Gosto mais de viajar por palavras do que de trem - Manoel de Barros
Desci na estação de trem e quando dei por mim percebi que havia esquecido
minha valise de palavras dentro do trem e que este partira há uma hora. Voltei
correndo tentando rastrear nos trilhos o cheiro das minhas palavras. Na estação
quis perguntar a um funcionário sobre o trem, mas não consegui dizer nenhuma
palavra. Abria a boca, mas os sons não saíam. Peguei uma caneta e um bloco de
rascunho e tentei escrever, mas também as palavras não vinham. Era um
estranho embaçamento nas ideias e no sentido. Estava mesmo fora de mim. Era
como se estivesse numa espécie de limbo; zona fronteiriça entre o pensamento e a
vida por dizer. Eu que achei que sempre tinha tanto a dizer agora me encontrava
num deserto árido e sem destino. O trem levara não só minhas palavras, mas toda
a possibilidade de ser. De estar-aí-no-mundo.
Desassossegado, percebi que sem as palavras eu me tornara frágil como um
'cão sem plumas'. Tentei uma interjeição, um grito, um 'ai', mas nada
adiantava. Algumas pessoas chegavam perto de mim e pensavam que eu havia
enlouquecido. Ao verem aquela cena de um homem que abria e fechava a boca
desesperadamente, uns riam com escárnio enquanto outros fugiam apavorados. Eu
me esforçava guturalmente. Meus lábios se mexiam, mas a voz continuava turva
como quem perde repentinamente a visão com a areia que se levanta abruptamente
na ventania de uma praia.
Foi quando surgiu uma criança. Não devia ter mais do que seis anos e,
vendo minha aflição, começou a me emprestar algumas palavras que não existiam.
Foi assim, através da rica imaginação de uma criança, que reinventei as
palavras e a vida. Afinal, as crianças não nos ensinam sobre a vida todos os
dias e como sair dos trilhos? Nós é que, tristemente, as colocamos na
indefectível linha reta das nossas pesadas e arcaicas valises
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