Samuel Beckett
Acordei com um formigamento estranho no corpo como se minhas mãos tocassem Bach através de Glenn Gould.
Quis sair deste estado, mas não consegui. Lembrei de Malone morre de Samuel Beckt, personagem envolto em palavras numa cama em ruínas. Malone está acompanhado apenas um mísero lápis que não cabe em suas mãos e um caderno de rascunho que não deveria estar ali. E, no entanto, o livro transborda voando rápido por mil sentimentos enquanto Malone em oposição a tudo, é tão vagaroso. Extremamente vagaroso mesmo em seu ato de morrer. Engraçado. Abro Malone como quem abre a Bíblia procurando uma resposta para uma pergunta que não me habita e encontro um trecho grifado por mim. Há quanto tempo? Sob o marca-texto amarelo já quase apagado, leio: "Me pergunto qual será minha última palavra, escrita, as outras voam, em vez de ficar." O formigamento bachiano não some, ao contrário, um torpor allegro ma non troppo invade os poros e entre os quatro tempos de uma semibreve e 1/16 das semifusas, releio outro trecho: "E aí estou eu, que pensei que ia encolher, encolher, cada vez mais, até quase poder ser enterrado dentro de um estojo de jóias, eis que me dilato."
Este esforço maloniano de quase-morte, esta sua dicotomia (em Beckett tudo é assim, ou quase, e 'quase' é uma palavra essencial em sua alegoria) revela o ponto alto do jogo de contradições que parece incomodar tanto ao protagonista. Enquanto encolhe e dilata, sua morte lhe dá vida. Dualidade pulsional: eros e thanatos tão presentes que se nota a todo o instante o que não há. E encontro em itálico este desconcerto: "Nada é mais real que nada." Como se se bastasse de nadas. E isto é tudo. Ou quase. "Não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito." No espanto que este dia me conserva, descubro o elo de parentesco entre Malone e Glenn Gould:
O contínuo esvaziamento que não cessa de não acontecer é o bachiano transbordamento.
Paulo Leminski (1944-1989), tradutor deste maravilhoso Malone morre, me acorda para uma frase de Walter Benjamin: "toda alegoria é uma ruína da realidade".
Na trilogia beckettiana, recorro a Molloy e, selvagem como uma hiena faminta, constato: "É meia noite. A chuva está batendo nas janelas. Não era meia-noite. Não estava chovendo."
Quis me reconciliar com o dia e, ingenuamente, fui ao O Inominável, último da trilogia e, finalmente, encontrei o que não queria: "...no silêncio não se sabe, tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar."
4 comentários:
querido Cel
esse formigamento, esse encolhe-dilata me lembrou um texto do Deleuze chamado l'épuisé/ o esgotado em que ele comenta a obra do Beckett e chama a atenção para a série de posturas que habitam esse imaginário.ele chega a dizer que, depois de Dante, os condenados de Beckett são a mais impressionante galeria de posturas.
nessa série, Deleuze destaca as posturas: sentado, deitado e rastejante, lembrando que o deitado em Beckett não é o fim, não é a última palavra, mas a penúltima. Sobre o rastejante, ele dirá: "Para parar o rastejante é preciso colocá-lo num buraco, plantá-lo num vaso onde não possa mexer seus membros, ele remexerá, no entanto, algumas lembranças.
Lembrei-me desses seres rastejantes enfiados em um buraco ou dentro de uma lixeira que encontramos em Dias Felizes, Fim de Partida, Comédia e tantos outros textos beckettianos.
estou com saudade de você!
beijos
Michelle,
Bom te ler em tuas profundidades beckettianas aí em Paris. Pelo visto a pesquisa tem andado, né?
bjs e saudades tb
Cel
"Me pergunto qual será minha última palavra, escrita, as outras voam, em vez de ficar."
Palavras, que são palavras? Uma lágrima dirá bem mais (Schubert, Elogio das Lagrimas). beijo. mari
...uma lágrima será um oceano de palavras? "Elogio das lágrimas", não conheço, mas só o título já é uma sinfonia de tão lindo.
bj
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