sábado, 17 de novembro de 2012

A mãe transbordante


Lelê estava debruçada sobre as margens do córrego ligeiro. Vez por outra, quando a luz do sol incidia sobre um caco de vidro azul no fundo do riacho, ela conseguia ver seu rosto. Era só de relance. Uma espécie de iluminação momentânea que Lelê sentia quando se via ali no fundo do rio que a arrastava. Ficava por horas assim até que o formigamento nos braços a obrigasse a vir a decúbito dorsal. Então, barriga pra cima e cabelos escorrendo dentro do rio, encharcava-se no fixar o sol. Os olhos doíam de tanto amarelar. Queria se ver refletida no fundo do riacho. Queria se ver nos contornos do sol. Desde que sua mãe morrera com doença que vai secando os interiores, ela pegara esta mania. Esquisitice e espécie de doideira, diziam. 
Acordava, Seu Antonio penteava seus longos cabelos, difíceis de desembaraçar, tomava um mísero café com um pedaço de bolo envelhecido, deixava uma parte para o irmão menor e, sem dizer palavra, rumava invisível para a curva do rio que cabia justo seu corpo. Era ali a esperança de que a vida não corresse tanto. Era ali a esperança que sua mãe pudesse retornar numa enchente. Foi numa noite de enchente que o rio a levou. Embrulharam seu corpo num lençol empoeirado, colocaram-no próximo ao rio para prepararem a cova quando foram surpreendidos por uma tromba d'água que levou o corpo bem diante do olhar dos poucos habitantes do lugarejo. Comida por bicho ou enroscada em mato prenhe, o certo é que nunca mais descobriram o corpo de Lindalva. Lelê ficou ali esperando a mãe. Talvez seu retorno por algum outro capricho da natureza. Disso só ela sabia, pois não falava com ninguém o motivo de tão estranho comportamento.
E foi o que aconteceu. Numa tarde nebulosa, cinzenta-fria, veio o que todos sabiam que um dia viria. Outra tromba d'água. Seu Antonio correu muito porque sabia que a filha estava aprumada na beira rio. Chegou a tempo de ver o vestido branco de flores amarelas-encardidas, descendo rio afora. Gritou caído no desespero. Que o rio tivesse feito isso com sua Lindalva que já estava dormindo sem esperanças era uma coisa, mas com sua filhinha, isso não podia acontecer. Gritou uma, duas, mil vezes gritou implorando aos deuses que tivessem pena dele. 
Por detrás de uma moita, nua, Lelê observava a dor de seu pai. Não tinha frio nem medo. Olhos arregalados, fixos a mirar o vazio absoluto. Antes, havia nela uma espécie de excitação por se fazer encontrar com sua mãe. Era crença na verdade da loucura que tomara a menina ainda muito nova. Era a dor que delirava ser uma só com sua mãe. 
Muitos juraram tê-la visto entrando e saindo do rio envolta num lençol branco. Virou caso de assombração que na roça ganha contornos ainda mais volumosos do que rio transbordante.
Seu Antonio ouvia as histórias da filha assombrada. De seus olhos brotavam duas lágrimas. Uma para Lindalva, outra para Lelê. Pouco a pouco seus olhos secaram e precisava ir até a margem do riacho para umedecer a vista cansada da vida. Foi num destes dias em que ele, com seus próprios olhos a avistou. Avistou sua Lelezinha. Mas já não a reconhecia no sorriso debochado, irônico, os cabelos feito medusa, ainda mais maltratada pela vida. Se alimentava de quê? Como se escondia do frio e dos animais selvagens? 
Com o amor de sempre, Seu Antonio tomou sua filha pelos braços e a reconduziu para a casa. Sua tia deu-lhe banho, roupa limpa e uma sopa dos restos. Seu irmão, agora já quase um homem, tentou puxar conversa, mas não encontrava retorno em suas próprias palavras.
Uma alegria triste tomou conta da casa. A espera pelo reencontro ao menos mantinha acesa a esperança do pai. Mas já não havia mais pelo que esperar. Então, o que esperar da vida? Cuidar do que sobrou? Dos restos de uma lembrança que não se apaga?
Mulher, que escondia nos olhos ainda um espanto de menina, Lelê não passava mais da porta da sala. Sempre taciturna. Sempre no fundo de si mesma,  calada no veloz do riacho que segundo se soube levou sua mãe e a voz dela. Com o passar do tempo, a semelhança entre as duas era espantosa. O que deixou de existir em uma, ressurgia na outra. 
Seu Antonio não podia ver a filha que chorava a dor de sua Lindalva. Lelê entendia muito menos aquilo, mas no fundo de seu leito, também sabia da desgraça que se abatera sobre aquela casa.
Foi quando ela decidiu sobre sua segunda morte. O rio a esperava transbordante e veloz naquela noite. Foi a última vez que ouviram no ao longe um grito seu, mas que também era a voz de sua mãe. 
     

Um comentário:

Lin@ disse...

'Então, o que esperar da vida? Cuidar do que sobrou? Dos restos de uma lembrança que não se apaga?'
Ainda bem que sobrou algo!
É tão bonito, Poeta!
Bjinhos
Lin@