sexta-feira, 27 de março de 2009

Sobre a angústia ou "O despovoador" de S. Beckett

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A angústia pode ser definida como um sentimento/afeto para o qual não há saída. O sujeito se culpa por não ser capaz de achar um caminho para a vida. E sofre. Assim é que Freud no Mal-Estar na Civilização (1930) diz que a culpa é uma variante topográfica da angústia. A angústia é o medo/terror diante do futuro, ou é o futuro antecipado de forma apocalíptica. 
Para Heidegger, a angústia surge do nada. É apenas um vazio que está dentro de si que não tem nehuma causa ou que é causa de si mesma, causa sui. 
Para Lacan, em seu retorno a Freud, a angústia é um nada só que, diferentemente de Heidegger, este nada não é sem objeto. Ou seja, há um objeto da angústia que comprime, constrange e esmaga o sujeito. Muitas vezes ele é um objeto fóbico. A fobia por sua vez pode ser um 'apelo ao pai'. A questão é que este objeto não é identificável fora da análise. É preciso que a análise desvende do inconsciente aquilo que é impossível de ser dito. Um objeto que muitas vezes causa ao mesmo tempo, desejo e horror/repulsa/asco/nojo e vergonha. A proposta de uma análise, entre outras coisas, é fazer com que o sujeito possa dizer o indizível da angústia, saber de seus limites possíveis e caminhar em seu bem-dizer. Este indizível se materializa em situações ou soluções fóbicas do quotidiano que apesar de aparentemente servirem de proteção contra a angústia, impedem que o sujeito respire o ar da sua autonomia. A mortificação causada pela angústia é a mortificação do desejo inconsciente. Apagado em sua possibilidade de viver, o sujeito sucumbe ao cinza dos seus dias-sem-saída. Não é sem propósito que Freud identificou aí o sujeito em sua covardia moral como antinômico do sujeito ético. A Beata Vita, a vida feliz, fica então subsumida sob um território pantanoso onde cada passo em falso pode ser o próximo para a areia movediça do seu afeto. A angústia é um afeto que não engana e esta certeza destrói/corrói os muros de contenção que até então protegiam o sujeito: seus sintomas. Nesta perspectiva, para o neurótico é preferível fazer sintomas do que se deparar diante da angústia, que no fim das contas é angústia de castração, angústia diante da morte. Muitas vezes os sintomas são um norte, uma caminho a seguir. Quando o sujeito procura uma análise pode-se dizer que onde existia um sintoma a angústia irrompeu de forma abrupta/selvagem e sem sentido, tornando-o desbussolado para a vida. 
O despovoador (1970), texto tardio de Samuel Beckett (1906/1989), é essencial para pensarmos a angústia. A cena se passa toda dentro de "um cilindro de cinquenta metros de circunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia (sic) ou seja mais ou menos mil e duzentos metros quadrados de superfície total sendo oitocentos de parede. Sem contar os nichos e túneis. Onipresença de uma fraca claridade amarela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos que se tocam. Um corpo por metro quadrado, ou seja, um total de duzentos corpos número redondo". Beckett não nos diz quando isso começou, ou seja, quando ou como eles entraram lá. E, na verdade, não precisa, pois a princípio, a angústia não tem origem e nem fim. Eles estão lá e é o que basta. Estão sem saída. E isso não basta. Crianças recém-nascidas, jovens, adultos e velhos, divididos em algumas categorias: os vencidos, os buscadores, os agitados e os sedentários. As escadas para se alcançar os nichos e os túneis são poucas e faltam degraus. Ainda por cima, deve-se obedecer uma certa ordem circular, como no Inferno de Dante, para se alcançar a possibilidade de subir e descer os círculos do cilindro. Quando esta ordem é quebrada, a violência é escutada através dos murros e cabeçadas. A iluminação é fraca, mas o olho acostuma-se a tudo e a temperatura, "ela leva menos de quatro secundos para passar de seu mínimo que é de cinco graus a seu máximo de vinte e cinco, ou seja, uma média de cinco graus apeenas por segundo". A precisão numérica/métrica/termoelétrica de Beckett só faz aumentar a dimensão cirúrgica do cinza-sem-saída da angústia na qual vivem as duzentas pessoas no cilindro. Ao contrário de Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira, Beckett não precisa aludir às escatologias humanas para dar o tom de fim-de-mundo. Na verdade, ele nos fala que o cilindro é incômodo para o amor, a pele fica ressecada e sujeita a arrepios e "a ereção é rara". Isso basta para nos dar a ideia do desassossego da alma tal como em Fenando Pessoa. Como dissemos sobre o indizível que é a angústia, Beckett também nos alerta que "nem tudo foi dito e nunca será" nos antecipando um fim sem fim. Talvez esta seja uma bela metáfora para a própria vida, pois o homem busca tanto saber sobre sua origem para tentar saber sobre o seu fim. Com isso ele ilusoriamente imagina que  poderia em seus pensamentos, ao tentar antecipá-lo, saber um pouco mais sobre si e, portanto, desangustiar-se. Mas o cilindro só oferece mistérios. Ninguém se deita e "ninguém olha para dentro de si onde não pode haver ninguém". 
Se a angústia é pressentida como uma dor de existir, o caminhar na vida através da análise - embora muitas vezes seja extremamente difícil -, é uma aposta que depois da dor, a luz que a palavra revela compensará o caminho percorrido e a vida por viver.

 

Carlos Eduardo Leal  

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Um comentário:

Unknown disse...

Cel, o seu texto é extremamente preciso.
Lembrei-me de um livro do Gilles Deleuze chamado “Francis Bacon: A lógica da sensação”.

As pinturas de Bacon podem nos remeter às formas cilíndricas que povoam os textos de Samuel Beckett e aprisionam os corpos. O volume negro do palco às escuras nas peças e romances de Beckett imobiliza e enclausura as personagens beckettianas. Há uma relação possível entre Beckett e Bacon, principalmente no embate que ambos travam em relação à representação.Veja o que diz Deleuze:

“O corpo se esforça, ou espera escapar. Não sou eu que tento escapar de meu corpo, é o corpo que tenta escapar por... Em suma, um espasmo: o corpo como plexus, seu esforço ou sua espera de um espasmo. Talvez seja uma aproximação do horror ou da abjeção, segundo Bacon... o corpo-figura faz sobre si mesmo um esforço intenso, imóvel, para escapar inteiramente pelo ralo” (DELEUZE: 2007:23).

E mais adiante:

O quadro comum dos Personagens de Beckett e das Figuras de Bacon, uma mesma Irlanda: a área redonda, o isolante, o Despovoador; a série das contraturas e paralisias na área redonda; o pequeno passeio do “Viginâmbulo”; a presença da Testemunha, que sente, que vê e que ainda fala; a maneira pela qual o corpo escapa, ou melhor, escapa do organismo... Ele escapa pela boca aberta em O, pelo ânus ou pelo ventre, pela garganta, pela área redonda da pia, ou pela ponta do guarda-chuva. Presença de um corpo sem órgãos sob o organismo, presença dos órgãos transitórios sob a representação orgânica (DELEUZE: 2007:56).


Beijos,
M.