quinta-feira, 2 de abril de 2009

Epistolar

Epistolar

 

Acordei de madrugada, mas a madrugada não estava mais ali. Ainda era noite e o tempo corria ligeiro como a brisa que entrava pela fresta da janela que você insistiu para que deixasse aberta. Seu corpo nu, alvo como a neve que caía lá fora, resplandecia como uma lua nova deitada sobre a cama. Sua pele sensível, perfumada, recendia a sexo, como a seda do lençol que se fazia cúmplice das nossas fantasias. Floração da pele é o que se diz. Ríamos da nossa primavera atemporal enquanto o vinho escorria doce sobre sua pele. Era inverno, nevava torrencialmente lá fora e você se despia defronte da janela para que eu visse a intumescência rosada dos seus seios. O tempo estancava enlouquecido enquanto a infinitude dos nossos desejos alçava voo até Ursa Maior. Queria você assim: nossos corpos se perderam um no outro durante horas a fio. E, naquela madrugada, única, num ímpeto de felicidade e completo desvario, atravessamos a rua correndo quase nus e fomos comer waffles na rotisserie defronte ao hotel. Não, não demos um pedaço na boca do outro. Éramos gulosos e a nossa gula não permitia concessões nem pequenos mimos. Ríamos/comíamos/devorávamos um ao outro através dos olhares. Embriagados de prazer, você cantava The other woman imitando a voz rouca da Nina Simone. Eu delirava exultante e cantava aos prantos Ne me quitte pas imitando a voz de Jacques Brel. Éramos dois clowns trapezistas sem a menor necessidade de uma rede de proteção. O mundo era nosso e nada mais existia. E é a isso que alguns chamam de amor-apaixonado. Amorapaixonado. Aquela noite foi mágica. Estávamos embriagados de vinho e prazer. 

Voltamos para o hotel? Não lembro mais. Aliás, muitas coisas se perderam na minha memória desde aquele dia. O que havia sido apenas um mero encontro casual no elevador do hotel, transformou-se num turbilhão de emoções apaixonadas. Quando percebemos estávamos no mesmo quarto como se nos conhecessemos há muitos anos. Acho que não dissemos nem ao menos os nossos nomes. Louise? Acho que sim. Sim, você me disse. E eu te chamei de Lou como se fosse a minha Lou-Andreas Salomé. Quem é que precisa de um nome quando a palavra amor é sufocada por um beijo interminável? Mas a minha memória não descansa. Minha pele também não. E meu corpo precisa urgentemente reencontrar o seu. O vazio que se instaurou dentro dele é capaz de abrigar uma floresta amazônica, embora em mim o Saara tornou-se um nome mais propício. Agora me lembro. Você é de Toulouse, sul da França. Louise-Toulouse. Tudo em você era sonoro. Por isso cantávamos para que nossas vozes se encontrassem em algum ponto daquela noite-com-neve. 

Querida Louise...ah, como é bom poder escrever o seu nome. Hoje faz um ano... Então, reescrevo. Querida Louise, esta carta endereçada ao nosso hotel está aos seus cuidados. Talvez na esperança de que um dia você possa retornar e a encontre vagando pelo saguão. Se não nos reencontrarmos, que você ao menos me encontre nas minhas palavras. O que não quer dizer que seja o melhor de mim, mas é o que insiste, tal como uma noite que investe e resiste contra o amanhecer. De resto, apenas lembro todos os dias que acordei de madrugada, mas a madrugada não estava mais ali. E sinto sua falta. Saudade é um nome que você não conhece. Mas eu me apresento através dela para um mundo de estranhos. Saudade é o nome desta madrugada adentro. Saudade é um nome que não cabe dentro desta carta...nenhuma palavra caberia.


2 comentários:

Unknown disse...

querido Cel,
seu texto-epístola é apaixonante assim como os sofrimentos do jovem Werther, no romance homônimo de Goethe baseado em uma correspondência por meio de cartas.
é tão apaixonante que dá vontade de estar apaixonado(a).
beijos,
M.

Unknown disse...

“Quanto ao resto, sinto-me aqui perfeitamente bem. A solidão, neste verdadeiro paraíso, é um bálsamo para o meu coração sempre fremente, que transborda ao calor exuberante da primavera. Cada árvore, cada jardim forma um tufo de flores, e a gente têm vontade de transformar-se em abelha para flutuar neste oceano de perfumes e deles fazer o único alimento”. Goethe, In Os Sofrimentos do jovem Werther.