segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Autobiografia - Validade: um dia

Salvador Dali

Há partes de mim impressionistas, outras cubistas, outras renascentistas que ainda não nasceram. Tudo que é não-eu resvala-se sobre tintas e pincéis em cores surrealistas ou nunca usadas. Há outras partes de mim parnasianas, barrocas, modernistas e quase-contemporâneas. Desprezo as palavras que me completam, os livros que me orientam, os autores que me autoajudam. Habito o inconcluso e é a partir deste mal-estar que caminho por entre Vivaldi, Mozart, Bach, Beethoven, Mahler e Wagner. De Toscanini roubei o virtuosismo de sua batuta, de Van Gogh a palheta, de Salvador Dali seu desvario, de Artaud seu teatro, de Samuel Beckett seus silêncios, de Freud o inconsciente, de Lacan seu olhar de futuro-anterior, de Clarice seus enigmas, de Guimarães suas veredas... Do oceano recebo o murmurar das ondas, das gaivotas o voo curvo em arco, das borboletas o mimetismo com os troncos das árvores, da hiena o riso de escárnio, da coruja o gosto pelo noturno, dos rios a descida vertiginosa. Em dias assim, os lagos me aborrecem com sua calmaria, a falta de vento clama tempestades, as caixas de som por um jazz pulsante, os ouvidos pelo teu nome exultado em meu coração. 
Há outras partes de mim que bem sei, gostariam de estar presentes no dia de hoje. Mas, infelizmente, em dias assim, pressentindo o pior, elas me abandonam e, sinceramente, não sei quando retornam. Portanto, nada posso dizer ou saber sobre elas. Fico repleto de espaços silenciosos e ocos como um bambu. Não me criei para flautas, mas para violoncelos. A gravidade melancólica do instrumento não faz nenhuma fronteira ao meu corpo. Eu e ele somos um só instrumento. As Seis Suítes para Violoncelo de Bach fazem parte das minhas entranhas. Sim, sou composto por acordes de um Boccherini ou Rostropovich para as notas graves e outras que compõe minha Saraband. 
Acordei com o pescoço alongado de um Modigliani, a dissonância da guitarra de Hendrix, os olhos arredondados de um mangá e os dedos compridos de Glenn Gould. A sedução de Frida Kahlo por Diogo Rivera tempera os outros eus-pessoanos que habitam partes invisíveis do meu corpo. Para uma metamorfose kafkiana nada falta. Talvez só o empuxo ao livro. Cego-me com as serpentes cabeça da Medusa e faço com meus heterônimos a assinatura possível para corromper o dia. 
Sim, corrompo palavras, destrato outras, defloro outras tantas ainda virgens de mim e, assim, reinvento o dia. 
O que sobrar de minhas horas vadias vou debulhar para o amanhã. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Poesia Erótica

 Gustav Klimt The Virgin

Poesia Erótica

Falar do erotismo é uma tentação e um perigo. Tentação porque o tema por ser demasiadamente humano, corre o risco de se tornar banal, e um perigo porque corremos o risco de não querermos mais falar de outra coisa de tanto que o tema nos excita. O erótico não é o pornográfico. O pornográfico é sem sal. Alguns podem até achar que dá tesão, mas é muito mais insosso do que o erótico que apenas insinua, quase revela ou ainda que um véu, um pequeno véu, recubra um mistério a ser desvendado. No pornográfico a palavra está escandida ou substituída apenas por algumas interjeições que tentam inflamar a monotonia do coito superlativo. No erotismo, e George Bataille sabia disso quando escreveu  A história do olho, com todas as metáforas que vocês quiserem e puderem fazer com este tal de olho. Dois adolescentes a experimentarem os prazeres do olho. Ele não nos diz do olhar que seria outra coisa, talvez mais ao gosto sublimatório. Bataille não nos faz concessões, ele vai fundo ao mais fundo do que se possa ir em relação ao olho até arrancá-lo do touro e comê-lo frio numa bandeja oferecida ao menino e a sua devassa namorada. A história escandalizou tanto ao próprio Bataille que ele não teve coragem assinar seu nome e inventou um pseudônimo, mas mesmo assim não esqueceu a ironia escatológica. Deu-se o nome de Lord Ausch que é Deus cagando(quem nos explica é o próprio Bataille numa entrevista muitos anos após a publicação do texto).
Mas o livro desta resenha é mais ameno, mas não menos erótico. Chama-se Poesia Erótica (Companhia de Bolso) com tradução de José Paulo Paes, o que já é uma garantia de boa leitura. O livro em versão bilíngue vai dos Gregos, passando pelos alemães e italianos da Renascença aos franceses surrealistas.  A poesia erótica não trata obviamente apenas de Eros e seus priapismo fálico, mas também de dois temas caros ao erotismo: amor e morte. Talvez salvo apenas por Safo de Lesbos e a poesia mística de Santa Teresa de Ávila, a poesia erótica é predominantemente masculina, mas nem sempre machista, pois a homossexualidade se escondeu inúmeras vezes por detrás de versos dúbios e cheios de duplos sentidos.  
Como disse no início, o tema é vasto e tentador. O melhor mesmo é ir direto aos poemas e deixar que vocês se deliciem através dos tempos; dos tempos eróticos das palavras.
Amo três gestos teus quando, senho,
Me incendeias do teu próprio fogo.
Te serves do meu corpo, minha boca
Sorves na tua, me penetras...
És poderoso, vivo, estás feliz.
Mas depois disso cada minuto é meu. Giosi Lippolis (poeta italiana da atualidade)

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A três homens eu, Lide, servi com a maior presteza:
Um sobre o ventre, outro debaixo e o outro atrás.
Recebo pederastas, mulherengos, extravagantes.
Se tendes pressa, que entrem os dois sem hesitar. (Antologia Grega)

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Sou eu, mulheres, abro o meu caminho,
Sou severo, cáustico, indissuadível, mas amo vocês,
Não as machuco mais que o necessário a vocês mesmas,
Derramo a substância geradora de filhos e filhas dignos destes Estados,
Assedio com músculo pausado e rude,
Me firmo eficazmente, não dou ouvido a rogos,
Não ouso retirar-me sem depositar o que há muito acumulei dentro de mim. (Walt Whitman)
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(...)E essas nádegas ainda, lua de dois
Quartos, alegre e misteriosa, em que depois
Irei alojar os meus sonhos de poeta,
Meu terno coração e meus sonhos de esteta!
E amante, ou melhor, amo em silêncio obedecido,
Reina ela sobre mim, o seu servo rendido. (Verlaine)
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A indecência pode ser normal, saudável;
Na verdade, um pouco de indecência é necessário em toda vida
Para a manter normal, saudável. (D.H. Lawrence).
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Se você, prezado leitor(a) se excitou, então corra ( não, não pense bobagens!)
para a livraria mais próxima e compre o livro para se deleitar com as outras poesias.  
Carlos Eduardo Leal
Psicanalista e escritor
Para quem gosta de ler ouvindo música: Anonimus: cd de música vocal renascentista, pelo selo Niterói Discos.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Enxurrada



Foi logo depois de uma tempestade no sítio de meu avô que um milagre se deu. O açude com traíras ficava ao lado de um campo de futebol onde brincávamos. Mas do que eu gostava era de vê-las dormindo na lama na beira do açude. Era um espetáculo extasiante para um menino. Eu quase podia tocá-las e, no entanto, sabia pelo dedo do Seu José empapado de sangue, o que um peixe daqueles era capaz de fazer. Esta iminência do perigo parece que me atraía ainda mais. Excitação e medo. Combinação perfeita para o desejo. 
Havia começado a chover no fim do dia e só terminou de manhã cedinho. Sei porque passei quase a noite toda acordado pensando que talvez ali seria o fim do mundo. Um menino adora pensar sobre o apocalipse e o fim da Terra. E aquele cenário era perfeito. Pelas frestas da veneziana da janela de meu quarto podia ver a claridade deitando sua luz enfurecida sobre a terra. Eram muitos e ela não haveria de aguentar tantos raios a furar-lhe o solo. Haveria de partir-se ao meio e rolar pelo universo ainda naquela noite. O fim estava próximo. A certeza com o passar das horas era cada vez mais evidente. Eram tantos raios e trovões que os cachorros latiam uivando de medo. Escutei uma correria na casa. Pensei que a "hora"  havia chegado. Levantei para me despedir da família, mas logo descobri tratar-se de uma enorme goteira no quarto de minha bisavó. Meus primos e irmãos dormiam num silêncio outonal. Eu não. Eu me derramava em emoções como a chuva de verão lá fora. 
O dia amanheceu espantosamente belo. A chuva havia lavado o mundo. Depois do café íamos saindo para ver os córregos que se formaram e os estragos. Algumas árvores deitadas não suportaram passar a noite de pé. Haiti parecia já ter esquecido a tormenta. Abanava seu rabo, pulava em cima de mim com suas patas enlameadas enquanto vinha me lamber como todo cachorro que se preza costuma fazer.
Foi quando o vô me chamou. Ele sabia que eu gostava quando me chamava para ver alguma coisa. O olhar do meu avô enxergava coisas invisíveis aos olhos humanos. Eram sempre coisas inusitadas que me mostrava: um teia de aranha com um grilo preso. O rastro de caramujo que desaparecia por debaixo de uma folha de couve. Uma rã equilibrando-se em cima de uma vareta. Os ovinhos no ninho de uma rolinha. E fui. Desci em disparada em direção a sua voz. O momento pedia. Talvez fossem sinais do fim do mundo.
Ele estava no campinho abaixo da casa ao lado do açude. O que vi causou-me espanto e uma certa dose de angústia embora eu não soubesse naquela época o que era este sentimento de desconforto. Havia dezenas de traíras mortas no campo. O açude transbordou, ele disse enquanto segurava firme minha mão. Elas estão mortas? Por que a gente pergunta o óbvio quando não conseguimos acreditar no que está tão evidente? 
Olhe mais de perto, meu neto. Eu não queria olhar. A morte assusta, vô. 
Então ele me contou a história da multiplicação dos peixes: os céus quando viam que havia crianças passando fome, despejava de noite muitos peixes no açude até transbordar. Chovia pexes, ele quis dizer. Fiquei extasiado com a história. Já tinha ouvido minha avó falar em milagre principalmente quando uma galinha que não botava ovo começou a chocar pintinhos. 
Minha bisavó Otávia, que era muito inteligente, chegou de mansinho com seu vestido azul de florzinhas brancas, cabelo ralo branquinho, chegou perto de mim e disse: ali ao lado daquele peixe tem uma palavra. Qual vó? Aquele peixe maior ali, apontou para um prateado. Vá lá e pegue a palavra tempestade que está caída ao lado dele. Também veio com a chuva, vó? 
Ela sorriu, passou a mão na minha cabeça, larguei a mão do vô e confiante, obedeci. 
Tratei de guardar aquela palavra e todas as outras que me foram "ofertadas" pelos meus avós dentro dos livros. Assim, elas não se sentiriam tão só. 
Ainda hoje, sempre que posso, passo para revê-las. 

A terceira palavra


Nasci sem saber onde estava. E, como não sabia, para mim era irrelevante saber. Não havia curiosidade alguma. Só contemplava. Depois de dois anos e meio vegetando e sem dar sinais de que ousaria falar ou sair do meu cercado, pronunciei a primeira palavra "mamãe" e, para que o senhor que estava ao seu lado não se decepcionasse, "papai". Foi uma alegria geral. Finalmente, aquela criança insossa, seria um pouco mais do que um legume mal cheiroso. 
Não é que eu não soubesse falar. Sabia já há muito tempo como dizer as coisas. Apenas não achava necessário. Ridículo falar seria mais justo pensar. As palavras tonteavam-me a cabeça. Ficava irritadiço quando macaqueavam sons para que eu repetisse. Para quê? Perguntava-me irritado e silencioso. Aliás, apenas grunhia e gritava sons incompreensíveis.
Depois de haver dito com enorme nitidez e desenvoltura como quem já tivesse o dom da oratória, não proferi mais nenhuma palavra.
Acreditava que estas duas palavras eram tão fundamentais na vida de uma criança que nenhuma depois delas poderiam substituí-las. Seria uma mácula com os nomes que eles gostaram tanto quando eu os chamei. E, assim, apenas os olhava, compreendia tudo que me diziam, mas mantinha meu silêncio. Sabia que eles sabiam que eu poderia falar, que não havia em mim nenhum problema de audição ou fonador. Mas seria um sacrilégio profanar aquelas duas primeiras palavras. Prometi que não diria a terceira palavra. 
Na escola eu era um brilhante aluno, mas todos me achavam estranho por não falar. Meus pais haviam conversado com a direção da escola sobre minha situação. Os anos foram passando, tive mais dois irmãos que falavam como tagarelas, talvez para compensar minha mudez, mas mantive-me firme em meu propósito de não pronunciar a terceira palavra.
Hoje, mesmo após a morte de meus pais há muitos anos, continuo em meu retiro de silêncio absoluto. Tornei-me um monge recluso. Talvez a única opção que me restou para as condições difíceis que me impus ao longo da vida. Foi Deus que quis assim. Acreditei nisso ainda na adolescência. E como o nome de Deus não podia ser menor que o dos meus pai, eu deveria antes de qualquer palavra ter dito Seu nome. Depois seria blasfêmia. 
Encontro-me atualmente num mosteiro na Bélgica. Guardo meus votos de silêncio. Guardo meus votos de preservar mamãe e papai.  

Inspirado em: "A metafísica dos tubos" de Amélie Nothomb (um relato autobiográfico ancorado no delírio, tal como Joyce, pensado por Lacan). Alguns trechos:  "sou eu. Eu sou a que vive. Eu sou a que fala..."(...) "O acidente mental é uma poeira que entra por acaso na ostra do cérebro, não obstante a proteção das casas fechadas da caixa craniana. De repente, a matéria tenra que vive no centro do crânio é perturbada, enlouquecida, ameaçada por esta coisa estranha que nela penetrou; a ostra que vegetava em paz dá o alarme e busca anteparo." (...) "Já Deus não se cansava de efetuar seu primeiro absolutamente nada." (...)"A única escolha ruim é a ausência de escolha. Deus não recusara nada porque nada havia escolhido. Por isto é que não vivia."(Deus é ela no livro, na verdade um tubo metafísico).

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Semana Clarice Lispector Dia "C", 10 de dezembro

http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok&feature=player_embedded

Clarice Lispector: Aquarela sobre foto P&B

Semana Clarice Lispector Clarice nasceu no dia 10 de dezembro

‎"É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar. Olhei pra você fixamente por instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade".

"Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei de criar sobre a vida. E sem mentir." A Paixão Segundo G.H.

Semana Clarice Lispector
‎"Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo "águas abundantes" estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio. Ah, tenho medo do Deus e do meu silêncio. Sou-me." Água Viva

domingo, 4 de dezembro de 2011

Dormingo

 
Dormingo. 
O que vocês leem aqui não são minhas palavras. Ainda durmo. Portanto, são meus sonhos. Palavras oníricas. Feitas de traços de memória, pequenos esquecimentos, lembranças infantis, desejos inconfessos, árvores por subir, ossos fraturados. O sol se aproxima e cochicha alguma coisa em meus ouvidos. Não ouço o final porque o vento o leva para detrás das nuvens. Dentre elas existem substantivos escondidos. Tento saber em qual delas estará o teu nome. Um sorriso aparece por detrás de marionetes. São autômatos que vem brincar comigo. Parece um dia de festa. Todo domingo deveria ser dia de festa. Agora crianças surgem de todos os lados e me puxam para pular corda. A corda trançada é enorme e faz um belo arco no céu enquanto as crianças pulam flutuando. Meu avô diz que é hora de irmos ao circo. Não caibo em mim de tanto contentamento. Palhaços me excitam e causam-me terror. O que haverá por detrás da máscara que esconde a máscara do rosto? Há um circo com trapezistas. Sou um deles. Equilibro-me em palavras. Algumas parecem não suportar meu peso. São frágeis minhas palavras. Vou cair. Vertigo!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Van Gogh



Estava cansado de andar e resolvi calçar Van Gogh. Assim, descansei meus olhos, desamarrei meu dia e, descalço, pude sentir o preço da leveza. Peguei tinta e pincel e, com eles, escrevi o seu nome sobre uma tela de linho branca. Escrevi com diversos tipos de letras e todas as cores disponíveis. Seu nome estampado virou um vestido que colava em teu corpo. E você flutuava em letras comigo pelos canais de Amsterdã. Nas tardes cansadas, um arcoíris flanava por entre as nuvens. Então, exaustos, íamos tomar um vinho na velha estalagem. Você sorria e, afagando meus cabelos, me fazia deitar em seu colo até sonhar colorido.
Estava cansado de andar e resolvi calçar Van Gogh. Assim, descansei meus olhos nos teus e desamarrei o dia.