segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A palavra oculta

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Meu bisavô era um sujeito cheio de manias. Morava numa cidadezinha do interior das Gerais. A vida naquela época passava devagar. Um dia poderia ter umas 48, 50 horas, sem nenhum exagero. Acordava-se, tomava-se café com leite e besuntava-se de manteiga amarelinha no pão feito de véspera. Na roça o galo dava o tom do despertar. Aquilo era dia para nunca mais se acabar. Às vezes tinha broa de milho e a festa quase se completava.
Ele ficou viúvo muito cedo. Mais cedo do que o despertar do galo. Dela não tenho muitas notícias. Foi coisa assim: chovia fininho, a serração baixava no taquaral sem dar sinais de sol. Névoa sem vento custa deixar saudades. Ali ela chega de mansinho e não vai embora nem depois que a carroça de leite passava. E passava cedinho. As vacas e os galos possuem esta mania de despertador. Neurose rural, brincava já cedo. Pois bem, para não levar esta estória por detrás dos montes, eu dizia que a minha bisa saiu cedinho para a horta. Dizia-se lagarta. Quando ela voltava era um verde só e por detrás de seus braços, lá se avistava ela sorridente como um horizonte. Mas neste dia de chuva fina o sol não brilhou mais naquela casa. Quando ela se abaixou para arrancar rente ao chão um pé de couve, sentiu uma picada bem no pulso direito e a peçonhenta esgueirou-se em direção ao córrego. Houve gritaria, pois médico era o que não havia.
Meu bisavô, talvez por distração ou loucura, pegou um livro para ler a salvação. Achou que era um livro de medicina e curaria minha bisavó. Não teve jeito.
Daí pegou a mania. Todas as tardes ele ia para a biblioteca e ficava por horas lendo, lendo lendo. Nunca mais até o final de sua vida ele deixou este ritual. Ninguém o incomodava porque sabiam o motivo daquele enclausuramento nas palavras. Ficou mudo. Conversava só com os livros durante horas e horas a fio, diziam quem dele mais se aproximava. Virava as páginas e, dependendo do livro, soltava uma exclamação, um grito rouco, ou um suspiro.
Dele, herdei esta louca e apaixonante mania pelos livros. Apenas com uma única ressalva: meu bisavô nunca soube ler.

6 comentários:

mi menor disse...

que estória linda...

beijos e saudades
sua sobrinha.

VIRGINIA L. DE PAIVA MELLO disse...

nossa.... achei triste e quase pude ouvir o grito de lamento. é tão inexplicável quando nos sentimos impotentes, mas a vida segue como desafio constante e vivemos tentando a "salvação". neste caso, uma pena, porque avó é a melhor coisa do mundo. isso eu posso dizer e não existe p/ mim palavra oculta.
bjo gde,
vi

Salomé Mello disse...

Gostei imenso, mas com h de história, talvez o meu jeito de tuga.
beijo

Anne M. Moor disse...

Herança fantástica! Ele certamente te ensinou a ler a vida com profundidade... Não se precisa conhecer as 'palavras' para saber ler.

Crônica que flui. Delícia de ler...

Beijos
Anne

Tatiana Monteiro disse...

Obrigada
Obrigada
Obrigada
Mil vezes
obrigada.

Beijo, Tati

Anônimo disse...

De que leitura será que tratavam os olhos de seu avô?