segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A ponte - um conto

Nestor Alcalino surgiu do nada no meio da névoa na cabeceira da ponte em noite de sexta-feira. Trazia em sua mão direita um estranho amuleto feito com uma pequena caveira sobre uma cruz entalhada num pedaço de osso seco de chifre de boi.

O objeto ficava preso a uma corda branca a qual fazia girar ao redor do seu pulso sem parar. O barulho que fazia era parecido com um zumbido de um enxame de um milhão de abelhas. Este movimento contínuo, perpétuo, associado ao estranho zumbido, assegurava-lhe uma travessia segura da ponte naquela hora sem lua, de noite nebulosa. Ao menos assim ele pensava que estaria livre de qualquer perigo como sempre estivera. Este amuleto lhe havia sido dado quando ele ainda era criança, na verdade, seis meses antes do seu avô, Agudo Açoite, falecer aos cento e três anos de vida.

Recebera-o das mãos do próprio avô com algumas rezas e recomendações. Seu avô tinha sido escravo, daí a propriedade ou impropriedade do seu nome. Não se sabia bem se era nome de batismo ou de batida açoitada.

Lembra pouco do avô. Negro quase azulado, a face esquerda do rosto queimada pelo azeite fervido – maldade e castigo por ter se revoltado e não comido a lavagem que era para os porcos - e, como conseqüência, ficou com um olho caído e quase murcho, mas era o que, segundo ele, o que melhor ‘avistava a fina grandeza das coisas’, porque foi através deste olho que passou a ‘enxergar a realidade da dureza da vida sem anteparo, cabresto, nem antolhos’.

Lembra também do cabelo já bem esbranquiçado do avô e da sua voz grave respondendo à pergunta dele sobre sua idade: meu menino, preto e ex-escravo, quando já está com os cabelos brancos é porque já perdeu a conta e a vontade do se ir de viver.

Mas Agudo Açoite era um sujeito bom. Não guardava ressentimentos, mágoas ou qualquer coisa que lhe retirasse da ponta da língua uma palavra que humanizasse e colorisse de esperança o destino humano. Talvez o ferro e o açoite diuturno tenham lhe dobrado a ousadia, mas não. Quem sempre o conheceu afirmou que ele sempre foi de rezar até para cachorro vadio, principalmente para estes que não tem o que comer. Já a lenda sobre seu nome ia bem mais longe do que isso. Dizia-se que ele tinha o poder de falar com os antepassados dos seus antepassados que haviam ficado na África. Sobre isto ele próprio afirmava que com mortos não falava, mas sim com vivos viajantes estelares. Ouvia-se também do seu poder de cura: práticas xamânicas que retiravam dores, crianças que teimavam em nascer, mau olhado e que havia enfrentado e vencido o próprio redemoinho numa encruzilhada.

Durante as noites de lua cheia, mandava fazer uma pequena fogueira bem no meio do terreiro, puxava sua ‘cadeira de recosto do açoite’, como ele mesmo denominara a cadeira de palha seca e espaldar alto que seus antigos senhorios haviam lhe presenteado por tantos anos dedicados à lavoura e ao trabalho escravo, braçal. ‘Finalmente’, dizia, ‘algo no qual eu posso recostar e descansar os braços já sem viço e desnecessários para o plantio’.

Então, reunido pelos filhos, genros, noras, netos e uma infinidade de amigos e sob o crepitar do fogo crepuscular, Agudo Açoite começava a falar de como andava pelo céu a cruzar oceanos e terras longínquas, de povos com um olho bem no centro da testa, de seres encantados, de faunos a entidades espirituais que jamais encarnavam e do brilho das estrelas que ele havia visto bem de perto.

Dizia que as estrelas luziam mais na pátria África do que nas Américas, mas que elas estavam ali em cada um daqueles tições em brasa. Cada estalar de um pedaço de bambu no fogo, era uma nova vida que se iluminava no céu através da criação de uma nova estrela. Portanto, a cada nova estrela surgida, era a esperança renovada no coração de cada um de nós aqui na terra. Esta era a nossa conexão com os céus.

Xangô, Oxossi, Osíris, Ceres, Iemanjá e tantos outros deuses eram apenas os intermediários e verdadeiros guardiães da presença do céu aqui na Terra.

Vez por outra, segundo o costume e a tradição de cada cultura, de cada povo, os céus enviavam um intermediário: Sócrates, Jesus Cristo, Santo Agostinho, Buda, Gandhi, Maomé, Martin Luther King, Bashô, Dalai Lama, Mozart, Einstein, Nelson Mandela, Fernando Pessoa, Maimônedes, Zumbi dos Palmares e Padre Cícero Romão.

Vez por outra, os céus enviavam suas estrelas para jogarem um pouco de luz aqui na Terra na luta contra as trevas do mal. Se não esclareciam, ao menos lançavam novas significações ao mundo das ignorâncias do homem frente a outros homens e sobre os mistérios do universo e suas galáxias cintilantes.

- Vô Agudo Açoite...disse quase sussurrando o pequeno Nestor Alcalino, que se encontrava por detrás dos adultos ouvindo atento as histórias encantadas daquele sábio homem.

- Sim, meu neto? O que você quer?

- Quero nada não vô. O senhor é que esqueceu de colocar o nome do senhor nesta lista. Eu é que acrescentei seu nome nesta lista de pessoas que haviam caído do céu que o senhor falava aí.

Todos riram achando graça na verdade do pequeno Nestor.

- As pessoas não caem meu filho, disse Agudo Açoite. E continuou. Elas são enviadas.

- Por quem? Insistiu o neto.

O avô que parecia ter sabedoria para tudo, não se deixou embaraçar nem pela esperteza do menino, nem pela dificuldade da pergunta.

- Quando um povo está precisado de ajuda pelo sofrimento que está passando, este povo pede aos céus e eles enviam estas pessoas especiais para acabar com o mal ou fazer entendimento novo aos mistérios antigos. Lá no céu há uma fábrica espiritual de pessoas iluminadas que vêm de tempos em tempos nos visitar durante uma temporada da história humana e abrir caminhos quando os homens estão em encruzilhadas que eles próprios se meteram.

- Por que o senhor não pediu para vir um homem para acabar com a escravidão?

- Ah, mas veio o Zumbi dos Palmares e muitos outros. O mais importante, meu neto – e agora o avô parecia dirigir a palavra só para ele como se num passe de mágica não tivesse mais ninguém ali: o mais importante é que você não tema as coisas espirituais pois tudo no coração da alma tem a sua hora e seu modo de ser. Para todo espanto há um encantamento, para todo medo haverá um bálsamo que irá clarear a sua mais escura noite, para cada solidão haverá sempre de surgir uma companhia de onde você menos espera, mesmo que seja um cachorro que também esteja perdido no meio de uma floresta. Então vocês farão companhia um ao outro e encontrarão a saída para a vida que ambos precisam. Lembre-se, o cachorro precisa de você tanto quanto você dele. Seu latido é sua prece e sua prece o uivo que cuidará do seu caminho.

- Vô, um cachorrinho também pode ter caído do céu?

- Principalmente ele, meu neto. Sem dúvida nenhuma. Principalmente ele.

Nestor Alcalino ficou muitos anos da sua vida com aquelas palavras de Agudo Açoite, seu avô das estrelas.

No fim do dia em que lhe deu o objeto, antes da entrega, houve um ritual de purificação.

Agudo Açoite mandou seus filhos varrerem o terreiro três vezes no formato de uma cruz com uma vassoura feita com galhos secos de bambu e folhas de eucalipto novo, bem verdinho. Assim ele havia determinado, assim foi bem feito. Com sal grosso ele mesmo fez um círculo com cerca de dois metros de diâmetro bem no meio do varrido terreiro e determinou que levassem sua cadeira para o centro. Jogou enxofre em torno do círculo e ateou fogo. Nestor jamais esqueceu o odor do enxofre amarelo virando fumaça e ardendo em seus olhos. Ele tinha seis anos quando foi iniciado pelo avô na arte da purificação do mal, como seu avô chamava.

Então Agudo Açoite entoou cantigas de ninar e as fez coincidir com antigas preces em ioruba e nagô. Etim jeje anago, nagô. Etim jeje anago, nagô. Repetia cantando alto e todos repetiam cantando aquelas palavras que pareciam baixar os céus sobre a Terra.

Em certo momento, já próximo da meia-noite, houve um silêncio só quebrado pelo crepitar do fogo. O vento morno daquele verão unia abraçando aquela comunidade regida pelo Agudo Açoite. Foi só então que ele chamou Nestor Alcalino para dentro do círculo. Houve expectativa, estalar de dedos e nenhum riso. O menino calculou os passos para não pisar sobre a linha ardente. Andou todos os passos como se estivesse aprendendo a dar seus primeiros passos em sua pequena existência. O que ele não sabia é que aqueles seriam verdadeiramente seus primeiros grandes passos para uma outra dimensão em sua vida. Todos se abraçaram contritos fazendo um grande círculo em torno do círculo menor onde estavam avô e neto. Um círculo em torno de outro círculo significava do ponto de vista do tempo, a eternidade, e em relação à espiritualidade, uma dupla aliança inquebrantável. Assim o espiritual se perpetuava através da aliança com o tempo. Esta era firme crença de Agudo Açoite e de todos que o cercavam, pois fora esta crença que o teria conduzido da escravatura até a liberdade, da ignorância até a sábia iluminação.

Sentado em sua cadeira, segurou o menino pelos dois ombros e olhando fixamente nos olhos, soprou-lhe uma poeira estelar e lhe confidenciou palavras inaudíveis a todos os presentes, menos para Nestor Alcalino que parecia decifrar cada mensagem cifrada para o círculo externo. Depois de transmitir-lhe todos os ensinamentos, depois de segredar-lhe as antigas tradições advindas de um passado longínquo, Agudo Açoite levantou-se e falou para que todos, enfim, pudessem escutá-lo.

- Nestor Alcalino, segure este amuleto firme e o faça girar e zunir toda vez que passar pela ponte. Não deixe de girar no seu pulso e em noites de intenso nevoeiro, aconteça o que acontecer nunca pare no meio dela e nem olhe para baixo.

Nestor Alcalino, homem zeloso de seus ensinamentos avoengos, ao longo da vida nunca deixou de cumprir o ritual profetizado.

Tornou-se enfermeiro dedicado a toda a sua comunidade e criou uma escola onde alfabetizava adultos e crianças. Estava claro que as lições de seu avô haviam dado o brilho necessário para uma vida simples, mas extremamente iluminada. Apesar de ter ficado viúvo muito cedo e com três filhos para criar, Nestor tinha sempre uma palavra encantada para aliviar as atribulações de cada um como se ele não tivesse as suas próprias dores. Mas quem é chamado para uma missão não cabe a ele decidir se fará ou não. O destino é mais forte. Assim teria sido desde os antepassados de seus antepassados.

Desde sempre morou num lugarejo chamado Mata, pequeno município de Rio Bonito no interior do Estado do Rio de Janeiro com uns quatrocentos e poucos habitantes.

Os habitantes de Mata para saírem de suas casa e chegarem ao local conhecido como Reza do Açoite, em homenagem ao seu avô, tinham que cruzar uma velha ponte de madeira sob um riacho fundo. Ali era o lugar para rezarem pelas crianças, pelos ancestrais sofridos na escravidão e os escravos das doenças e outras atribulações. Era um local santo para a purificação do mal.

Ali estava Nestor Alcalino no meio da névoa na cabeceira da ponte. Era uma noite de sexta-feira, noite das rezas sagradas porque era noite de lua cheia onde se poderia divisar as terras longínquas e pedir proteção aos antepassados e aos céus. Surgira do nada como se sempre tivesse estado naquele mesmo lugar. Começou a travessia da ponte. Não havia mais ninguém para acompanhá-lo. Fez girar ainda mais rápido seu amuleto sobre o braço esquerdo como que pressentindo algo que ele havia sempre temido.

De repente ouviu um trovão, mas não havia nuvens. Seu corpo gelou o tremor do imponderável. Suas pernas pareciam pela primeira vez lhe faltar como que sabendo de antemão o encontro com o inevitável que cada um, algum dia, mais cedo ou mais tarde irá se defrontar. E de novo ouviu outro trovão e reconheceu a voz de Agudo Açoite. Sim, era do seu avô aquela inconfundível voz de barítono rouco.

De dentro da noite enevoada, no meio da ponte chamava-o mais e mais e cada vez mais alto. Chamava-o como ele o chamava quando menino. “Meu neto, meu neto Nestor Alcalino”.

Quando ele deu por si, ele havia parado de girar seu amuleto e estava defronte ao seu avô. Nenhuma palavra saiu da sua boca. Apenas um sorriso quase inútil quis brotar no canto da sua boca, talvez para dizer que ainda fosse cedo e tinha três filhos para acabar de criar.

Num átimo de segundo ele entendeu o motivo da visita repentina. A morte nunca mandou aviso. Mas agora ele estava na melhor companhia que um viajante estelar poderia querer. Para sempre haveria de continuar ouvindo lindas histórias. Morreu ali mesmo antes de poder atravessar aquela ponte que ele mesmo quando criança atravessou para receber os ensinamentos do seu vô Agudo Açoite.

Na noite seguinte, Nestor Alcalino mandou varrer o terreiro três vezes em forma de cruz e fez um círculo no meio do terreiro polvilhando com sal grosso e enxofre e mandou chamar seu neto, como seu avô havia feito com ele há mais de setenta anos. Agora ele entendia para onde ia aquela ponte e, assim, podia sentir a força viva de um espírito. Sim, agora que estava morto ele entendia melhor muitas outras belas e misteriosas coisas.

2 comentários:

Salomé Mello disse...

Uma linda forma de viajar no tempo e no espaço.
beijo

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Carlos!
Vim me atualizar! Adorei o teu post!
Bjkas e boa semana!