sábado, 3 de novembro de 2012

A sombra


                                Foto da minha sombra - EUA/2011
                                                    

A sombra

No sítio me meu avô, depois do café da manhã, eu corria para fora da casa para saber das novidades. Não passava um dia no sítio sem que houvesse uma novidade. Mas, naquela manhã ensolarada de janeiro, parecia que nada ia acontecer. Foi quando algo se moveu bem diante dos meus olhos. Fiz um pequeno movimento e ela se mexeu novamente. Assustado, quis correr, mas o troço me seguiu. Era minha sombra. Pela primeira vez dava conta da minha sombra. Pela primeira vez a novidade do sítio estava em mim mesmo. Corri para trás de uma moita e pensei: consegui enganá-la. Depois de uma eternidade, mas que no tempo-criança deve ter durado uns cinco minutos ou menos, saí devagarinho achando que havia conseguido despistá-la. Lá estava ela ainda mais forte em sua presença ameaçadora.
Sem outra alternativa que me coubesse na hora gritei entre aflito e atônito: Vô! Vôoooo! 
Como um raio, meu vô surgiu em sua costumeira calma, não sei bem de onde nem como.
- O que foi, menino?
- Não foi, vô. Ainda é.
- E o que ainda é?
E naquele instante percebi que o mal também afetava meu vô. Mas, como avisá-lo sem levantar suspeitas que o fizesse aterrorizar também? Lembrei da moita de capim colonial e sem dar uma palavra peguei-o pela mão e o levei para lá. E, não sem muito medo, contei-lhe o ocorrido.
Meu vô não riu. Ao contrário, muito sério disse.
- Eu também já havia reparado, mas não queria te contar nada para não te assustar.
- Quando é que o senhor viu pela primeira vez? perguntei assustado.
- Mais ou menos quando tinha a sua idade.
- E o senhor tem ela até hoje?
- Tenho.
- Mas...não lhe mete medo?
- Houve época que sim. Foi época em que eu andava sozinho. Depois, aprendi que ela era minha melhor amiga, porque aonde quer que eu fosse, ela era minha fiel companheira. Até quando eu ia dormir ela deitava-se embaixo da cama esperando o dia clarear para voltar a me fazer companhia. - Fez uma longa pausa, como que querendo me contar algo muito importante, suspirou e disse: - Desde este dia eu soube que a minha sombra revelava como eu estava. Se estava alegre ela pulava de alegria quando eu assim também fazia. Se estava triste e cabisbaixo, ela reverenciosamente, também curvava-se para coabitar o sentimento que eu estava passando. Descobri ainda que ela guardava todos os meus segredos mais íntimos do coração. Que ela é até mais fiel e amiga do que o Rex que me acompanha mataadentro quando saio para caçar. Ela é nossa relação entre nossa verdade mais íntima e o mundo exterior.
Foi quando o interrompi.
- É isso que a vó chama de alma?
Desta vez ele apenas sorriu, não deu uma palavra, passou a mão nos meus cabelos, segurou firme na minha mão e desaparecemos no dia.

4 comentários:

Anne M. Moor disse...

Assim como teu avô fez parte viva da tua infância, a minha vó materna também...

Conto maravilhoso de duas pessoas muito sensíveis!

bjs
Anne

Mônica Moreira Senra disse...

"Ela é nossa relação entre nossa verdade mais íntima e o mundo exterior."

- Imanente? transcendente?

(...)

A própria sombra...

Raquel Abrantes disse...

Que texto mais sensível, Cel! Amei.

Beijos

Silvia King Jeck disse...

O que tem de simples,tem de verdadeiro. Vós e vôs são pessoas muito especiais. Para mim foram também.

Bjos