Os Anjos
Caídos no Paraíso Perdido
A recordação
da felicidade já não é felicidade, enquanto a dor é ainda dor.
Lord Byron
A idéia do
Paraíso Perdido sempre foi fascinante para o ser humano. A vontade de
reencontrá-lo parece ter sido substituída por um lenimento na tradição cristã,
um adiamento post mortem, ou seja, a
felicidade seria alcançada no encontro com Deus. Por que Adão, o primeiro anjo
pecou, nós, anjos caídos descendentes dele, estamos fadados a cada passo a
estarmos mais próximos do cadafalso. A esperança plantada como uma célula
terrorista em nossos corações, ou como um chip infestado de vírus em nossas
almas é de que a Terra é tudo aquilo que não é o Paraíso Perdido. E, de nossa
parte, parece que estamos bastante empenhados em fazer dela a confirmação do
que disse: uma devastação nas condições de vida que vão das relações do homem
com o meio-ambiente até as mortificações das inter-relações.
O escritor
holandês Cees Nooteboom teve uma experiência real muito interessante. Nooteboom
relata que foi convidado para um evento de arte em Perth, pequena cidade da
Austrália: ele e algumas outras pessoas iriam fazer um percurso por certos
lugares na cidade para encontrar anjos. Pessoas comuns vestidas de branco e com
asas, nas mais diversas situações. Num prédio abandonado, atrás de um armário,
olhando para a parede estava uma mulher imóvel vestida de anjo. Um anjo
decaído. Ficou fascinado por aquela personagem ali jogada olhando para o nada.
Tentou conversar com ela. Após algum tempo, o máximo que ouviu foi: “não posso
falar com o senhor”. Foi a partir desta
experiência que ele escreveu Paraíso Perdido (Companhia das
Letras).
O livro conta
a história de Alma - o nome é proposital – uma linda e jovem brasileira que
após ter sido estuprada numa favela em São Paulo, voa para a Austrália com sua
melhor amiga, Almut. Ambas têm descendência alemã, estudam história da arte e
Alma é obcecada por anjos. Ela terá um affaire
com um pintor aborígine feito de sexo e longos silêncios à beira-mar. É ela
quem se transformará no anjo cênico. Paraíso
Perdido é um pequeno labirinto metalingüístico onde o acaso anda à solta,
como um anjo, a promover encontros e presenciar desencontros e mal-entendidos
humanos, demasiadamente humanos, diria Nietzsche.
Em certo
momento dá-se o encontro com o anjo: “E ele? Um homem num aposento fitando um
anjo estendido no chão. Anjos são seres míticos, mas em pleno século XX caem na
categoria do kitsch, da ironia ou da
encenação. E, ainda assim, aquele corpo mirrado e encolhido, aqueles pés
descalços, todo aquele ser feminino – porque era uma mulher, ele tinha certeza,
por mais que parecesse com um menino – causara nele um efeito: medo, comoção,
desejo. Ele precisava vê-la levantar-se e bater aquelas asas que jaziam,
grotescas, na poeira.” Retorna ao hotel, mas naquela noite ele não irá dormir.
Pensa nela continuamente nela. Todo anjo é atemorizante, escreveu Rilke. E onde
há medo, também há desejo. No dia seguinte ele retorna. “Pousa o olhar no rosto
imóvel, nos pés descalços, nas asas. O que aconteceria se ele dissesse alguma
coisa? Um tijolo arremessado contra um espelho, um ruído de cacos se quebrando,
uma espécie de gemido vítreo, e o silêncio volta a se impor. Um silêncio dos
que violam o intangível. Senta-se, de costas para a parede. O tempo, desprovido
de peso, recebia um lastro em que tudo pesava: a tensão, o pressentimento de
uma cilada. Pensa ter ouvido alguém se aproximar, mas é um alarme falso. Ele
toca uma das asas bem de mansinho, com a maior ligeireza possível. – Please, go away. – I cannot. I want to talk
to you. (...) Acontece que me apaixonei perdidamente por você”, ele diz.
“Foi por causa das asas. Você não foi o único. Mas anjos e seres humanos são
incompatíveis”.
É nesta tênue
linha entre ficção e realidade que Cees Nooteboom transita e parece nos levar
ao intangível das relações.
O acaso faz
com que o ‘autor’ e Alma se encontrem no avião de volta. Ela lhe sussurra:
“Será que o senhor já parou para pensar no inventor do Paraíso, um lugar onde
não ocorrem mal-entendidos? O tédio incomensurável que deve reinar lá só pode
ser entendido como uma punição. Para inventar algo assim, só mesmo um mau
escritor.”
Se estamos
fora do Paraíso, qual é o habitat que esta Terra nos reserva? Será que a
humanização tem nos tornado demoníacos?
Harold Bloom,
Anjos
Caídos (Objetiva), escreve que “o anjo Adão foi um anjo caído que logo
pôde ser distinguido de Deus. (...) Eu afirmo alegremente que todos nós somos
anjos caídos, e trato agora de nos separar e de nos afastar para longe de
nossos primos mais antipáticos, os demônios e os diabos.”
Carlos
Eduardo Leal
Psicanalista
e escritor
Para quem
gosta de ler ouvindo música, a voz de um anjo: Virgínia Rodrigues no cd
Recomeço. Principalmente, a primeira faixa: Todo
o sentimento (Chico Buarque e Cristóvão Bastos). Biscoito Fino.
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