quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Noite estrelada


Aquele homem caminhava sem destino aparente. Caminhava durante o dia e de noite deitava nas 'folhas das folhas da relva', talvez esperando Walt Whitman e não Godot. Whitman ele sabia que poderia vir, afinal os poetas possuem o dom de aparecer em qualquer lugar. E aquele homem sabia da magia onipresente dos poetas. Ele dizia em sua humildade de andarilho: as metáforas deslocam os poetas na velocidade das estrelas. Mas, afinal, qual era a velocidade das estrelas? Se ele próprio ou alguém perguntasse, a resposta já estaria na ponta da língua. A velocidade das estrelas é a velocidade dos sonhos. E, dizia assim mesmo, acreditando que os sonhos são estrelas que ainda não despencaram do firmamento.
Aquele homem continuava seu caminho aparente. E, aparentemente, sem motivo algum, ao menos aparente, recitava Leminski: "essa estrada vai longe/mas se for/vai fazer muita falta". Ele continuava seu caminho sem aparências. Era ele mesmo ali, ou quase. Em cada passo, em cada olhar que se perdia no passado, ele pedia ao firmamento que a noite lhe jogasse um sonho, uma estrela qualquer, cadente que fosse. Pedia baixinho como se pede num confessionário com a contrição e a vegonha necessárias ao ato de rogar.
E na manhã seguinte, bem cedinho, ele acordava seu caminho e se colocava ao seu dispor. Andarilho, não conhecia fronteiras. Hoje estava em Saigon, amanhã poderia estar em Instambul, depois de amanhã na cordilheira do Himalaia, próximo ao Nepal.
As esquinas, dizia, são largas como meu pensamento e as fronteiras...ah, essas me desconhecem.
Tinha sempre na face corada do sol, o humor de cada região. Era sazonal como estes lugares por onde passava.
Mas não desistia de seu caminho. Não desistia de querer que uma estrela anoitecesse em sua vida. Que o pegasse distraído entre um cochilo e outro. 'Distraídos venceremos' recitava um poeta. Ou, então, que num sobrevoo inacreditável, uma estrela o pegasse no meio de uma manhã de verão. Por isso passava as noites acordado e aproveita para dormir enquanto caminhava. Como não queria ir a lugar algum, podia muito bem dormir enquanto atravessasse um país, uma clareira ou um riacho.
Mas, então aconteceu. Aconteceu quando ele menos esperava. Não era noite, mas também o dia já ia longe como todas as estradas em sua vida. Aquele homem já havia andado tantos anos que já não se dava conta dos seus sapatos que não haviam. Tantos que ele não sabia mais contar. Então, ele descontava seus passos. Diminuia-os e achava graça em seu feito minimalista.
Mas, então aconteceu. Aconteceu quando ele menos esperava. Já estava muito velho.
Ele já estava procurando as folhas das folhas da relva para se fazer notar para a noite, quando uma chuva prateada começou a inundar seus olhos. E, por mais que ele esfregasse a vista, o lume prateado não deixava dúvidas. Era uma chuva de estrelas que escorria pelo seu corpo. Agora ele tinha certeza que elas estavam ali ao seu lado. Olhou novamente e se sentiu leve, flutuando. Percebeu que a vista estava turva, mas feliz. Procurou apalpando abaixo de si os vestigios da relva, mas acariciou o vento e tateou sem nenhuma dificuldade uma pequena poeira cósmica que caminhava veloz ao seu lado.
'Finalmente meu sonho se tornou firmamento'! Foi o que ouviram-no dizer antes de se deitar pela última vez em sua relva. E ainda murmurou baixinho, quase inaudível: as estrelas, as estrelas, as estrelas...


domingo, 15 de fevereiro de 2009

Dúvida - com 'certeza' um bom filme


A dúvida insinua um mais-além, corrompe a verdade, esmaga as certezas e distorce as pistas, colocando um "ou" entre uma possibilidade e outra. Tal como na tragédia de Hamlet - sua obsessão que esmaga seu 'ser ou não ser' -, a dúvida divide e o abismo da incerteza é uma nau sem rumo que procura um porto que não existe. Ao menos não existe enquanto pairar a sombra monstruosa que avassala quem desconfia. 
O filme "Dúvida" de John Patrick Shanley, com Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman, trata da desconfiança sobre um caso de pedofilia. O padre (Philip S. Hoffman) é acusado de molestar um menino negro num colégio. A Irmã (Meryl Streep) possui a certeza de que o padre é o pedófilo em questão. 
Como no filme "Ciúme, o inferno do amor possessivo" de Claude Chabrol, Dúvida apenas insinua, mas por isso mesmo a tensão torna-se uma corda podre. O espectador é que é convidado a participar como o terceiro elemento da trama.
O tema da pedofilia não é novo, mas é sempre atual e a atuação de Meryl Streep é uma certeza (sem a menor dúvida) para o Oscar. 
A estrutura da linguagem e os significantes que dela derivam, abrem-se como uma forquilha, uma bifurcação onde a escolha aponta sempre para uma perda. "Basta um cisco para turvar os olhos do espírito" diz Horácio ao seu amigo Hamlet. O cisco da dúvida é o jogo que não fecha um cálculo. O Cristo, de Salvador Dali, parece pairar sobre um imenso tabuleiro de xadrez. Gala o olha, mas não pisa no jogo. 
O jogo da vida para poder ser jogado necessita que o sujeito aposte em sua ética do bem-dizer. Talvez, apenas esta ética, que é a ética do desejo, possa fazer com que se dê um freio ao gozo, ao espúrio mal radical que comporta no pedófilo uma vontade de gozo que nada consegue detê-lo. A frase do perverso/pedófilo bem que poderia ser: "não consegui me conter". No filme, a Irmã (Meryl S.), não irá concordar com isso. Sua determinação em dar um freio, barrar o gozo pode servir de parâmetro para o mundo moderno. A corrupção financeira, moral e política, caminha a passos largos para uma sociedade de perversos. Ao invés de serem presos, são agraciados com cargos ainda mais elevados e outros favores escusos. 
Na igreja não há lugar para o sujeito dividido, ou seja, a fé não admite a dúvida. Mas é exatamente este sujeito pelo qual a psicanálise se interessa. A dúvida é irmã do sofrimento. O sujeito perverso é aquele que possui em seu gozo a irrefreável paixão em causar um mal (leia-se: constrangimento, humilhação, vergonha, dor) ao outro. 
Este talvez seja um dos grandes méritos deste filme. Abrir uma discussão sobre nossa sociedade que tem se estruturado como um sistema perverso. Perversão, que como uma erva daninha, sufoca as raízes do que ainda resta em nós enquanto sujeitos do inconsciente. Sujeitos da dúvida? Pode até ser, mas sujeitos que possam caminhar pela liberdade extrema de escolha e questionamento: uma escolha ética que implique o outro em sua dimensão de vir-a-ser e não o exclua, humilhe ou dele se aproveite. O perverso ao impor sua Vontade de Gozo sobre o outro, recusa os parâmetros da lei simbólica que nos regula e submete (no filme um menino negro e pobre) aos seus caprichos e às suas próprias leis.
A Filosofia na Alcova de Sade parece ganhar muitos adeptos num mundo onde a Lei do Gerson (querer levar vantagem em tudo) impera e a 'banalidade do mal' (H. Arendt) tornou-se apenas um outro nome para globalização
Crítica a nós mesmos? "Não observamos nem analisamos criticamente as causas dos nossos temores; enchemo-nos de medo e largamos a fugir como aqueles soldados que saem do acampamento por verem ao longe a poeira levantada por um rebanho..." (Sêneca. Cartas a Lucílio). É o que Freud chamou de 'covardia moral'.  


sábado, 14 de fevereiro de 2009

Van Gogh


Estava cansado de andar e resolvi calçar Van Gogh. Assim, descansei meus olhos, desamarrei meu dia e, descalço, pude sentir o preço da leveza. Peguei tinta e pincel e, com eles, escrevi o seu nome sobre uma tela de linho branca. Escrevi com diversos tipos de letras e todas as cores disponíveis. Seu nome estampado virou um vestido que colava em teu corpo. E você flutuava em letras comigo pelos canais de Amsterdã. Nas tardes cansadas, um arcoíris flanava por entre as nuvens. Então, exaustos, íamos tomar um vinho na velha estalagem. Você sorria e, afagando meus cabelos, me fazia deitar em seu colo até sonhar colorido.
Estava cansado de andar e resolvi calçar Van Gogh. Assim, descansei meus olhos nos teus e desamarrei o dia.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

escrever...

Escrever, escrever, escrever
até sangrar palavras.

Desabotoado pelas palavras

Estou nu. Fico com vergonha disso. Explico rapidamente antes que pensem outra coisa sobre este texto. Estou nu de palavras. Elas me despiram. Procuro alguma para me (re)compor , mas não encontro. Tenho uma estranha sensação na pele, nos poros. Formigamento é o que se diz. Eles, os tais poros, estão tapados por falta delas. A respiração arfante/estafante me desfolha. Olho pela janela e me preocupo. Já é sexta-feira, dia 13. Não é que eu tenha alguma superstição, mas dizem que o dia é convidativo para o sobrenatural. Medo é uma palavra que enfraquece.
Na minha mesa estou rodeado de livros. Atrás e na minha frente empilham-se livros e mais livros. Recebi uma pequena herança. Foi do meu avô. Ele me deixou páginas e mais páginas. Talvez mihares/pequenos milagres. Páginas. Todas em branco, todas por escrever. 
Nesta tarde fiz amor com uma palavra. TItálicoalvez tenha sido ela quem tenha me deixado assim. nu, sem maiúscula. Mas se me perguntarem seu nome não direi. Não direi porque não sei. E por que não sei? Não sei. Era uma palavra que não cabia em nenhuma outra. Por isso fiquei desabotoado, apaixonadamente desabotoado. A cama era também uma página em branco. Oportuna para isso. Não havia margens. Nem a oposta. Fizemos alguns neologismos e outras catacreses. Foi um delírio. Sobrenatural. Ríamos disso. Hoje é sexta-feira 13. E daí? 
Naquela cama feita de papel de seda, eu escrevia delírios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens em Rimbaud. 
Acho que foi B. Johson que disse que "existem homens que parecem ter nascido apenas para sugar o veneno dos livros." Eu não. Nasci para sugar o veneno de todas as palavras, comer as letras tortas, mortas e regurgitar a capa e os calígrafos. Estes me dão enjoo com suas letras indeformáveis. Nesta tarde suguei todo o veneno, o mel e o fel daquela palavra. Ela me encantou por horas. Bebi todo seu leite/deleite. Eu já disse que hoje o dia está propício ao mais, ao mais além, ao mais-além das palavras? 

Calderón de la Barca me diz que A vida é sonho e leio atento ao seu poema:
Que é a vida? Um frenesi,
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são. 

Puxo Quevedo para mais perto de mim. Ele estava na outra estante. Oblíqua. Parecia usado/pousado/ousado. O título já me fustigava as narinas: Os sonhos. E li:
As mulheres parirão
se emprenharem e parirem,
e os filhos que nascerão
serão de quem forem. 
Eu o perguntei do que se tratava. Ele sem titubear escreveu: uma profecia.

Fiquei com medo. Nesta hora não tinha palavra alguma para me recobrir. Lembrei dos milhares de livros que o meu avô havia me deixado. Muitos, todos. Todos em branco. Todos por escrever. Um horror. Fiz amor com uma palavra nesta tarde. Ou foi de manhã? As palavras parirão...foi isso que disse Quevedo? 
Foi este dia. Só pode ter sido. Senão não estaria assim. Despido de você.



terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Vik Muniz ou o olhar dentro do olhar

A exposição do fotógrafo e artista plástico Vik Muniz no MAM vai além do prazer escópico, ou seja, há um outro olho que olha para além daquele que vê. Trata-se da pulsão escópica. Há um prazer anexado a um gozo que capta, empuxa, captura, apreende o olhar para dentro da tela e o enquadra ali dentro da moldura. O aprisionamento neste frame, como gostam de dizer os cineastas,  na verdade é uma abertura dialética ao mais além. O que se prende também é o que se abre para uma outra dimensão. Outra dimensão da palavra e seu dizer. As fotografias de Vik Muniz produzem no expectador uma sensação de espanto, surpesa, admiração, contemplação e estas definições metonímicas poderiam continuar infinitamente, pois nehuma daria conta de recobrir o último sentido de qualquer quadro. Não há um único sentido ali. Talvez nenhuma fotografia e, ouso dizer, nenhum bom quadro jamais possa ser expresso em mil livros. Há sempre algo que escapa. Há sempre algo fora do quadro. Há sempre algo para além do quadro que restará sempre por dizer. Por isso, para cada série, há ao lado uma explicação sobre o processo criativo do artista que recobre suas fotografias com mel e geléia, no caso da Mona Lisa, numa explícita influência de A. Warhol. Existem imagens que foram montadas com entulhos (pneus, latas velhas, pontas de cigarro, etc) e depois fotografadas. Uma vertigem de perspectiva que ao mesmo tempo nos convoca a olhar de perto o que na verdade só podemos enxergar de longe. O todo só é visível a uma certa distância. Mas há também milhares de todos ali contidos. 
Quando alguém apaixonado por um montanha quer vê-la de perto só a vê aos pedaços. Como no amor. Quando você quer ver alguém muito de perto, você acaba vendo, na melhor das hipóteses, apenas uma pequena parte da outra pessoa. Às vezes olho no olho, principalmente quando se trata de descobrir a verdade. Puro engano. O que se tem é o amor aos pedaços. No ventre da palavra germina o não-todo da verdade. A verdade toda não existe. Deveríamos saber que para olharmos a verdade precisamos de um certo distanciamento senão tudo o que é espelho acaba embaçando. O hálito da verdade não deve cair no engodo de tudo contar ou tudo querer igualmente saber. É o resto que nos aprisiona ao Outro. É o que ainda nos falta dizer que provoca um novo reencontro entre os amantes. A monotonia do 'já disse tudo que havia para dizer' provoca o cansaço na imagem do outro que se dobra sobre o outro. Enfado e asfixia provocam no olhar um desvio, uma vereda pulsional que tende para outras margens, outros caminhos. A pulsão é assim mesmo. Vai a esmo como num barco à deriva no meio de um oceano bravio. Ela vai espiralando enigmas indecifráveis que retornam, retornam, retornam até 'fazer diferente', como disse o Manoel de Barros. O espelho da retina engana, distorce e vai mais além do olho: esta é a função do olhar é o que se diz. Mas isso não se captura. Isso, se sente. 
Nesta exposição (mas, quem é que está exposto, a obra ou expectador? Reviramento possível desde Merleau Ponty em O olho e o espírito e O visível e o invisível.), tudo que é etéreo, tudo que é sobra, tudo que é resto descartável está aprisionado infinitamente no tempo do clic da imagem nos quadros de proporções enormes. Há fotos feitas sobre telas cuidadosamente trançadas com linhas que vão entre o claro e o escuro de seus amontoados produzindo efeitos de perspectiva, até outras onde o Jackson Pollock está lambuzado de chocolate. Crianças pobres que o artista colocou açúcar sobre suas fotos para adoçar-lhes um pouco a vida. Os olhos não se cansam de procurar novos caminhos.
Janelas da alma é o que dizem os filósofos e os poetas sobre os olhos. 
Mas, eis que o meu olhar é capturado por uma cena. Uma cena maior do que todas as outras que tentei inutilmente aqui descrever. É a foto de uma mãe negra, catadora de lixo com dois filhos ao colo. Eles estão no meio do lixo do lixo. Um fino véu branco recobre sua cabeça. Mas a cena não termina aí. Não para mim. Diante deste quadro sentada num banco, está uma mãe apertando carinhosamente com o braço seu filho pequeno sentado ao lado dela. O apertava contra seu corpo. Corpo contra corpo como uma boa mãe faria. Com docilidade, mas com firmeza. Porém ela já não estava fisicamente mais ali. Me aproximei um pouco mais. Seu olhar estava fixo no quadro. Era para lá que ela se transportara. E chorava. Chorava seu choro de mãe compartilhando a dor daquela outra mãe que talvez jamais pudesse sair daquela cena da vida ou da fotografia? Jamais saberei e não me presto aqui a nehuma interpretação, pois toda e qualquer tentativa seria um grotesco reducionismo. E a lágrima não represada não estancava em seu rosto. 
Era um olhar dentro do olhar, uma cena dentro da outra. As imagens se fusionavam em rara beleza enquanto muitos visitantes passavam.
Ao sair da exposição eu comprei o catálogo com as fotos. Para minha surpresa esta foto da mãe com as duas crianças no lixo não estava no catálogo. Teria sido tudo ilusão minha? Teria visto mesmo aquela cena? Mas, o que foi real nisto tudo?   

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Cometário ao "Deus explica a crise"de Domingos Oliveira. Logo, a página móvel. O Globo de 08/02.

Prezado Deus,
Nada melhor do que num domingo, ou, deveria dizer, num Domingos-todo-poderoso-Oliveira?, rs, acordar e dar de cara com Você. Obrigado pela sua existência e eterna 'Juventude' ficcional. O mundo está precisando mais disso mesmo: mais ficção, mais humor e menos intolerâncias, segregações e xenofobias. 
abraços,
Carlos Eduardo

A Janela Conto

A janela

 

Aqui do alto da minha janela, aquela praia era tão minha que poderia sem o menor esforço calçar as pessoas na palma da minha mão. Isso não fiz, mas dei para incluí-las no meu pensamento. O que dava no mesmo, ou quase. Assim, aos poucos e de cada vez, dia após dia, eu tecia fios firmes e delicados. Com meu pensamento feito anzol eu fisgava na areia da praia de Copacabana aqueles tipos que mais me interessavam.

Icei bem alto uma mulher negra em sua selvagem gordura que comia risoles e empadas gordurosas. Comia rindo e a cada mordida escorriam farelos de seus filhos. Um se chamava Antonio como seu avô paterno. Outro Habacuque, porque era bíblico. E ela evangélica. Havia ainda um terceiro e um quarto que não eram filhos, mas quase. Seus pais haviam morrido em acidente com uma arma que era para defesa. A mulher disparou a arma sem querer e o marido foi atrás dela porque quis. Foi assim que os filhos ficaram órfãos. Nomes nem tinham direito. Do que chamassem respondiam. Ocorria então algumas vezes, não poucas, de responderem no lugar de outros. Isso dava par ouvir daqui de cima. Aliás, do alto tudo é muito figurativo. As pessoas não têm cheiro, unhas mal cortadas ou epiderme purulenta. São lisas em seus sentimentos e quase em câmara lenta os seus movimentos são presságios nebulosos de suas vidas. Religião sempre, principalmente quando vão entrar no mar. Benzem-se para Deus e Iemanjá e dão as costas para Oxossi que é deus das matas. Mergulham seus corpos como fazem com os legumes quando vão lavá-los dentro de uma grande bacia. De tempos em tempos saio da janela. Talvez para olhar para mim mesmo ou buscar um copo d’água na cozinha. Quando volto à janela noto que alguns se afogaram no tempo. Já são outros que estão ali a disputar um pedaço de areia macia.

Iço outro. Agora é um rapaz que faz embaixadinhas com uma bola. Demonstra fazer tudo que sabe. Demonstra para quem? Ele não sabe. Só sabe que deve movimentar-se ligeiro com a bola. Finge chutes incríveis, passes mágicos, canetas memoráveis e lençóis diabólicos. Chama-se Zico Coimbra dos Santos. Nasceu no mesmo ano em que o flamengo foi campeão mundial. Seu pai, que Deus o tenha, era flamenguista da cabeça aos pés, como ele mesmo gostava de dizer. Adorava ser chamado de Zico Santos. Achava que isso lhe dava mais respeito e de certa forma reverenciava duplamente seu pai: pelo nome do batismo e por ter certeza que seu pai havia virado um santo lá nos céus. Porém ficava triste quando lembrava da chance que havia perdido para jogar futebol pelo seu clube do coração. Foi no mesmo ano que seu pai morreu de cirrose hepática. Assim soube porque os médicos lhe disseram. Seu pai bebe muito. Mas não bebia. Era mentira por verdade. Seu avô também havia morrido de cirrose. Mas sua língua travou e ele não soube dizer isso para os médicos. Faltou muito para ficar com o pai. Quando este morreu, faltou muito de ficar com o filho. Era saudade religada pela bola. Religião do Pai como se costuma dizer. Sempre rindo estava Claudemir, seu irmãozinho. Filho do segundo casamento tinha pai, mãe e irmão mais velho para protegê-lo de quem quisesse lhe bater. Assim folgava com os outros porque sabia que estava protegido pela fraternidade, folgava com a vida porque sabia comer os restos mal digeridos da sua hereditariedade. Seu pai Adroaldo, entre uma latinha de cerveja e outra que tirava do isopor, passava óleo de cenoura nas costas da sua mãe. Era uma mistura feita por ele mesmo a base de cenoura ralada, óleo de girassol, linhaça e bronzeador. Celestina debruçava-se sobre a toalha estendida cuidadosamente na areia, retirava com delicadeza o nó do sumário biquíni nas costas e esperava pelo óleo revigorante. Seus seios fartos adornavam tanto a areia quanto os olhares dos homens que passavam por ali a testemunhar aquele momento mágico. As curvas daquela bunda a desfilar aquela asa delta crepuscular era o regozijo para os que tinham na visão do espetáculo corporal o único ganho de satisfação em seus fins de semana. O apelido daquelas curvas sem fim era ‘Crepúsculo de Cubatão’. Mais não preciso dizer. Os apelidos às vezes encaixam mais do que biquíni em suas terminações adiposas. Adroaldo bem sabia que os homens olhavam para aquelas curvas perfeitas da sua Celestina. Com suas mãos ásperas de pedreiro, mas com o coração sereno de amor, Adroaldo ia meticulosamente passando óleo por cada centímetro daquele corpo espetacular sem parecer se interessar com o que acontecia ao seu redor. Ela sabia de seu apelido. Assim, em pleno meio-dia alguém suspirava alto: que crepúsculo meu Deus, que crepúsculo. Deitada, com soslaio no olhar, ria mordiscando os lábios, depois deixava-se soltar todinha, espreguiçando como se estivesse em lençóis de areia à espera de seu Netuno. Virava de bruços e o mar encapelava como se estivesse à espreita de um vendaval.

Dia desses me deparei com um hiato. Não era um deserto de areia, era um deserto de pessoas. Não havia o menor sinal de chuva e o céu sem nuvens tocava o mar sem deixar vestígios dos limites entre um e outro. Esfreguei os olhos pensando ainda estar dormindo, mas a areia era visível e estéril. Transbordei as palavras para fora da janela na esperança de poder içar outras pessoas. Elas retornaram esvaziadas. Umas proferiam impropérios, outras silêncio ensurdecedor. Então, pela primeira vez, após longos anos, saí da minha janela e desci em direção à areia. De repente, sozinho na areia, senti meu corpo subindo. Consegui ver de relance. Era um outro escritor em sua janela. Mas não sei o destino que ele me reservou.

Carlos Eduardo Leal 

Primeira correção da vida quotidiana: sobre o primeiro post

Ahá! Só me faltava essa. Que Moby Dick era uma baleia assassina isso todo mundo sabia, mas que ela era escritora...hum, isso foi demais. Então, correção. Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street (Cosac Naify, com um belíssimo posfácio de Modesto Carone) é de Herman Melville que também é autor da baleia. Mas, entre a baleia e o Bartleby, prefiro o segundo. Mais irônico sem deixar de ser igualmente feroz, até porque o seu Acho melhor não, negando qualquer ação ou continuidade do ato de escrever, não atinge apenas a insanidade do capitão Ahab - o feroz perseguidor de Moby Dick -, mas toda nossa precária existência e condição humana, demasiadamente humana, diria Nietzsche. 


sábado, 7 de fevereiro de 2009

Veredas: literatura e psicanálise

- Nonada
Deveria começar assim um blog? Bem, não deixa de ser um início. Por onde? Pelas veredas. Quais? Talvez deva deixar a água escorrer um pouco mais através das palavras. Leio em Molloy de Samuel Beckett: "...tão bom, apagar os textos em vez de escurecer as margens, tapá-los até que fique tudo branco e liso". Sim. Talvez possa ser isso. Estas Veredas. Colher algumas palavras aqui e ali, lavrá-las sem nenhum outro pretexto a não ser escurecer um pouco as margens, reescrever textos, apagá-los num eterno palimpsesto
Lembro da imagem de James Lord sendo repintado quase ao infinito por Giacometti (Um retrato de Giacometti. James Lord. Iluminuras). Uma obsessão. Uma busca pela perfeição. Mas, novamente Molloy nos avisa que "não há nada para expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma força para expressar, nenhum desejo de expressar, junto com a obrigação de expressar." 
Veredas? É subverter este imperativo categórico beckettiano: "nenhum desejo de expressar, junto com a obrigação de expressar". Ou a última linha de O inominável, também de Beckett: "tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar."
O que pulsa se imiscui ao desejo e nele fica como A fera na Selva. Mas, escrevo mais uma página e caminho. Permanecer tal como a fera na selva é muito perigoso. Você vê o desejo desaparecer bem diante das suas veias. Muito menos repetir o fabuloso Bartleby, o escrivão de Wall Street de Moby Dick. "Escrever, dizia Marguerite Duras, "também é não falar. É calar-se. É uivar sem ruído"
A literatura já é o próprio bote/mote através da qual reconheço que a margem é sempre assustadora, que o livro vira e revira em curvas imprevistas, manancial caudaloso afiando-se entre pedras de amolar. Que as palavras me consomem, se prendem entre arbustos da alma, viram e reviram à procura da terceira margem, onde também sou leitor/autor/psicanalista entretido na escuta atenta de outras paragens, outras palavras, outras lavras, outras larvas que arejem o que pode estar por vir. 
Ali onde a palavra se empresta ao ridículo, ao seu quase total desaparecimento, ao desperdício, ao resto. Ali onde a palavra se esconde num toco de árvore embriagada de hereditariedades e genealogias. Ali onde o mar empresta sua saliva branca para lavrar a palavra-rocha, a palavra-grão, a palavra-sim-e-não-talvez. 
Por aí deverá caminhar Veredas: literatura e psicanálise. Comentários de livros, textos, música, filmes, alguma prosa e outras artes.   
Travessia.
Carlos Eduardo Leal