sábado, 10 de dezembro de 2011

Enxurrada



Foi logo depois de uma tempestade no sítio de meu avô que um milagre se deu. O açude com traíras ficava ao lado de um campo de futebol onde brincávamos. Mas do que eu gostava era de vê-las dormindo na lama na beira do açude. Era um espetáculo extasiante para um menino. Eu quase podia tocá-las e, no entanto, sabia pelo dedo do Seu José empapado de sangue, o que um peixe daqueles era capaz de fazer. Esta iminência do perigo parece que me atraía ainda mais. Excitação e medo. Combinação perfeita para o desejo. 
Havia começado a chover no fim do dia e só terminou de manhã cedinho. Sei porque passei quase a noite toda acordado pensando que talvez ali seria o fim do mundo. Um menino adora pensar sobre o apocalipse e o fim da Terra. E aquele cenário era perfeito. Pelas frestas da veneziana da janela de meu quarto podia ver a claridade deitando sua luz enfurecida sobre a terra. Eram muitos e ela não haveria de aguentar tantos raios a furar-lhe o solo. Haveria de partir-se ao meio e rolar pelo universo ainda naquela noite. O fim estava próximo. A certeza com o passar das horas era cada vez mais evidente. Eram tantos raios e trovões que os cachorros latiam uivando de medo. Escutei uma correria na casa. Pensei que a "hora"  havia chegado. Levantei para me despedir da família, mas logo descobri tratar-se de uma enorme goteira no quarto de minha bisavó. Meus primos e irmãos dormiam num silêncio outonal. Eu não. Eu me derramava em emoções como a chuva de verão lá fora. 
O dia amanheceu espantosamente belo. A chuva havia lavado o mundo. Depois do café íamos saindo para ver os córregos que se formaram e os estragos. Algumas árvores deitadas não suportaram passar a noite de pé. Haiti parecia já ter esquecido a tormenta. Abanava seu rabo, pulava em cima de mim com suas patas enlameadas enquanto vinha me lamber como todo cachorro que se preza costuma fazer.
Foi quando o vô me chamou. Ele sabia que eu gostava quando me chamava para ver alguma coisa. O olhar do meu avô enxergava coisas invisíveis aos olhos humanos. Eram sempre coisas inusitadas que me mostrava: um teia de aranha com um grilo preso. O rastro de caramujo que desaparecia por debaixo de uma folha de couve. Uma rã equilibrando-se em cima de uma vareta. Os ovinhos no ninho de uma rolinha. E fui. Desci em disparada em direção a sua voz. O momento pedia. Talvez fossem sinais do fim do mundo.
Ele estava no campinho abaixo da casa ao lado do açude. O que vi causou-me espanto e uma certa dose de angústia embora eu não soubesse naquela época o que era este sentimento de desconforto. Havia dezenas de traíras mortas no campo. O açude transbordou, ele disse enquanto segurava firme minha mão. Elas estão mortas? Por que a gente pergunta o óbvio quando não conseguimos acreditar no que está tão evidente? 
Olhe mais de perto, meu neto. Eu não queria olhar. A morte assusta, vô. 
Então ele me contou a história da multiplicação dos peixes: os céus quando viam que havia crianças passando fome, despejava de noite muitos peixes no açude até transbordar. Chovia pexes, ele quis dizer. Fiquei extasiado com a história. Já tinha ouvido minha avó falar em milagre principalmente quando uma galinha que não botava ovo começou a chocar pintinhos. 
Minha bisavó Otávia, que era muito inteligente, chegou de mansinho com seu vestido azul de florzinhas brancas, cabelo ralo branquinho, chegou perto de mim e disse: ali ao lado daquele peixe tem uma palavra. Qual vó? Aquele peixe maior ali, apontou para um prateado. Vá lá e pegue a palavra tempestade que está caída ao lado dele. Também veio com a chuva, vó? 
Ela sorriu, passou a mão na minha cabeça, larguei a mão do vô e confiante, obedeci. 
Tratei de guardar aquela palavra e todas as outras que me foram "ofertadas" pelos meus avós dentro dos livros. Assim, elas não se sentiriam tão só. 
Ainda hoje, sempre que posso, passo para revê-las. 

2 comentários:

Monica Senra disse...

Transbordante de emoção.E são os livros guardiões por excelência das melhores ofertas a nós feitas. isto me faz tê-los sempre perto. *,*,*,

Mundorose disse...

"Por que a gente pergunta o óbvio quando não conseguimos acreditar no que está tão evidente? "

Gostei demais desta pergunta.É sempre assim mesmo... e o bacana é saber que isto não ocorre só conosco.