domingo, 15 de fevereiro de 2009

Dúvida - com 'certeza' um bom filme


A dúvida insinua um mais-além, corrompe a verdade, esmaga as certezas e distorce as pistas, colocando um "ou" entre uma possibilidade e outra. Tal como na tragédia de Hamlet - sua obsessão que esmaga seu 'ser ou não ser' -, a dúvida divide e o abismo da incerteza é uma nau sem rumo que procura um porto que não existe. Ao menos não existe enquanto pairar a sombra monstruosa que avassala quem desconfia. 
O filme "Dúvida" de John Patrick Shanley, com Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman, trata da desconfiança sobre um caso de pedofilia. O padre (Philip S. Hoffman) é acusado de molestar um menino negro num colégio. A Irmã (Meryl Streep) possui a certeza de que o padre é o pedófilo em questão. 
Como no filme "Ciúme, o inferno do amor possessivo" de Claude Chabrol, Dúvida apenas insinua, mas por isso mesmo a tensão torna-se uma corda podre. O espectador é que é convidado a participar como o terceiro elemento da trama.
O tema da pedofilia não é novo, mas é sempre atual e a atuação de Meryl Streep é uma certeza (sem a menor dúvida) para o Oscar. 
A estrutura da linguagem e os significantes que dela derivam, abrem-se como uma forquilha, uma bifurcação onde a escolha aponta sempre para uma perda. "Basta um cisco para turvar os olhos do espírito" diz Horácio ao seu amigo Hamlet. O cisco da dúvida é o jogo que não fecha um cálculo. O Cristo, de Salvador Dali, parece pairar sobre um imenso tabuleiro de xadrez. Gala o olha, mas não pisa no jogo. 
O jogo da vida para poder ser jogado necessita que o sujeito aposte em sua ética do bem-dizer. Talvez, apenas esta ética, que é a ética do desejo, possa fazer com que se dê um freio ao gozo, ao espúrio mal radical que comporta no pedófilo uma vontade de gozo que nada consegue detê-lo. A frase do perverso/pedófilo bem que poderia ser: "não consegui me conter". No filme, a Irmã (Meryl S.), não irá concordar com isso. Sua determinação em dar um freio, barrar o gozo pode servir de parâmetro para o mundo moderno. A corrupção financeira, moral e política, caminha a passos largos para uma sociedade de perversos. Ao invés de serem presos, são agraciados com cargos ainda mais elevados e outros favores escusos. 
Na igreja não há lugar para o sujeito dividido, ou seja, a fé não admite a dúvida. Mas é exatamente este sujeito pelo qual a psicanálise se interessa. A dúvida é irmã do sofrimento. O sujeito perverso é aquele que possui em seu gozo a irrefreável paixão em causar um mal (leia-se: constrangimento, humilhação, vergonha, dor) ao outro. 
Este talvez seja um dos grandes méritos deste filme. Abrir uma discussão sobre nossa sociedade que tem se estruturado como um sistema perverso. Perversão, que como uma erva daninha, sufoca as raízes do que ainda resta em nós enquanto sujeitos do inconsciente. Sujeitos da dúvida? Pode até ser, mas sujeitos que possam caminhar pela liberdade extrema de escolha e questionamento: uma escolha ética que implique o outro em sua dimensão de vir-a-ser e não o exclua, humilhe ou dele se aproveite. O perverso ao impor sua Vontade de Gozo sobre o outro, recusa os parâmetros da lei simbólica que nos regula e submete (no filme um menino negro e pobre) aos seus caprichos e às suas próprias leis.
A Filosofia na Alcova de Sade parece ganhar muitos adeptos num mundo onde a Lei do Gerson (querer levar vantagem em tudo) impera e a 'banalidade do mal' (H. Arendt) tornou-se apenas um outro nome para globalização
Crítica a nós mesmos? "Não observamos nem analisamos criticamente as causas dos nossos temores; enchemo-nos de medo e largamos a fugir como aqueles soldados que saem do acampamento por verem ao longe a poeira levantada por um rebanho..." (Sêneca. Cartas a Lucílio). É o que Freud chamou de 'covardia moral'.  


5 comentários:

Anônimo disse...

Eduardo, eu sempre julguei a dúvida um caminho necessário para a escolha, o crescimento, ou o engano, muitas vezes. Vc me apresenta uma dimensão diferente, por um foco social que me faz lembrar do livro O CAÇADOR DE PIPAS. A escolha pelo que se acredita, sem freios: talvez falte isso em nossos "tempos modernos".
Belíssimo seu texto.
Abraço.
Adriana.

celeal disse...

Adriana,
Realmente a dúvida é a nossa condição de existência. Quem não as possui é o perverso/pedófilo do filme e da nossa sociedade.
Grande abraço,

Michelle Nicié disse...

Carlos Eduardo,

Gostei muito do seu texto e fiquei sem sombra de dúvida com muita vontade de assistir ao filme com a maravilhosa Meryl Streep. Achei interessante a sua referência ao quadro do Dalí (a relação entre o Cristo, o jogo de xadrez e o olhar de Gala) que parece despertar naquele que olha, uma interrogação: por onde anda a ética do desejo? A dúvida talvez seja a nossa insanidade mais sã. Desconfio daqueles que dizem: “eu sei exatamente o que quero”, ou ainda “quero isso a qualquer custo”. É sempre bom lembrar o “só sei que nada sei” socrático. Quem sabe o seu eco possa ainda reverberar de algum modo? beijos, Michelle.

celeal disse...

"...'é sempre bom lembrar' que um copo vazio, está cheio de ar" também é bom lembrarmos disso porque muitas vezes nos sentimos vazios, mas é a única possibilidade de virmos a nos preencher. Mesmo que seja só com música e silêncios beckettianos.

Paula Saraquine disse...

Oh! dúvida cruel...
Não sei se vou ou se fico...
se faço dieta ou se como todos os chocolates que ganhei na Páscoa...
Não sei se "deixo a vida me levar" ou se tomo as rédeas da vida...
não sei se quero ser organizada ou se acredito que no final tudo dará certo...
É Cadu..., "a dúvida divide e o abismo da incerteza é uma nau sem rumo que procura um porto que não existe..." Você me deixou cheia de dúvidas... que bom,né???
Vou assistir ao filme!
Bj