coisas comuns. Melhor assim. Evita-se o erro tão comum a quem se destina a escrever: querer se livrar dos seus fantasmas. As coisas comuns sobre a vida comum são as mais difíceis de serem escritas. Por isso, os fantasmas não nos abandonam assim tão de repente. Às vezes, nunca mais. Ao contrário, em muitas vidas eles crescem como o corvo de Poe que assombra cada vez mais o pobre diabo do seu conto. Pobre do escritor que possui a pretensão de guimarãesrosear. Vai se perder nos enigmas dos buritizais antes de chegar a conjugar o verbo certo nas veredas das próprias palavras. Clarice Lispector, por exemplo, escrevia claro como quem escreve com a lama da alma na ponta dos dedos. Tá vendo amiga, com quem acabei de te comparar? Mas, sinto te dizer; você não é Clarice. Ainda bem, pois você tem a chance de ser você mesma e, assim fazendo, habitar outras clarices que existem dentro de você.
Hoje, vinha subindo a serra e escutando "Primeiros erros (Chove)" do Capital Inicial - acústico. Ao final, a letra diz assim:
"Se um dia eu pudesse ver
Meu passado inteiro
E fizesse parar de chover
Nos meus primeiros erros
Meu corpo viraria sol
Minha mente viraria sol
Mas só chove e chove
Chove e chove."
Pois é, amiga. Nossos primeiros erros ainda estão encharcados com as lágrimas da insciência que costumam escorrer vigorosas nos primeiros anos. Porém, a chuva é necessária pois se o corpo e a mente virassem sol, eles ressecariam desérticos dos Guimarães e das Clarices. É desta chuva que estava falando quando dizia a respeito da 'lama da alma'. Depurar-se através das palavras destas enchentes que nos habitam é permitir se deitar nas folhas caídas de todos os livros lidos. Creio que deveríamos arrancar página após página à medida em que fossemos lendo um livro. A dor da leitura e a emoção indisfarçável seriam nossa vingança contra o escritor por nos fazer sair do conforto que até então habitávamos. Só que arrancar páginas de um livro pode ser tão violento quanto o estupro de um adulto sobre uma criança. Um livro também não pode se defender das nossas molestações. Ler é uma Travessia no meio dos 'redemunhos' da nossa vida. Então, que possamos agradecer ao escritor por nos retirar da harmonia, pois uma vida harmônica é o tédio que se avizinha. A vida harmônica é o Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati.
Portanto, querida amiga, saiba que a lama da alma é também conviver com os 'acabamentos' que nunca terminam. Escrever é sofrer da palavra. Ler é contagiar-se deste sofrimento. Diaapósdia, sob a tormenta da chuva ou do implacável sol, com a lanterna sobre o edredom ou debaixo das estrelas. Firmamento é o que há de mais incerto: inacabado como um palavra por dizer que também enlameia os olhos da alma.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

bocaAboca


Ontem lancei meu livro , A última palavra, um romance/ficção, com um bate-papo que foi prá lá de animado. Na hora dos autógrafos e dedicatórias alguém disse algo a respeito de como um livro hoje em dia ganha outras dimensões de circulação (com enorme amplitude) através do boca a boca. E fiquei pensando nesta imagem: bocaAboca. Não na hora, porque na hora você não pensa nada de tão excitado que fica com um filho que está nascendo. Então, pensei nisto só depois ao chegar em casa. E, no silêncio da casa, eu não dormia. Lá na livraria eu também ganhei o maior presente que um escritor pode ganhar: um livro. E, novamente me veio a ideia do bocaAboca. E pensei no náufrago, na respiração boca a boca que se faz quando ele está desmaiado, quase  morto, desfalecido. Neste processo, o salva-vidas pressiona o peito ao mesmo tempo, ou no mesmo ritmo que, boca a boca, retira ar de si e dá ao corpo inerte na areia. 
Creio que o ato de dar um livro a outra pessoa é algo semelhante: você leu um livro que gostou muito, te deu ar, nova vida, novas inspirações e compra para dar este livro para outra pessoa. Está aí o bocaAboca. Você oxigena a outra pessoa com o ar, as ideias, os sentimentos que achou dentro do livro e que estavam guardados em seu interior, transbordando para outra pessoa. O verdadeiro bocaAboca é isto: dar algo que já não cabe dentro de si a outra pessoa que você percebe que já está quase desfalecendo para a vida. Pode ser um livro, pode ser um pôr-de-sol que você queira compartilhar (ver sozinho é quase não enxergá-lo, pois você precisa do olhar do outro para testemunhar o seu), pois já não cabe dentro de você. 
Ah, e ainda tem a pequena, mas não menos importante, possibilidade de que a bocabeijada, ou o livrolido, sejam saborosíssimos. Aí então o bocaAboca torna-se infinito. Como dizia o poetinha, que seja enquanto dure.    

Ps: Na próxima quarta-feira, dia 17, o lançamento é no Solar do Jambeiro em Niterói. Ver o outro convite acima.
Abraços a todos e, até lá.
Carlos Eduardo
 

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Para Oscar Palacios

                                    | ENTRE AQUI |                                        conheça o restaurante Verdejante
Verdejante: restaurante do Oscar Palacios e da Maria Pia


Quando quis morrer não consegui. Agora, justamente no momento em que mais queria viver, te olho de cima. De algum lugar que ainda não sei bem, repouso o olhar sobre a divisão dos teus cabelos esbranquiçados. Ainda és bela. Não-jovem, bem sei. Mas ainda cultivas o esplendor da arte entre seus longos dedos. A erva daninha dos nossos dias eram arrancadas com a sabedoria e a precisão com que torneavas a cerâmica ainda úmida, fértil em formas. Arrancavas do chão o barro que irias processar a geração de uma nova obra. A criatividade ainda é-lhe uma grande aliada. Não mais trabalhas com o barro, bem sei, mas dás igualmente forma artística à comida verdejante que nossos amigos desfrutam em nosso restaurante. Sei que agora estás sozinha e, talvez pensando no último tango que juntos ouvimos depois de um exaustivo fim-de-semana de trabalho. Quando todos iam embora, ficávamos a sós, sentados na varanda daquela casinha no meio da floresta, local no Engenho do Mato que escolhemos para viver nossos últimos dias. Nunca pensamos quem iria primeiro. Achávamos que iríamos juntos, ou nem cogitávamos esta ridícula hipótese de um deixar o outro. Íamos juntos para todos os lugares: ao mercado esolher as frutas, o chocolate e a farinha integral para suas deliciosas tortas, passeávamos pelos hortifrutis da cidade em busca da rúcula, da alface e da chicória frescas, compradas ainda na sexta-feira, pois só abríamos nosso restaurante aos sábados e domingos. As tâmaras secas, o triguilho, a soja, o trigo sarraceno, o tomate cereja, a endívia e tantos outros verdejantes produtos você os colhia com a força e o cuidado de quem retira uma criança do útero de sua mãe, e, assim fazendo, lhe dá a vida.
Nos últimos tempos já andávamos exaustos com o trabalho, mas você não esmorecia e sempre tinha uma palavra de ânimo: Oscar, neste final de semana farei um quiche de abobrinha com ricota fresca e ervas finas que vai ficar uma delícia. A cada desânimo ou abatimento meu você respondia com a invenção de um novo prato que iria deleitar nossos fregueses. A criação sempre fez parte dos seus planos. Quando você no mercado olhava para o arroz selvagem ou o arroz negro, já sabia do seu tempo de cozimento e que tempero colocar para realçar ainda mais o sabor, fazendo de cada prato uma delicada iguaria. Teu olhar infindo, doce e forte, rasgavam as folhas das hortaliças e do meu coração.
Nosso sangue argentino dava-lhe a paixão e a coragem necessárias para continuar mesmo depois de sofrermos alguns reveses. E não foram poucos, mas nossa união sempre foi o tempero mais forte da nossa vida. Agora, estás sozinha e eu te deixei sem o querer. Te deixei porque meu tempo acabou como acabam as estações. Te deixei para te reencontrar quando a tua jornada alcançar a minha. Te deixei porque uma maçã também apodrece esquecida em cima de uma fruteira. Não, eu nunca fui esquecido por você. Mesmo agora nos meus últimos dias, você me levava na cama a minha sopa predileta e com enorme desvelo dedicava-se a cuidar de mim como nos primeiros dias das nossas vidas.
Minha alma de artista sempre esteve ao seu lado. Gostava de pintá-la. Agoro posso dizer (pois muitos me perguntavam) que era você nua na cama dos nossos sonhos, os quadros que eu pintava e que ainda continuam pelas paredes. Minha paleta estava repleta com suas cores. Gostava de retratá-la em sépia, em suaves pinceladas que davam contornos ao seu dorso nu. Os cabelos quase em desalinho demonstravam a sua rebeldia para com o mundo. Coisa de artista que se rebela para poder criar o que era genuinamente teu. Fiz muitos quadros, mas os teus gostava de expô-los pelo restaurante para que vissem aquilo que eu mais amava: te pintar e saber que era toda minha.
Agora eu me fui. Rápido como uma fuga de Bach tocada pelo Glenn Gould. Ah, como esta vida é veloz. E você costumava compará-la ao tempo de cozimento al dente de uma vagem. Aquece-se a água até que esta ferva, joga-se a vagem nesta fervura e quando esta menos espera, retira-a da panela e a despeja num recipiente com gelo dando-lhe um enorme susto. Pronto, a vagem fica al dente e crocante. Você sorria com suas comparações entre o preparo ligeiro da comida e a brevidade da vida. Vida breve como um simples período de aquecimento e rápido como um resfriamento. E a vida seguia suave como folhas ao vento, sem ao menos um último olhar, réquiem para uma despedida.
De onde estou não sei se estou suave. Sei que sinto a tua falta. Ainda não me acostumei a olhá-la do alto. Do alto e sozinha/sozinho. Vislumbro novamente a divisão dos teus cabelos no alto da sua cabeça. Notei que alguns outros fios brancos e prateados surgiram enquanto eu te escrevia.
Não, não chores a saudade, pois não posso estar aí para consolá-la. Sim, chore a saudade, pois eu sempre estarei ao seu lado para consolá-la.

Ps: Prezado Oscar: lembro, hoje com a vista úmida, e isso faz tanto tempo, quando nas terças-feiras de manhã cedinho eu pegava o carro, dirigia por 40 minutos e ia até o seu restaurante ter aulas de desenho com você. Você me aguardava com seu sorriso sereno, abria a porta do restaurante que se transformava num ateliê. Abria as janelas para o verde, abria as janelas para o mundo e colocava uma música clássica. Então, eu esquecia da vida que havia na minha vida e me transportava para uma outra dimensão. Ali desenhávamos e, com sua delicada, mas firme mestria, me ensinava muito sobre a simplicidade da vida tal como a leveza do lápis preto esfumaçando sobre o papel em branco. ...sobre o papel em branco. ...o papel em branco. ...papel em branco. ...em branco. ...branco. ...

terça-feira, 2 de junho de 2009

CONVITES

Amigos(as) destas texturas veredianas,
Na próxima terça-feira, dia 09 de junho, vou lançar meu livro A última palavra (romance/ficção) pela Rocco, na Livraria Argumento do Leblon (Rua Dias Ferreira, 417) a partir das 19:00h. Haverá um bate-papo comigo com a mediação da Doutora em literatura Adriana Bittencourt Guedes com o título: Sobre a paixão: amor, ódio e indiferença. 
Apareçam para o bate papo e um vinho. 

Na quarta-feira, dia 17, o lançamento será em Niterói no Solar do Jambeiro (Rua Presidente Domiciano, 195-São Domingos) a partir das 19:00h, com a leitura de trechos por Natália Lage e Rodrigo Penna (atores) e Sula Kossatz nos teclados e Lena Verani no clarinete.
O convite e o vinho continuam...

Na quinta-feira, dia 25, o lançamento será em Juiz de Fora, MG, na Saraiva Mega Store no Independência Shopping (Av. Independência 3600), também às 19:00h
Agora o convite será acompanhado de bombons de licores, trufas e outras surpresas mais...                                

Abraços a todos,

Carlos Eduardo