quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Espelhos de primavera

Espero pela primavera. Ontem, através da chuva, fiquei sabendo da proximidade da sua chegada. Sempre se espera pela primavera. Não é só pelas flores que se espera. É que ela traz consigo uma lâmina d'água de esperança para os dias que andam tão ressecados de humanidades. Olho a minha volta e deparo com outros de mim, muito semelhantes, quase iguais. Plantados e replantados pelos canteiros de asfalto. Poderia até mesmo pensar que sou eu ali naquele que passa distraído, ou naquele outro que acabou de atravessar a rua correndo com sua mochila preta e verde. Para onde este outro eu se dirigia? De onde ele vinha? Continuo a olhar a minha volta e, a não ser pelos cabelos brancos, aquela outra espécie de humano bem que poderia ser eu. Ou já sou eu/ele no futuro? Quantos eus habitam este planeta? E, por acaso, são tantos eus assim tão diferentes deste que sou, ou são reflexos ao infinito das minhas múltiplas maneiras de olhar avidamente o mundo? Diferenças, semelhanças, contrastes. A beleza está na diferença, bem sei, mas insisto nos ressecamentos dos olhos, nas marcas expostas da insensibilidade da espécie dita humana. Isto sim é que me atordoa. Me atordoa porque percebo que fora os narcisismos das pequenas diferenças, diria Freud, todos são outros eus. Isso não me leva muito longe, mas esta percepção da realidade tão próxima fixa, por assim dizer, contornos difíceis de serem vividos. Miopia progressiva, diria Clarice, diante da vida. Um pôr-de-sol só tem seu fulgor porque daqui a cinco minutos ele não existirá mais. Esta é a beleza do tempo que não se captura.
A nossa espécie dos humanos anda numa realidade cada vez mais precária. O espelho da vida torna-se dia a dia cada vez mais embaçado/fragmentário e, parece que ali onde habito, habita um outro e mais um outro e mais um ao infinito. E tudo é tão eu, que parece que estou sempre a ouvir os silêncios de Fernando Pessoa.
Constato na miragem destes humanos seres ressecados: o tempo e as imagens no espelho nunca são capturados.
Resta-me a primavera. Espero pela colheita.

6 comentários:

Anônimo disse...

Eduardo, pela angústia do tempo te ofereço este poema de Sophia de Mello Breyner:
"As coisas há muito já foram vividas:
Há no ar espaços extintos
A forma gravada em vazio
Das vozes e dos gestos que outrora aqui estavam
E as minhas mãos não podem prender nada."
Abraço e alegrias por todos os renascimentos,
Adriana.

Telma Miranda disse...

Também a mim me atordoa o embaçamento do espelho. Me atordoa ainda a Beleza não percebida e tão exposta a olhos ávidos mas desfocados (ou focados em vazios). Me atordoa mais ainda os barulhos que atravessam os silêncios - que de tão silenciosos poderiam gestar novos possíveis. Como você aguardo novos gestos, nova primavera,
novas paixões. E, quem sabe, poder me embriagar (embriagarmos todos nós) "de vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha" (Baudelaire)

Telma Miranda

MaRi_aNa disse...

Adorei saber o que te atordoa e que vc tb espera a primavera. Sorte que ela sempre vem!
lindo texto, lindo titulo, linda "beleza do tempo que nao se captura". bjs mari

Anne M. Moor disse...

Estamos tantos eus em tantos momentos diferentes... Captar o eu que sou no espelho embaçado é apenas em breve clarão que mais um desafio se torna!! :-)

Beijos

Renata Vilanova disse...

"marcas expostas da insensibilidade da espécie dita humana".
sim, é também pra mim isso que atordoa, cala, perturba.
tais rugas ansiosas para contar história me atordoam, e,... como vejo outono nisto. o outono também me encanta. a primavera linda, formosa, sustenta a vida que pulsa. e o texto refresca, conforta, aquieta, floresce e suspira :)
e também lembro do outono, denso, real, visionário, de cabelos brancos carregados de eus, e mais outros, e eu-outros......... progressão "gauss-iana".

obrigada mais uma vez,
beijos.

Silvia King Jeck disse...

Sempre, e mais uma vez, CELeal! Vá ser leal assim às palavras e imagens ! Mãos muito dadas com FPessoa, meu amigo!