sábado, 9 de outubro de 2010

O farol







"O senhor...Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. (...) Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina..." G. Rosa - Grande Sertão: Veredas



A neblina sobre a retina não me permitia distinguir as fronteiras do coração. No entanto, aprumava o leme com a confiança de um dia claro, sol de meio dia. Enganava-me na inútil certeza dos arrogantes.

Finalmente, a temida chuva veio. De início, tímida como uma criança em seu primeiro dia de aula. Não sabia se me molhava ou misturava-se ao mar revolto. Por fim, cansada de bordear-me pelos flancos, tomou-me inteiramente de assalto. Veio com a força das potestades. Parecia querer arrancar-me do leme. Minhas mãos, após longas horas de aflição, pareciam não mais querer corresponder ao que eu lhes dizia. Temiam no pior frio que se possa enfrentar numa situação dessa. Arranhavam-se no frio do medo. O escuro jazia entre um raio e outro a rasgar noturnas Billie Holidays. A pequena embarcação era menor que meu corpo. Tudo que não era tempestade, tormenta, tinha uma dimensão não superlativa. A vela era tragada pelas vagas como se fosse um fino lenço de cambraia a querer enxugar as lágrimas de uma enchente do Amazonas.

O corpo, já disse, não cabia no cansaço extenuante das horas. Estava a ponto de largar o leme quando avistei, na ilusão da miragem que o coração tanto desejava, um farol. Aprumei o resto de força que tinha sobre os remos e, com uma estranha lufada, em poucos segundos já me encontrava num pequeno cais entre duas rochas pontiagudas. Certamente se tivesse me afastado meio metro, teria afundado. Mas o meu barco coube como se fosse feito como um terno sob medida.

Rapidamente pulei da pequena embarcação e subi por uma longa escada escavada nas pedras. Avancei esperançoso para aquele farol que jorrava 360 graus de luz no meio da escuridão.

Uma pesada porta vermelha estava apenas aferrolhada pelo lado de fora, felizmente. Assim que fechei a noite chuvosa do lado de fora, avistei uma tabuleta na parede em frente: Esperávamos por você.

Por detrás da previsível escada em caracol que me levaria ao topo do farol, havia uma portinhola verde com uma maçaneta de cobre amarelo, desgastado, como se muitas mãos, ao longo dos séculos, tivessem passado por ali. Se o farol já havia sido uma salvação, o que me reservaria por detrás daquela porta?

Abri com cuidado. De início fiquei totalmente cego, como se a cegueira fosse para apagar tudo o que até então eu havia visto na aprendizagem sobre o mundo. Aos poucos fui me acostumando àquele excesso de claridade. Havia muitas pessoas naquele lugar. Pude ver as paredes infinitas e tão altas como o pensamento. Todas recobertas por livros, ao infinito.

A primeira pessoa que vi foi Virginia Woolf. Ela veio me receber. Cabelos grisalhos em coque, vestido preto com um broche que reclamava seu lugar entre os seios, colar de pérolas certamente dado por Leonard, seu marido. Nos olhos, uma melancolia a prenunciar sempre o ato fatídico. "Bem vindo ao Farol. Sinta-se em casa, aliás, esta será sua nova casa." Virou-se como se eu sempre estivera ali. Entre muitas mesas repletas de livros fui encontrando todos os escritores que poderia pensar. Mais, muito mais do que poderia imaginar. Maria Kodama, a escrever para Borges, Dante Alighieri revisando a Divina Comédia, a pequena Orides Fontela com um diminuto lápis a escrever seus poemas, Platão, agitado, entrava e saia de sua caverna, Dostoiévski tentava organizar os irmãos Karamazóvski, Machado de Assis olhava o ciumento Bentinho atrás de sua Capitu, Guimarães Rosa aproximava no infinito Riobaldo e Diadorim, enfim, todos, absolutamente todos os escritores estavam lá numa Babel de línguas e histórias sem fim.

E, na medida em que iam terminando seus escritos, colocavam os livros num enorme tubo que os aspirava até o alto do farol. E dali voavam rápidos, na velocidade da luz, ou melhor, através dela, iluminando a escuridão do mundo.

18 comentários:

Marta disse...

Carlos,

É uma bênção ver pelos seus olhos!
Sentir, pelas suas palavras...

imenso.muito muito.

Celina Beatriz Villanova disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Celina Beatriz Villanova disse...

Se morrer é assim, é mais espetacular do que virar poeira de estrela, é virar letra e ser enfim uma história! Fantástico! Adorei.

Anne M. Moor disse...

Carlos Eduardo!

Brilhante! Duas coisas se destacaram para mim:

1. Esta frase fantástica: "A neblina sobre a retina não me permitia distinguir as fronteiras do coração. No entanto, aprumava o leme com a confiança de um dia claro, sol de meio dia. Enganava-me na inútil certeza dos arrogantes." e a continuidade do raciocínio... Será que algum dia aprendemos?

2. O papel da leitura em nossas vidas!

Quando eu crescer quero escrever assim :-))))

Beijão
Anne

Sonhos disse...

Lindoo!! Não importa onde estamos...E nem para onde vamos...O que importa é o que sentimos em qualquer lugar que chegamos!!! Sucesso!! bjusss

Unknown disse...

querido Cel,
viajei com você em meio a neblina.
Eu vi o farol e também Virginia e Borges e Dante e Capitu e Diadorim com seus olhos furta-cor e todos os outros.
Eu os encontrei. Em algum lugar. Em lugar nenhum.Na margem. Eles também me olharam e sorriram.
Eu também sorri.
M

Unknown disse...

Professor Carlos Eduardo, adorei a leitura... foi uma viagem inesquecível.
Obrigada, bjs!!!

Anônimo disse...

Oi Carlos Eduardo,

Este seu texto é auto explicativo: "...a leitura ilumina a escuridão do mundo...", sem dúvidas. Pois é ler(-lo = este seu texto) para crer...

Parabéns!, pela riqueza de imaginação tão instrutiva...

Beijos,

Teresa Cristina Martins disse...

Olá Carlos Eduardo, muito obrigada pela visita no Acolher com Amor...e vc acertou com suas palavras quando diz do "romântico", sou romântica mesmo no sentido mais literal da palavra. Gostei muito do seu blog e te sigo. Boa noite e boa semana. Bjus

Silvia King Jeck disse...

Que viagem para dentro de ti mesmo!
Tu tens o farol nas entranhas e es o mensageiro da palavra.
Tambem quero escrever assim quando crescer.
Bjo, Silvia

Virginia disse...

Edu, pra você, "A Sirene no Nevoeiro", do Ray Bradbury. Se ainda não leu, recomendo. Vocês dois - você e o Ray - bem que se encontram, de certa forma. Lindo demais isso aí. Beijo.

celeal disse...

Obrigado, Virginia. Tá anotado.
Bj

Berzé disse...

Mire, veja e sonhe e fique e vá cada vez mais escrevendo coisas bonitas

Berzé

Leitores do Mira disse...

Puxa, Eduardo, que lindeza de texto! Que agudez, que certeiro esse farol.
Posso usar esse texto com os alunos? Eles precisam dessa luz.
Bj
Adriana.

celeal disse...

Puxa, Adriana,
Quanta honra! Mas é claro q pode. E se os alunos quiserem a presença do autor...

Unknown disse...

CEL,
Muito intenso e muito delicado e gracioso ao mesmo tempo.
Me soa como o movimento do Girassol que se orienta para a luz do Sol...
mas transferido para o movimento humano de sede intelectual, de poesia, de luz, de significado, etc...
Lindo texto.
Bjs,
Mabel

Unknown disse...

Belíssimo texto, bem escrito, inspirado. Denso. Leve. Obrigada por colocar o link do meu blog no seu blog, vou fazer o mesmo! (E assim a gente vai navegando nas (boas) palavras uns dos outros, ligando elas...) abç, ana teresa

sonia disse...

Lindo texto. Parece material de um sonho!