Niterói, 18 de julho de 2017
Cartas
para Clarice Lispector
"Mas
é que eu também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma,
nada me existe. E - se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada me
aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu
compreendo - que sei do resto? o resto não existiu."
Clarice
Lispector, A Paixão Segundo G.H.
Querida
Clarice,
Há
algum tempo sei que você vem tentando dar forma a algo que te aconteceu. Mas, o
que te aconteceu se eu daqui não o soube? Tentei entrar em contato contigo e a
última carta ficou como algo inaudito. A memória que eu tinha foi lentamente se
apagando. Sei que da última vez que nos vimos você estava preocupada, fumando
lentamente como se as palavras fossem fumaça e não tivessem esta densidade que
lhe é tão peculiar. Creio que dar forma ao peso da leveza não está nos planos
da criação do escritor. A forma que te escapa pulsa entre sombras e luzes como
se fosse num quadro renascentista italiano do “Cinquecento”.
As
horas nuas gastas na A paixão Segundo G.H. te consumiram ou ainda haverá fôlego
para o mais? Sei que quando não escreves estás morta. Por isso, suplico-te. Não
enterres teu melhor personagem: você.
Será
que verdadeiramente nada te aconteceu ou esta terceira perna apenas virou outro
nome para dizer o que não existe? Se só acontece o que você compreende, espero
que compreendas a insistência desta carta. Não te escreveria se soubesse de
antemão que me responderias, mas é justamente por não compreender por que a
palavra fica em suspenso que te escrevo e continuarei a te escrever se
permitires por mais algumas vezes. Não sei quantas. As palavras ainda são um
resto que me assolam. Se este resto também não existir então a palavra também
não terá existido. E, saibas, creio na tua palavra. Creio na consistência do
medo. Creio na exigência em ser feliz. Creio que se reza porque temos medo.
Creio que o mar revolta-se pela lua. E creio que a beleza é feita de
estranhamentos e a vida é assim também. Mas não saberia viver se não tivesses
existido em mim.
Por
isto tudo creio. E me assombro e me espanto diante do mistério triste por vir.
Estou
aqui. Estás aí. Estamos nas palavras. Solidários e solitários como sempre
estivemos. Aguardo-te diante de minhas pequenas mortes. Da alegria, por vezes
tenho medo. De ser tão real que passaria a me desmembrar sem ela. Até a próxima
carta.
Teu,
Carlos
Eduardo Leal
3 comentários:
Excelente iniciativa...e que belo texto! Bravo! Sou fã..dos dois!! Beijos
Que ótimo! Adorei!
Bela carta gostei muito.Admiro tua paixão por Clarice.Eu também estou lendo e relendo apaixonadamente.
Postar um comentário