A escrita como ofício
“É uma coisa curiosa um escritor. Uma
contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É
berrar sem fazer barulho.” (Marguerite Duras – Escrever/ Rocco)
É sempre marcado
pelo passado que se escreve. O ato de escrever é, de alguma maneira, uma
tentativa de reconciliação com nossas memórias. Ora, a memória é também
composta por restos fragmentários que ficaram inconclusos na vida cotidiana. Muitas vezes são
restos que nos assombram, noutras nos deterioram pela fragilidade à qual eles
nos expõem. Duras nos diz que o que ela condena nos livros “é que eles não são
livres. Vê-se isto através da escrita: eles são fabricados, organizados,
regulamentados, convenientes, poderíamos dizer. Uma função de revisão que o
escritor, muitas vezes, exerce em relação a si mesmo.”
Freud, dizia que
uma das funções de uma análise era preencher as lacunas da memória e, assim,
livrar o sujeito de seus traumas e medos infantis que ficaram soterrados sem a
menor possibilidade de dar um sentido claro ou uma significação coerente.
Então, uma análise também é resignificar os fatos
adormecidos, as histórias submersas, verdadeiros tesouros arqueológicos da
nossa infância vivida ou devaneada. “Esse escrever”, continua Duras, “é
perder-se de si mesmo no interior da casa. É escrever apesar do desespero. Não:
com desespero”. Para Marguerite Duras, escrever é como estar só numa casa. “Não
do lado de fora, mas dentro.”
Entrar dentro de
um livro é como entrar numa enorme caverna com seus labirintos em busca de uma
aventura, um romance ou de uma caçada policial sem passar pelos perigos que os
personagens vivem.
Assim, o leitor se
torna co-autor do autor
passando magicamente a fazer parte da 'memória' vivida deste. Memória vivida ou
memória inventada, pouco importa.
São memórias afetivas que estimulam
nossas identificações. São atavismos perdidos que um
livro pode recuperar. Um livro diz respeito à memória do seu autor, mas produz
do lado do leitor, a possibilidade de recuperar imagens perdidas, tal como num
filme musical remasterizado. Porém, o que é
mesmo memória e o que é memória inventada em relação ao próprio leitor? O déjà vu é algo que o
sujeito viveu, ou foi 'fabricado' pelo autor confundindo de vez as lembranças
perdidas?
O ofício do
escritor é inventar memórias: as suas e a dos outros. Lá onde não havia nada,
você coloca uma ação, um romance no
qual o sujeito no próximo encontro com sua amada vai dizer as palavras que o protagonista disse e que parece
que saíram de sua boca. É comum lermos trechos inteiros de um livro, ou uma
poesia, e acrescentarmos que "era exatamente isso que eu
pensava, mas não sabia como falar". O escritor fala, então, ao coração do
leitor. Empresta sua voz (e , claro, dos seus personagens) àquele que o lê.
Muitas vezes, o
escritor se torna uma espécie de ghost writer
para o leitor. Mas, isso acontece também dentro do
próprio romance como é o caso de Cyrano de Bergerac, no qual o
personagem, que se achava muito feio, escreve para que um outro o interprete.
A palavra do
escritor tem por função fazer ponte entre os abismos que existem na vida das
pessoas e, assim, possibilitar a crença de que o leitor possa tocar com suas
próprias mãos regiões antes inalcançáveis.
Há enormes
paralelos entre o escritor e um psicanalista. Um deles diz
respeito a que ambos possibilitam que o leitor ou o
paciente interprete seus próprios textos. O texto do escritor é interpretado
pelo leitor através de suas experiências pessoais e outras leituras. O psicanalista leva o paciente a
formular também seus próprios textos, a escutá-los, dando a cada palavra
proferida a devida dimensão de sua paternidade e autoria. Não é à toa que
alguns analisandos terminam suas
análises e vão escrever livros relatando sobre o percurso transcorrido. Vão ficcionalizar sobre a realidade
inventada, a memória perdida e a redução inesgotável de suas dores. Escrever
sobre o resgate da memória perdida é refazer a parábola do filho pródigo ou do
pastor que tendo cem ovelhas e perdido uma, largou as noventa e nove e foi
atrás da que se perdeu. Certos pequenos restos perdidos do passado são mais incômodos e contundentes
(possuem a força de um tsunâmi) do que toda uma
biblioteca de Alexandria de pura e boa memória.
O escritor é um
sujeito que sofre. Também possui suas humanidades, poderiam vocês
contra-argumentarem. Mas, não só. O escritor sofre, padece da palavra. Sofre
dela, por ela e através dela. Sofre e se regozija pelo encontro. Sofre pelo
desencontro tal como no fim de um baile de máscaras; 'não era ele, não era
ela'. É como pensava Duras sobre estar dentro, mas do lado de fora. Solidão.
A memória do
escritor é atualizada na palavra
construída, inventada por ele e, assim, resignificada sobre o tempo
perdido. Quem escreve, não perde tempo. Quem escreve, não se perde do seu
tempo. Quem escreve, não se perde no tempo. No tempo das memórias inventadas.
Carlos
Eduardo Leal
Psicanalista
e escritor
Para quem gosta de ler ouvindo música: Marina de
La Riva – c
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