quarta-feira, 8 de abril de 2009

Histórias de uma gaveta

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Era uma gaveta desorganizada. Toda vez que bocejava, algo entrava ou saía. Vinha sendo usada desde quando você era pequenina. Naquela época guardava seus lacinhos de cabelo, suas canetinhas coloridas, seus estojos do colégio, retratos do papai, da mamãe, muitos do irmãozinho e de toda a família. Pouco a pouco coisas diferentes iam e vinham dentro de mim. Em geral, assim que surgia alguma coisa realmente muito nova, outra que era guardada como relíquia, misteriosamente sumia. Assim foi com um lindo diário rosa e branco. Quando ele chegou, desapareceram de uma só vez: uma chupeta velha e encardida, uma foto sua após o banho e ainda sem roupa, alguns lápis sem ponta e outras quinquilharias há muito em desuso. Mas, com o diário também chegou uma escova de cabelo nova, dois batons e um estojo prateado de pintura. 
Você estava crescendo rapidamente, e eu ali, fiel, ao lado da sua cama a testemunhar seus sonhos mais  juvenis e seus assombros mais deslumbrantes como a descoberta das mudanças em seu corpo e a primeira menstruação. 
Certo dia, mãos estranhas me invadiram abruptamente. Eram mãos que pela tessitura da pele e a cor do esmalte, demonstravam já terem aberto e fechado muitas outras gavetas em sua vida. Através delas veio uma sensação de vazio. Fiquei de boca aberta e totalmente nua por uns três dias e duas noites. Depois suas mãos retornaram para mim. Fiquei saciada e, com o sentimento que só aqueles puxadores me davam, fiquei emocionada como um armário que se abre para receber um vestido novo.  
Você havia crescido. Agora você me depositava um celular, um ipod, uma máquina fotográfica, batons de cores extravagantes e uma caixa de remédios que não soube identificar, mas suspeitei o que seria pela sua idade. Foi por esta época que surgiu em mim A paixão segundo G.H., A poesia Erótica de John Donne, Drummond, Silvia Plath, Ana Cristina Cesar, Florbela Espanca e muitos outros mais.
De repente, uma enxurrada de fotos. Você estava apaixonada! Em mim não cabia todo o seu contentamento. Mas, passado algum tempo que não sei precisar quanto, pois madeira sem seiva pouco sabe de si, algo começou a mudar. O abajur de cúpula de corações foi trocado por uma luz fria e suas mão não reviravam, aflitas, aquele transbordamento de fotos. Esvaziei pela metade. Todas estavam rasgadas ao meio. Sua tristeza solitária também era a minha, poque a parte de você que havia ficado era apenas meio sorriso. Eu também estava entreaberta.
Num fim de tarde, após tantos anos (quantos?), a porta do quarto se fechou. De vez. Ouvi seu ruído surdo e sabia que era definitivo. E eu estava fria, vazia, labiríntica sem ao menos um desvio ou um organizador. De que vale um puxador sem as mãos para fazê-los cumprir sua função que era a de me abrir e fechar? Com a boca fechada há tanto tempo, fico sem saber se ainda há vida lá fora. Alguém aí saberia me dizer? Preciso urgente encontrar uma mão amiga, ou então uma mão que abrigue o meu desamparo.
Carlos Eduardo Leal

3 comentários:

Ana Paula Gomes disse...

Carlos,

Quanta delicadeza! Lindo, lindo. O desabrochar de uma menina e a chegada de uma mulher, que deixa um enigma trancado para sempre na gaveta. MARAVILHOSO!!!
Bj,

Ana Paula

Unknown disse...

Oi Cel,
acho que conheço algumas gavetas parecidas...rs...
gostei também da imagem, é linda!!!
É do Magritte?
bjuss
M.

Brincar e Viver disse...

oi, carlos eduardo.
penso que algumas gavetas, por um motivo ou outro, podem não ser abertas, mas, jamais são esquecidas.
como sempre, adorei!! vc continua o máximo!!
bjus*