sexta-feira, 4 de março de 2011

Terra imóvel

Não há ninguém que não abandone esta vida

como se tivesse acabado de entrar nela.

Epicuro

Não lembro bem qual era o dia da semana. Na verdade tanto podia ser uma terça ou uma quarta-feira. Saber sobre o dia da semana se tornou absolutamente irrelevante diante do ocorrido. O que é a efeméride de um dia após o outro quando se perde todos os referenciais que nos davam alguma sensação de proteção e segurança?

Preciso, isso sim, dizer que era um fim de primavera do mês de novembro e que o meu relato é feito do Brasil, ou o que era o Brasil na América do Sul. É importante localizar geograficamente, pois as coisas não ficaram boas e, desde então, os referenciais daquilo que estamos acostumados a chamar de Planeta Terra, mudaram drasticamente.

Já faz muito tempo, talvez o nome nem importe muito, mas eu me chamo Davi Matheus - o que é um nome quando já não importa mais a sua identidade? Não possuo nenhuma estrela para ser seguida e nem sou o primeiro apóstolo do Novo Testamento.

Quero deixar este relato para as futuras gerações entenderem o que aconteceu sob a ótica de um cidadão comum e não sob as lentes distorcidas da imprensa manipulada, dos enlouquecidos e infinitos grupos religiosos do apocalipse que surgiram ultimamente da polícia paranóica que a todos vigia diuturnamente ou dos políticos de plantão; mestres ninjas na arte do disfarce.

Culpar Copérnico, pobre coitado, por ter descoberto que a Terra gira ou Galileu Galilei porque ela gira em torno do sol, é só a inútil tentativa de jogar uma bóia do pensamento para quem já se afogou em idéias sem nenhum valor.

Ademais, este escrito possui a imperiosa tentativa de obter lembranças, ou melhor, de fixá-las na minha própria mente de como a Terra era antes do acontecido. Quero registrar fatos que considero relevantes, minúcias que precisam ser contadas, depoimento verídico de quem sobreviveu e ainda sobrevive à mais espetacular e trágica hecatombe que a raça humana presenciou. Registrar é o meu dever antes que tudo se transforme num imenso caldo disforme, numa sopa de letras mortas imemoriais e páginas amareladas sem nenhum valor, fraternalmente coladas umas às outras.

Para que possa ser alcançável, caso alguém saiba ainda o que fazer para ter chances de sobrevida, a latitude na qual me encontro é 22º54’17.44” e a longitude, 43º07’24.76”. Só podemos, como já disse, nos localizar com alguma segurança através das antigas medições de latitude e longitude. Tudo se tornou extremamente inseguro e periculoso. Simples atos, como andar a pé ou olhar contemplativamente ao redor, tornaram-se um estorvo. Escrevo daqui onde é ou era o Brasil, América do Sul.

Este mês completa quatro anos desde que a Terra parou de girar, ou melhor, de deixar de fazer a rotação sobre seu próprio eixo. Ainda conseguimos, não sabemos como, continuar com a translação, isto é, nossa órbita em torno do sol. Mas estamos parados, imóveis como se fôssemos uma única montanha no imenso espaço sideral.

Sendo assim, o sol não se move e, desde aquela época, a região do mundo, que era dia, continua sendo dia e a parte da Terra que era noite, mergulhou num mundo de trevas difícil de penetrar e conviver. Por sorte, ou azar, não sei bem, a linha do meridiano que passa pelo eixo setentrional do Brasil continuou com sol e toda a linha vertical para cima e para baixo no globo terrestre ficou ensolarada. Isto compreende uma grande faixa que se estende desde a parte oeste da África (Mauritânia, Senegal, Gamba, Costa do Marfim, Marrocos e, entre outos, Serra Leoa), grande parte do oceano atlântico até uma parte do Pará, Amazonas, Roraima, Amapá e Acre, e desce até parte do Chile, este último já quase totalmente na zona sombria. A faixa de sol continua sobre boa parte das Antilhas, América Central, parte do México, parte da costa oeste americana que atinge parte dos estados do Texas, Nebrasca, Dakota do Sul e do Norte até o Canadá. Os estados da Califórnia, Arizona e Colorado já estão submersos no início da faixa da ausência do sol que se prolonga pelo pacífico até a Ásia, atingindo a Coréia do Norte e do Sul, Malásia, Japão, Cingapura, Indonésia e a outrora poderosa China.

Com isso, a temperatura média anual desta parte diariamente ensolarada do planeta foi se elevando pouco a pouco até atingir um patamar impensável de 42,5 graus. Nos picos de calor, quando acontece de não chover durante muito tempo, a temperatura chega com freqüência a 45 graus e já foi registrado até 49 graus como média entre alguns meses. Nestes períodos, o ar fica pesado como uma densa e constante camada de poluição que entorpece a alma e caímos numa espécie de transe sonambúlico. As minhas lancinantes dores de cabeça são um inferno à parte neste cenário caótico e conturbado.

À direita desta faixa do atlântico, que vai incluir toda a Europa e à esquerda aqui no Brasil, do Acre, inicia-se uma grande zona de sombra como uma espécie de degradée maldito: quanto mais nos aproximamos da região da profunda noite, mais descontrolada se tornam as rebeliões populares e mais inóspitas vão se tornando estas mesmas regiões da Terra. A gélida temperatura tem devastado alguns tipos de vida da flora e da fauna. Nestas regiões de sombra a temperatura média fica entre menos 20 e 10 graus.

Assim, o cultivo de qualquer tipo de planta, alimentícia ou não, passou a ser um problema grave que tem afetado a fome global. O gado tem minguado e o que sobrou está doente, é saqueado ou é trancafiado em fazendas confiscadas pelos governos na esperança de fazerem clones que estimulem a reprodução de carne para a população faminta. Baleias, pela escassez de comida, arremetem-se furiosas contra as praias em busca de peixes menores e acabam grotescamente encalhando nas areias. O espetáculo grotesco da retaliação com facas e facões do enorme mamífero pela população faminta, é algo que só tínhamos comparação nas antigas, e hoje já quase totalmente dizimadas, populações da África. Agora são cenas comuns em pessoas das classe média e alta que vivem à espera de um milagre. Temos que pensar que os antigos conceitos de classes baixa, média ou alta não existem mais. Talvez fosse melhor nos dividirmos em castas como na Índia. Isso subverte totalmente o conceito de relações e de democracia no ocidente, mas como já disse, conceitos como ocidente e oriente foram totalmente banidos na vida atual.

Mais uma vez os mais ricos continuam sendo favorecidos pelo tráfico ilegal de alimentos. Verdadeiras máfias e milícias paramilitares foram se formando ao longo do planeta em defesa de projetos escusos e defesa de populações que possam pagar cada vez mais caro por comida. O ouro, assim como o petróleo que já passou a casa dos U$800 o barril, deixaram de ser referências para a economia mundial. Agora cada setor, assim se divide a Terra, por setores, possui a sua própria referência monetária de acordo com a posição, mais ou menos privilegiada que manteve quando a Terra parou sua rotação. Os antigos meios de locomoção, como os cavalos e as carroças foram reativados, pois a escassez de gasolina converteu o mundo na medida exata da sua paralisação.

Alguns indicadores servem de parâmetro e são sempre em relação aos alimentos que podem ser o gado, algum tipo de fruta, alguns grãos como a soja no Brasil, o arroz na China, ou ainda, a volta das especiarias da Índia, ou seja, cada setor avilta o preço segundo a demanda do mercado interno ou externo. Porém, como a demanda é enorme, pouco se exporta com medo de faltar no próprio país. Este procedimento por um lado resulta na aniquilação de qualquer tipo de moeda como meio de troca e, portanto, qualquer possibilidade de equivalência cambial. Por outro lado, a deterioração e a putrefação dos alimentos produzem uma toxina no ar que dá a sensação de que estamos constantemente num fétido banheiro público. Tudo cheira a ranço e falta de limpeza. A falta de higiene tem levado a população a sofrer de graves moléstias e epidemias cada vez mais alarmantes. A escassez da água é um problema de saúde pública. Os banhos são controlados e feitos uma única vez a cada quinze dias, quando isso é possível.

Os rios estão secando e a vazão da foz do rio Amazonas, para se ter um único exemplo, que no passado representava três vezes por minuto o volume de água da Baía da Guanabara, hoje, para o mesmo parâmetro, são necessários cinco dias. Os outros rios no Brasil ou pelo resto do mundo afora simplesmente tornaram-se insuficientes ou estão à mingua.

O Pantanal já não pode ser mais assim denominado. Em alguns lugares ainda se preservam alguns charcos, mas na sua grande extensão, tornou-se pela grande quantidade de mosquitos que transmitem a febre amarela e muitas outras doenças, uma região inóspita e impenetrável. Aquilo que um dia foi um paraíso terrestre, tornou-se um lodaçal e um atoleiro para a vida. Aliás, a vida como um todo no planeta terra tem se tornado um lodaçal para a alma humana. É uma metáfora corrosiva que eu jamais gostaria de representar, mas foi nisto que nós nos tornamos.

O que aconteceu com a Terra? É um fenômeno que todos procuram sem a menor possibilidade de explicação pela resposta. No dia do evento, o barulho foi ensurdecedor e muitos ficaram tontos e enjoados como se tivesse um enxame de abelhas zunindo sobre suas cabeças, outros morreram de acidentes de carro, trens e aviões, outros ainda de enfarto pelo susto inesperado. Eu mesmo posso dizer que foi muita sorte ter sobrevivido.

Primeiro ouviu-se em todo o mundo uma enorme explosão, o tal do estrondo ensurdecedor que em muitos ainda fica repercutindo incessantemente dentro dos tímpanos, muitos perfurados, diga-se de passagem, e depois, o estrondo foi seguido por um barulho tão alto que mais pareciam milhões de locomotivas se arrastando nos trilhos, tentando frear ao mesmo tempo.

A atmosfera ficou mais parecida com a lunar, como afirmaram, logo após o desastre, alguns astronautas americanos e soviéticos. A gravidade se modificou e g, medida gravitacional, já não é mais 9,8ms2. Ela está, segundo os especialistas, em torno de 5,6 ms2. Aliás, a gravidade já não obedece mais a nenhuma constante. Ela também se tornou uma variável devido à falta de rotação da Terra. Quase se pode voar, diria, mas em compensação a respiração tornou-se mais ordinária: respira-se ofegantemente.

Correr tornou-se um grande desafio e aqueles que o fazem sentem um enorme cansaço após o exercício físico. Tento me poupar fazendo o mínimo de esforço possível para não gastar a energia que ainda tenho. Por outro lado, como tudo se tornou mais leve pela modificação da força de atração da Terra, carregar certos objetos antes impensáveis, tal como uma geladeira, é como carregam uma caixa de sapatos.

Mas a comparação sobre a leveza dos corpos termina aqui. A vida não se tornou mais leve, ao contrário, dia a dia temos caminhado rumo à desertificação da raça humana. Todos os parâmetros sobre a qualidade de vida pioraram sendo que alguns de maneira drástica. Por exemplo, as escolas pararam de funcionar e o raciocínio parece que tem sido apenas um: sobreviver. Parecem ter esquecido que novos aprendizados poderiam trazer novas soluções para este novo tipo de vida. Mas não. A ganância pela luta pela sobrevivência aparelhou as pessoas apenas para o imediatismo. Ninguém mais quer pensar a médio e longo prazo. Um ano, equivale ao que era a contagem de dez ou vinte anos. Em seis meses tudo pode mudar para pior, dizem os noticiários.

Não se pode mais confiar em nenhuma informação. Todos parecem querer vigiar suas atitudes para saber se você encontrou alguma coisa para comer ou alguma vantagem na vida. Não se pode mais confiar em ninguém. Todos querem sobreviver e fazem de tudo para conseguí-lo. Estamos numa espécie de rali da vida, num salve-se quem puder.

Os hospitais estão entupidos de seres humanos com doenças que não se conhece a causa e muito menos o diagnóstico. Muitos enlouqueceram, mas como já disse, como todos os parâmetros para se pensar a normalidade já não mais existem. Inúmeros medicamentos são usados indiscriminadamente para qualquer um devido à escassez de matéria prima para voltar a produzi-los em larga escala.

Aliás, tudo que um dia se conheceu como linha de produção tornou-se obsoleto. Quem produz teve que reinventar suas máquinas para a nova realidade e muitos dos antigos aparelhos como o barômetro e o aparelho de pressão, não possuem mais nenhuma utilidade.

As ruas viraram um verdadeiro inferno. Sair à rua tornou-se algo muito arriscado, uma loteria, pois os carros colidem em altíssima velocidade já que a resistência do ar caiu de maneira violenta. Os assaltos são inclassificáveis, pois vêm de todos os lugares quando menos se espera.

A polícia é insuficiente para conter as desordens e os saques tornaram-se inevitáveis com fugas espetaculares em altíssima velocidade ou com enormes saltos em altura. Os delinquentes, que costumam ser os mais ousados, proporcionam momentos de cinema hollywoodiano que a televisão mostra ad nauseum, quotidianamente. Os muros de proteção das casas deixaram de ter qualquer função. Pulá-lo tornou-se brincadeira de criança.

O meridiano de Greenwich deixou de ser a referência para medir o tempo universal e o tempo das efemérides. Portanto, as referências essenciais a respeito do dia e da noite a que estávamos tão habituados, deixaram de existir desde este fatídico e catastrófico dia.

A lua, pobre dos poetas, melancolicamente fixou-se num eterno quarto minguante com pequenas variações indefiníveis quando observada de certos pontos do nosso planeta.

Estamos, mais do que nunca à mercê do destino e, pelo que parece, diante de um apocalipse sem esperança de um Deus ao final.

Não há mais variações climáticas como as quatro estações, no máximo duas: verão escaldante e inverno seco. O vento deixou de soprar, as chuvas são ridiculamente esparsas no lado noite da Terra pela falta de evaporação e, no lado claro, há a incidência contínua e não previsível de fortes tempestades e inundações insuportáveis.

As cidades costeiras tiveram que ser evacuadas, pois o mar avançou em alguns lugares, algumas centenas de quilômetros. Aqui no Brasil a primeira cidade a ser evacuada por causa da invasão do mar foi Recife. Na Europa, quase toda a Holanda e grande parte da Inglaterra estão submersas. Veneza não existe mais assim como também grande parte da Ásia, principalmente a Indonésia, as ilhas Jacarta, Maldivas e grande parte do Japão. Nas regiões mais altas, como a cordilheira dos Andes, a vida tornou-se impossível.

O que talvez seja melhor sejam as regiões do meio, nem muito altas nem tanto ao nível do mar.

Quanto a mim, um informe: tentei sair deste lugar muitas vezes, mas não consigo. Parece que não me deixam ou não encontro forças. Agora faço um último esforço para vencer a inércia e partir rumo ao desconhecido. Quero ir para lugares arejados que ainda tenham alguma outra chance de vida, algum lugar da Terra que não esteja tão inóspito como no local onde vivo ao nível das intempéries do oceano. Uma região que não seja tão inóspita, nem tanto aos céus nem tanto a Terra.

Quero ter forças para andar, preciso encontrar um meio de subsistir nem que para isso eu tenha que me tornar um outro, diferente de tudo aquilo que aprendi ou sonhei...

- O que houve com ele? Cochichou o enfermeiro apontando para Davi Matheus.

- Foi há quatro anos quando sua avó morreu. Respondeu o médico. -Eles eram muito apegados. Viviam estranhamente como numa simbiose, um para o outro, não tinham mais ninguém na família. Quando ele era criança, seus pais e sua irmã morreram num trágico acidente de carro e só ele se salvou. Eu era amigo dos seus pais. Foi horrível. A partir daí ele conseguiu levar uma vida aparentemente normal. Depois da morte da sua avó sua vida estagnou por completo, ficou taciturno e não deu mais nenhuma palavra. Está então assim imóvel há quatro anos. O único fato realmente estranho e curioso é que ele só chamava sua avó de Mãe Terra.

5 comentários:

pEdrooo disse...

Fiquei confusso pois voce esta falando da vida sem sua vó ou a vida neste mundo que voce acha que ele é sua vó ?

Unknown disse...

"Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio" ( Heráclito de Éfeso )
As mudanças tem se tornado tão "estupidamente" rápidas que às vezes , o que é , deixou de ser, mesmo antes de se tornar ...
Espero que Davi Matheus encontre nos braços acolhedores de sua "avó" ,áreas ecúmenas suficientes para que não só a sua vida prossiga, mas para que também, outras vidas sejam geradas !
bençãos nos sejam concedidas pela avó de Davi !

Silvia King Jeck disse...

Citando Jorge Luis Borges: "No hay otros paraisos que los paraisos perdidos".
Tens que transformar este texto em um livro! É bom demais para ficar restrito aqui. A metáfora está perfeita e o tema é instigante. Grande abraço.
Silvia

Ana Clara Martins disse...

Perfeito Edu, faço as minhas palavras a da Silvia. Seu texto me prendeu do início ao fim, através de sua bela narrativa..(do jeito em que o mundo se encontra, o que poderá acontecer não seja tão diferente do que você descreveu). Parabéns, mais uma vez você superou-se.Um beijo no seu coração.
Ana Clara

Anônimo disse...

Sim... talvez um dia então se lembrarão os homens (porque os animais nunca se esqueceram) que ou lentamente era o dia quem caminhava, tornando-se mão acariciando lenta a pele dela, estação esquecida; ou sorrateira, era a Terra-Mãe-Avó quem se movia, para mostrar-se sempre a mesma ao Sol-Pai-Avô que ali sempre esteve: -- vida(-filha-menina), ninguém está imóvel no universo!...