sábado, 7 de março de 2009

outras palavras / Miragem


Dando continuidade aos textos postados por outros autores/leitores/seguidores ou não deste blog, Michelle nos apresenta dentro desta rubrica que se chama outras palavras, sua 'Miragem' atravessada/causada/impactada/aturdida sempre pelos belos textos beckettianos.  

Carlos Eduardo





Miragem

 

Levantou a cabeça e se olhou no espelho. Devia ser em torno de três e pouco da madrugada. Fazia muito frio lá fora, talvez nevasse até. Tinha ligado o chuveiro para deixar a água bem quente como de costume. Nada como uma boa ducha quente de madrugada. A quentura da água formava nuvens de vapor que se expandiam por todo o banheiro. Um pouco como a neblina que fazia lá fora, na rua escura. Era gostoso sentir a sensação de torpor percorrendo e se apropriando de cada parte de seu corpo. Do dedão do pé subindo pelas panturrilhas e nádegas, o vapor ia amolecendo o corpo com pequenas gotículas por toda a linha da coluna até se instalar na nuca onde causava uma espécie de frisson. Sua cabeça latejava. Andreas[1] se aproximou do pequeno espelho preso na parede antes do seu ritual no chuveiro quente.

Levantou a cabeça e se olhou no espelho. Não conseguia enxergar o seu rosto, pois o espelho estava muito embaçado. Foi passando suavemente o seu dedo indicador na superfície escorregadia. O vidro rangia. Fazia desenhos com a ponta do dedo, como as crianças gostam de brincar. Até que finalmente conseguiu enxergar. Mas aconteceu uma coisa estranha. O que Andreas viu no espelho foi o rosto de uma mulher, uma bela mulher. E era incrível a semelhança entre a mulher do espelho e o rosto de sua mãe quando jovem. Andreas achou que era mesmo a sua mãe. Três batidas seguidas na porta do banheiro. Em seguida, a voz de um homem chamou o seu nome.

Levantou a cabeça e acordou assustado. Havia chorado e suava muito. Precisava ir ao banheiro lavar o rosto. Sentiu medo de se olhar no espelho. O meu olhar é nítido como um girassol, pensou lembrando de um poema que leu algum dia, em algum lugar.

Levantou a cabeça. Sua cabeça latejava. Andreas se olhou no espelho, mas foi estranho o que ele viu. Sua cabeça não parava mais de latejar.

Michelle Nicié


Atriz, doutoranda em Teatro (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO) e crítica teatral da Revista Eletrônica Questão de Crítica.


[1] Andreas, do grego, significa força, coragem e virilidade. Pode ser encontrado na forma feminina Andréia, Andréa (“mulher de poder”) ou na forma masculina André (“o corajoso, o viril”). Na forma Andrea pode ser usado por homens e mulheres.

8 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo lindo texto, Michelle. Cheio de metáforas e veredas, como essas que estamos reinventando nesse blog.
Bj
Adriana Guedes.

Michelle Nicié disse...

Cara Adriana, agradeço pelo comentário e pelas palavras de incentivo. Esse escambo literário é muito gostoso. Espero que a gente possa continuar reinventando...
beijo
Michelle

Michelle Nicié disse...

Salut!
Abri o Blog, li seu texto e postei um comentário (pelo menos achei que havia postado)...Depois, ao verificar, não o vi lá!
Trancrevo-o, pois, abaixo, dando-lhe permissão de copiá-lo e colocá-lo em seu devido lugar por mim, caso seja possível...
Foi mais ou menos isto o que eu disse:

Querida Michelle,
Adorei! Há algum tempo eu lhe disse que seu ‘fazer literário’ está cada vez mais consistente e maduro.
Gosto, em particular, de ver que a leitura dos textos em língua francesa foram importantes para a composição de seu estilo.
Parabéns!
Fátima Xavier
(Profª Alliance Française Niterói)

Michelle Nicié disse...

Querida Fátima,
já transcrevi o seu texto, conforme me pediu.
super obrigada pelo seu olhar sempre carinhoso e incentivador.
Agradeço sempre o fato de você ter sido a minha primeira prof. de francês, pelo amor e dedicação que você passa no ensino da língua francesa.
Beijos,
Michelle

Michelle Nicié disse...

Cláudia,
há uma frase do Pessoa que diz que arte só tem valia porque nos tira daqui. Esse caráter da arte e da literatura de nos transportar para 'além' é uma das mais fascinantes viagens que podemos experimentar, um gozo único. E, pelo seu texto 'Cenas do mundo, Richamond' (logo acima do meu) você sabe bem disso.
Não conheço Praga, mas conheço Kafka (um dos meus escritores preferidos) e suas metamorfoses...
Obrigada pelo seu 'olhar de girassol', rs, seu comentário enriquece as nuances do meu texto.
Parabéns para você também.
Um grande abraço,
Michelle

celeal disse...

Michelle,
Em Natal existe o maior cajueiro do mundo. Os botânicos dizem que ele cresce por um sistema de mergulhia: seus galhos mergulham na terra que produzem um novo cajueiro, mas que ainda é o mesmo só que com novos troncos, novos frutos.
Seu texto também se estabelece por mergulhia gerando novas palavras, novos frutos em você e em quem os lê.
Então, você perguntaria, só falta a rede?
Oxente, a rede já são as outras palavras em escambo literário com as suas.

Michelle Nicié disse...

Cláudia,
não conhecia o texto do Carpeaux, são muito belas as palavras dele. A alma gótica de Praga surge ferozmente nos textos de Kafka. O lado enigmático dessa cidade impregna as imagens, os ruídos, os tons, a escrita kafkiana.
Obrigada mais uma vez pelo comentário poético.
beijos
Michelle

Michelle Nicié disse...

Querido Cel,

fiquei encantada com essa mergulhia criativa e potencializadora que você propõe por meio de seu comentário. O entrecuzamento de nossas e de outras palavras estão alinhavando as redes hoje e as que estão por vir...
beijo grande,
M.