quarta-feira, 18 de março de 2009

Brinquedos Invisíveis / Conto

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BRINQUEDOS INVISÍVEIS


Ygor Yeralovich, ou simplesmente Y2, nasceu na Moldávia na antiga União Soviética.  A República da Moldávia é um pequeno país da Europa limitado a norte, leste e sul pela Ucrânia e a oeste pela Romênia. Valexandro Yeralovich, seu pai, perdeu Maria Sollkva Yeralovich sua esposa, logo após o casamento. Durante uma caminhada entre duas geleiras, ela prendeu a perna num bloco rachado de gelo e morreu congelada ali mesmo. Foi encontrada duas semanas depois do acidente. Ygor, irmão de Valexandro, penalizado com a tragédia do seu irmão, ofereceu sua filha, a pequena Irena para casar com o tio. Y2 é filho deste casamento consangüíneo. O resultado é que Y2 nasceu com glaucoma. Totalmente cego, o pequeno Y2 era cercado por muitos cuidados por Irena. Seu pai achava que a sorte realmente não sorrira para ele.

Muito longe dali, mas no mesmo dia e quase no mesmo horário do nascimento de Y2, nascia no interior do Ceará, Igor da Silva. Igualmente fruto de um relacionamento incestuoso entre Zito e sua sobrinha Waldicea de 13 anos. Igor, tal como Ygor, nasceu com glaucoma. Cegos e filhos da sorte incestuosa, eram igualmente fadados a uma dupla aridez: da vida sem visão e do chão frio e sem árvores na isolada Moldávia ou do barro rachado e igualmente sem vida em Crato, interior nordestino.

Irena sofria para cuidar do pequeno Ygor até descobrir que ele era cego. A constatação da falta de visão do menino veio trazer um certo alívio porque foi concedido a ela o direito de ajuda. Acontece que ali perto da casa de Irena morava Chukotka Yupik, ou simplesmente ChuYu como era carinhosamente chamada a velhinha esquimó, de quase cem anos, vinda da Groenlândia. Ninguém sabia dizer ao certo como ela tinha vindo parar ali, mas havia chegado há mais de vinte anos – isso quer dizer que ela já tinha quase oitenta – quando foi morar perto da casa dos Yeralovich. De mãos fortes e rígidas de enfrentar condições tão inóspitas de vida, ChuYu foi a pessoa certa para o pequeno Ygor. A primeira palavra ou grunhido que se ouviu da boca do menino foi Chuuu, ou algo parecido, o que levou a velha senhora a soltar uma enorme gargalhada e mostrar aqui e ali a falta quase completa de dentes.

ChuYu ensinou o menino a andar e colocou-lhe um guizo no pulso para que todos soubessem por onde ele andava no meio de tanta neve. Logo logo o pequeno Ygor estava correndo e brincando com pedacinhos de gelo. Antes de dormir ChuYu contava-lhe sempre a história dos brinquedos invisíveis que existiam em sua longínqua terra natal. Eram brinquedos feitos com sobras da aurora boreal: restos de cores e sombras, luzes esparsas e difusas que corriam ligeiras pelo céu - bem ao alcance das mãos naquela região tão próxima das estrelas - e alguns nacos de gelo com os quais se faziam pirâmides coloridas. As crianças que entravam dentro daquelas pirâmides ficavam invisíveis durante quase uma hora; tempo em que as luzes permaneciam no interior dos seus corpos. Os brinquedos invisíveis eram também conhecidos como crianças-luzes. Mas só conseguiam participar crianças com menos de seis anos. Não se sabia a causa, mas como na Groenlândia um dia ou uma noite podiam durar seis meses, era tempo suficiente para aproveitarem bastante os efeitos dos restos da aurora boreal. ChuYu dizia que os brinquedos duravam até os seis anos porque era quando as crianças começavam a tomar juízo e a fantasia escorria-lhes perna abaixo indo parar nos trópicos. Assim ela acreditava, assim ela contava e também assim o pequeno Ygor ouvia maravilhado a história dos brinquedos invisíveis.

Em Crato, um fenômeno semelhante acontecia para o pequeno Igor. Waldicea, muito nova para cuidar do filho cego, também teve a ajuda de Ingazeira, uma velhinha muito velhinha que de tão velhinha não lhe sobrava no rosto mais nenhum lugar para ter rugas. E cada ruga era um ano seu de vida, como ela mesma dizia desdentada e sorridente. E ao pequeno Igor, por incrível que pareça, Ingazeira também contava a história dos Brinquedos Invisíveis. Existia, contava ela, um riacho encantado de águas muito limpinhas, cristalinas e pedras branquinhas. Como que se soube disso? Ora, por descuido. Certo dia, uma menina de dois anos caiu bem dentro do tal do riacho e os pais prantearam muito por acharem que ela havia se afogado. Uma hora depois do procura aqui, mergulha dali, a menina apareceu bem diante do nariz deles vivinha da silva. Foi assim que o riacho ganhou fama. Mas, igualmente aos restos da aurora boreal, era só para crianças até seis anos de idade. Depois dizia ela, ficava tudo burro, igual a adulto, e perdia a mágica do desaparecimento. Quando as crianças desapareciam elas podiam ser qualquer coisa por uma hora: passarinho, ninho, borboleta, traíra, cabra, cactos, nuvem, aliás, quase tudo, menos chuva. Ah, isso no sertão não. Ninguém brincava de ser o que não conhecia. E brincadeira de criança é coisa muito séria.

Mas vai que um dia, quando Ygor e Igor tinham exatamente quatro anos, aconteceu o inesperado.

Na Moldávia, apareceu um comandante de um navio cargueiro oferecendo levar Ygor para fazer um transplante de córnea.

Em Crato, uma turma do projeto Rondon veio com a boa nova de que conseguiriam levar Igor para os Estados Unidos para realizar um transplante de córnea. Assim, no mesmo dia e quase na mesma hora, se não fossem os fusos horários, Ygor e Igor deixaram para trás suas famílias e zarparam para o mesmo destino: Houston Hospital, no Texas. Entraram na fila do transplante e lado a lado realizaram a cirurgia de transplante de córnea. E o destino quis que ficassem na mesma enfermaria e o destino quis ainda que só ChuYu e Ingazeira tivessem acompanhado seus ‘netinhos’.

E se esta história está cheia de mágicas não custa nada fazer com que as duas velhinhas começassem a falar a mesma língua. E cada uma contou a sua história pessoal e cada uma contou para o outro (Y)Igor, a história dos Brinquedos Invisíveis. Mas foi então que algo de muito estranho se sucedeu. Ygor e Igor se olharam pela primeira vez. E um viu o rosto do outro. E viram como eles eram idênticos: ambos tinham – agora – os dois olhos, uma boca, um nariz, duas orelhas, dois braços, duas pernas, ambos olhavam, ambos se admiravam, porém uma nota triste: nada mais lhes era invisível. Assim, pela primeira vez eles compreenderam e, abraçados, choraram.   

Carlos Eduardo Leal

6 comentários:

celeal disse...

Cláudia,
Viver a comoção, a ficção ou sonhar com a realidade é parte indissolúvel entre o joio e o trigo. As nossas invisibilidades às vezes estão mais próximas da realidade do que da ficção. Mas ainda bem que há tulipas, sonhos, algumas Groenlândias a se visitar e muitas histórias para contar.
Com carinho,
C. Eduardo

Anônimo disse...

Vocês me fizeram lembrar de um dos meus filmes preferidos "Pão e tulipas". O enredo cuida de um sentimento profundo entre um homem e uma mulher que se conhecem e se atraem inesperadamente e, a partir desse encontro, passam a cuidar um do outro, com uma delicadeza transparente em cada gesto, em cada olhar. Antes de sair de casa, todos os dias, esse homem deixa para essa mulher, estrangeira em sua vida, um pão e uma tulipa. Dois alimentos que vão construir uma paixão, visível apenas a eles.
P.S. Os textos estão lindíssimos. Inspiradores e, de alguma forma, incentivou-me a lembrar que a vida pode ser mais leve, tanto quanto uma tulipa.
Abraços,
Adriana.

Regina disse...

Adriana e Carlos Eduardo,

Minha filha Nathália tem o dom da escrita desde criança, o que se revelava nas notas de redação. Ela é bastante jovem , mas já escreve muito.Tem uma enorme facilidade com as palavras. Convido-os para visitar o seu blog:
http://nathaliareina.blogspot.com/
grande abraço,
Cláudia

Nathália Reina disse...

Obrigada por suas palavras. É um prazer quando alguém me diz o que sentiu depois de ter lido algo que escrevi.
Não sei quando essa necessidade se tornará um livro, como perguntou. Entretanto, não penso que demore muito. Talvez o suficiente até que sinta que um capítulo de mim já foi gerado.
O seu conto é muito tocante e permitiu que eu me transportasse para perto daqueles meninos. Não sei ao certo se foram os mesmos. Eles me contaram um segredo, mas acho justo que saiba.
Eles me disseram que a questão de nada mais ser invisível, não era tão triste. Agora, eles poderiam desaparecer como as crianças das histórinhas de ChuYu e Ingazeira, pois haviam compreendido o que era aparecer.
Brincadeira de criança era coisa séria mesmo e agora eles poderiam, mais do que nunca, brincar de serem sérios.

Parabéns pelos seus meninos! São lindos!

Abraços,

Nathália

celeal disse...

Nathália,
Na psicanálise, Freud fala sobre o jogo do fort-da, que é um jogo de uma criança com um carretel em que ela ao jogar o carretel para detrás da cama fazia com que ele desaparecesse (fort) e depois ao puxá-lo ela o reencontrava e exclamava:da. Você percebeu com extrema sensibilidade o jogo do invisível, o jogo do faz-de-conta que muitos de nós reinventamos a cada dia. Pulsão de vida e pulsão de morte andam amalgamadas. Sermos transparentes é também podermos brincar com a nossa invisibilidade a sério. Você tem razão: brincadeira de criança sempre foi coisa séria. Nós adultos é que desaprendemos a lição que as crianças nos ensinam.
Abraços,
Carlos Eduardo

Unknown disse...

o engraçado foi de onde surgiu esse nome valexandro se vc puder me responder ficarei grato pois assim irei descobrir a origen do meu nome,pq tbm me chamo valexandro.