quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Noite estrelada


Aquele homem caminhava sem destino aparente. Caminhava durante o dia e de noite deitava nas 'folhas das folhas da relva', talvez esperando Walt Whitman e não Godot. Whitman ele sabia que poderia vir, afinal os poetas possuem o dom de aparecer em qualquer lugar. E aquele homem sabia da magia onipresente dos poetas. Ele dizia em sua humildade de andarilho: as metáforas deslocam os poetas na velocidade das estrelas. Mas, afinal, qual era a velocidade das estrelas? Se ele próprio ou alguém perguntasse, a resposta já estaria na ponta da língua. A velocidade das estrelas é a velocidade dos sonhos. E, dizia assim mesmo, acreditando que os sonhos são estrelas que ainda não despencaram do firmamento.
Aquele homem continuava seu caminho aparente. E, aparentemente, sem motivo algum, ao menos aparente, recitava Leminski: "essa estrada vai longe/mas se for/vai fazer muita falta". Ele continuava seu caminho sem aparências. Era ele mesmo ali, ou quase. Em cada passo, em cada olhar que se perdia no passado, ele pedia ao firmamento que a noite lhe jogasse um sonho, uma estrela qualquer, cadente que fosse. Pedia baixinho como se pede num confessionário com a contrição e a vegonha necessárias ao ato de rogar.
E na manhã seguinte, bem cedinho, ele acordava seu caminho e se colocava ao seu dispor. Andarilho, não conhecia fronteiras. Hoje estava em Saigon, amanhã poderia estar em Instambul, depois de amanhã na cordilheira do Himalaia, próximo ao Nepal.
As esquinas, dizia, são largas como meu pensamento e as fronteiras...ah, essas me desconhecem.
Tinha sempre na face corada do sol, o humor de cada região. Era sazonal como estes lugares por onde passava.
Mas não desistia de seu caminho. Não desistia de querer que uma estrela anoitecesse em sua vida. Que o pegasse distraído entre um cochilo e outro. 'Distraídos venceremos' recitava um poeta. Ou, então, que num sobrevoo inacreditável, uma estrela o pegasse no meio de uma manhã de verão. Por isso passava as noites acordado e aproveita para dormir enquanto caminhava. Como não queria ir a lugar algum, podia muito bem dormir enquanto atravessasse um país, uma clareira ou um riacho.
Mas, então aconteceu. Aconteceu quando ele menos esperava. Não era noite, mas também o dia já ia longe como todas as estradas em sua vida. Aquele homem já havia andado tantos anos que já não se dava conta dos seus sapatos que não haviam. Tantos que ele não sabia mais contar. Então, ele descontava seus passos. Diminuia-os e achava graça em seu feito minimalista.
Mas, então aconteceu. Aconteceu quando ele menos esperava. Já estava muito velho.
Ele já estava procurando as folhas das folhas da relva para se fazer notar para a noite, quando uma chuva prateada começou a inundar seus olhos. E, por mais que ele esfregasse a vista, o lume prateado não deixava dúvidas. Era uma chuva de estrelas que escorria pelo seu corpo. Agora ele tinha certeza que elas estavam ali ao seu lado. Olhou novamente e se sentiu leve, flutuando. Percebeu que a vista estava turva, mas feliz. Procurou apalpando abaixo de si os vestigios da relva, mas acariciou o vento e tateou sem nenhuma dificuldade uma pequena poeira cósmica que caminhava veloz ao seu lado.
'Finalmente meu sonho se tornou firmamento'! Foi o que ouviram-no dizer antes de se deitar pela última vez em sua relva. E ainda murmurou baixinho, quase inaudível: as estrelas, as estrelas, as estrelas...


9 comentários:

Anônimo disse...

Eduardo, conheço um poeta maravilhoso, Emanuel Carneiro, que diz: "a poesia não compra sapato, mas como andar sem poesia?"
Seu andarilho traduz tudo isso em seus sapatos gastos, nas estradas sem caminho, no brilho de estrela no olhar. Sei não...acho que (parodiando Balzac)esse andarilho c'est toi.
Parabéns pelo texto tão inspirado e cheio de emoção.
Abraço,
Adriana.

celeal disse...

"La vie en close
c'est une autre chose
c'est lui
c'est moi
c'est ça
c'est la vie des choses
qui n'ont pas
un autre choix"

Paulo Leminski

Telma Miranda disse...

"-On n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Est qu'on a des tilleuls verts sur la promenade"
Rimbaud escreve, aos 17, " a idade das esperanças e das quimeras".
E o nosso herói se põe a caminho, intuindo as estrelas. Adriana apontou a seta e acertou "sagitarianamente". Um abraço. Telma.

Telma Miranda disse...

"-On n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Est qu'on a des tilleuls verts sur la promenade"
Rimbaud escreve, aos 17.
Em uma carta a seu professor de retórica, ele diz: "Caro mestre, estamos no mês do amor; tenho 17 anos. A idade das esperanças e das quimeras, como se diz - e eis que me pus a cantar, criança tocada pelo dedo da Musa, as minhas crenças mais puras, minhas esperanças, minhas sensações, todas essas coisas de poetas - a que chamo primavera."
Verão, outono, inverno e novamente primavera.
Para os poetas não há estação, só trilhos.
Beijos.
Telma.

Ana Paula Gomes disse...

estrelas, estrelas, estrelas..."Continua a lua cheia. Relógios pararam e o som de um carrilhão rouco escorre pelo muro. Quero ser enterrada com o relógio no pulso para que na terra algo possa pulsar o tempo." Clarice Lispector Água Viva

Anônimo disse...

carlos,
eu simplesmente adoro starry night. quando morava em NY, sentar diante dele era como um respiro aliviado.
há uma música do don maclean maravilhosa e o teu texto está a altura da tela e da música (cuja melodia e letra são lindíssimas).
seu post me trouxe sensações mmaravilhosas parabéns!
marianna

Anônimo disse...

carlos, quando morava em NY, ficar diante de starry night era um respiro aliviado. como a musica de don maclean e o seu post, quase 20 anos depois...
beijos, ADOREI
marianna

Paula Saraquine disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paula Saraquine disse...

“A velocidade das estrelas é a velocidade dos sonhos...” Uma vida sem sonhos se resume a um céu vazio...
Carlo Eduardo, que bom que “seu andarilho” conseguiu banhar-se numa chuva repleta de estrelas. Pena que não pode nos revelar, por completo, o que “aconteceu”, pois sua voz tornou-se quase inaudível.... Porém despertou em mim o desejo de continuar sua caminhada em busca não só das estrelas, mas também do sol, das palavras, de textos ... para que um dia possa, finalmente desvendar o mistério que é viver.
Um abraço
Paula Saraquine