sábado, 10 de dezembro de 2011

A terceira palavra


Nasci sem saber onde estava. E, como não sabia, para mim era irrelevante saber. Não havia curiosidade alguma. Só contemplava. Depois de dois anos e meio vegetando e sem dar sinais de que ousaria falar ou sair do meu cercado, pronunciei a primeira palavra "mamãe" e, para que o senhor que estava ao seu lado não se decepcionasse, "papai". Foi uma alegria geral. Finalmente, aquela criança insossa, seria um pouco mais do que um legume mal cheiroso. 
Não é que eu não soubesse falar. Sabia já há muito tempo como dizer as coisas. Apenas não achava necessário. Ridículo falar seria mais justo pensar. As palavras tonteavam-me a cabeça. Ficava irritadiço quando macaqueavam sons para que eu repetisse. Para quê? Perguntava-me irritado e silencioso. Aliás, apenas grunhia e gritava sons incompreensíveis.
Depois de haver dito com enorme nitidez e desenvoltura como quem já tivesse o dom da oratória, não proferi mais nenhuma palavra.
Acreditava que estas duas palavras eram tão fundamentais na vida de uma criança que nenhuma depois delas poderiam substituí-las. Seria uma mácula com os nomes que eles gostaram tanto quando eu os chamei. E, assim, apenas os olhava, compreendia tudo que me diziam, mas mantinha meu silêncio. Sabia que eles sabiam que eu poderia falar, que não havia em mim nenhum problema de audição ou fonador. Mas seria um sacrilégio profanar aquelas duas primeiras palavras. Prometi que não diria a terceira palavra. 
Na escola eu era um brilhante aluno, mas todos me achavam estranho por não falar. Meus pais haviam conversado com a direção da escola sobre minha situação. Os anos foram passando, tive mais dois irmãos que falavam como tagarelas, talvez para compensar minha mudez, mas mantive-me firme em meu propósito de não pronunciar a terceira palavra.
Hoje, mesmo após a morte de meus pais há muitos anos, continuo em meu retiro de silêncio absoluto. Tornei-me um monge recluso. Talvez a única opção que me restou para as condições difíceis que me impus ao longo da vida. Foi Deus que quis assim. Acreditei nisso ainda na adolescência. E como o nome de Deus não podia ser menor que o dos meus pai, eu deveria antes de qualquer palavra ter dito Seu nome. Depois seria blasfêmia. 
Encontro-me atualmente num mosteiro na Bélgica. Guardo meus votos de silêncio. Guardo meus votos de preservar mamãe e papai.  

Inspirado em: "A metafísica dos tubos" de Amélie Nothomb (um relato autobiográfico ancorado no delírio, tal como Joyce, pensado por Lacan). Alguns trechos:  "sou eu. Eu sou a que vive. Eu sou a que fala..."(...) "O acidente mental é uma poeira que entra por acaso na ostra do cérebro, não obstante a proteção das casas fechadas da caixa craniana. De repente, a matéria tenra que vive no centro do crânio é perturbada, enlouquecida, ameaçada por esta coisa estranha que nela penetrou; a ostra que vegetava em paz dá o alarme e busca anteparo." (...) "Já Deus não se cansava de efetuar seu primeiro absolutamente nada." (...)"A única escolha ruim é a ausência de escolha. Deus não recusara nada porque nada havia escolhido. Por isto é que não vivia."(Deus é ela no livro, na verdade um tubo metafísico).

Nenhum comentário: