Ilana foi pouco a pouco tirando a roupa. Ela já não era mais uma menina, mas ainda usava a mesma roupa que sua mãe lhe dera no natal anterior. Não, pobre também não era. Era mais por superstição, dizia, por ir à missa com o mesmo vestido verde claro com gola branca. Ilana continuou tirando a roupa. Não, não eram movimentos lentos, mas também igualmente não eram bruscos. Eram sentidos. Havia sentimento em seu movimento. E sentir, sentir-se, era o que ela mais queria naquele momento. Deveria eternizá-lo? Só o último ato daquele movimento solo dir-lhe-ia o saber sobre o seu ato. Era um ato preciso, precioso. Não, de modo nenhum era fácil, mas ela estava disposta a continuar a desfazer-se daquela roupa. Não media movimentos. Não. Chegou a pensar nisto, mas recuou dele com vigor. Tudo menos isto. Tudo menos recuar desta hora tão espetacularmente misteriosa. Desagasalhar-se era um movimento sutil, subjetivo, particular e, extremamente íntimo. E ela estava só em sua intimidade. Ilana estava excitada e esta excitação era o alcance da sua felicidade. Ajeitou os cabelos com as pontas dos dedos. Jogou-os para trás num movimento que tantas e tantas vezes fizera. Mas, agora, ela estava em sua magia particular. Cada fragmento de si, de sua pele, de seus contornos, de seus seios, de suas coxas, era o infinito do universo salpicado em seu corpo. E ela adornava seu corpo com seu olhar lânguido de desejos. A cada movimento, seu corpo se iluminava como um vaga-lume na escuridão da sua vida anterior. Ganhava luz própria como uma lanterna chinesa a revelar os ideogramas milenarmente ocultos. Ilana continuava seu delicado movimento. Delicado, porém preciso. Preciso e determinado. Havia se determinado a cumprir mais do que um simples ritual. Era um rito de passagem. Era uma despedida da sua infância. Movimento outonal. Desfolhava-se de seus atavismos.
Ilana agora acabara de retirar a última peça de roupa que sua mãe havia sobreposto à sua pele.
Mas, misteriosamente ela não estava nua. Ilana vestia a roupa com a qual deveria caminhar sua própria vida na inconstância pulsante dos seus erros e acertos. Viva, delicadamente viva, como a vida pede, exige mesmo nestes momentos. Delicadeza consigo própria. Ela estava encharcada de si e, sua felicidade, escorria-lhe perna abaixo. Havia acabado de sair do casulo: a prisão de seda construída pela sua mãe. Voou na tranquilidade dos seus próprios ventos.
14 comentários:
Nossa,
Ainda bem que ela tirou a roupa... Impressionante como você mostra a dificuldade que algunas pessoas têm de se libertar dos casulos maternos.
Beijos,
Raquel.
casuloabrigosentimentomovimentolentooutonalsutilnudezatoprecisopreciosaintimidadevagalumelanternachinesaideodramasmilenaresdelicadaseda...
bom ouvir um pouco do universo particular de Ilana.
bjs, M
Raquel,
"O nó górdio" dos laços maternos está sempre nos assombrando!
Bjs
CEL
MichelleNiciéIlanaesuamãeestãoestarãosempreporaí.bjs
CEL
Os fios de seda tecem prisões de que é difícil libertarmo-nos...
Aprender a voar é um imperativo que só se pode realizar voando...
Abraço.
António
Prezado António,
Você tem razão. Soltar as amarras que nos prendem também é um voo solo, ato único. Inaugural de outros voos, novas partidas e muitas chegadas. Obrigado pela visita aqui e, retorne sempre,
Grande abraço,
Carlos Eduardo
Lembrei-me de Alice, do Nó Górdio. Mais livre apenas.
Lindo texto.
Vou te mostrar um livro de André Neves que leva este título e, em ilustração, fala de sua Ilana também.
Bj
Adriana.
Sair do casulo e levantar vôo é algo que requer vontade e coragem e a sensação de viver é ímpar quando isso acontece. Escrevi um poema justamente com o título deste teu texto certa vez...
Beijos
Belíssimo texto Carlos Eduardo!
Que bom para a Ilana que o vestido verde claro com gola branca ainda não virara pele!
Beijo.
RM
Adriana,
É verdade, "O nó górdio" ainda habita em mim. Talvez habitará para sempre. Espero pelo livro do André Neves.
Um bj
C. Eduardo
Anne,
Parece que este é um tema universal, né? A relação mãe-filha. Adoraria, se possível, poder ler o teu poema.
Um bj,
C. Eduardo
Rosa,
Às vezes fico achando que as mulheres possuem inúmeras peles. Vão "desfolhando"com o tempo e, com isso, amadurecem até chegar ao seu âmago.
Bj
C. Eduardo
No meu caso não foi relação mãe-filha e sim relação eu comigo mesma rsrsrsrs
Aqui está o endereço: http://anne-lifeliving.blogspot.com/search?q=Casulo
Anne,
Obrigado pela generosidade e o carinho da poesia.
Vou lá ver.
Bjs
Carlos Eduardo
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