quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Chagall e as Almas Mortas de Nikolai Gogol


Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. Clarice Lispector (das vantagens de ser bobo).

Uma parte deste texto foi originalmente publicado em outro blog.

Dois autores, em duas ocasiões diferentes na última Flip citaram Almas mortas de Gogol (Editora Perspectiva), ao se referirem ao homem e suas vicissitudes na vida cotidiana. Até então, pairava sobre mim um belo e triste ensaio sobre a 'natureza humana': É isto um homem? de Primo Levi (Rocco). Um relato contundente de quem esteve em Auschwitz e sobreviveu para relatar até aonde vai a maldade humana.
Mas Gogol em seu 'poema', é assim que ironicamente o autor dá subtítulo ao seu belo romance, conduziu-me através das ambições, mentiras, sofrimentos, enganos, gula desenfreada, compra de almas mortas (que ele habilmente convencia aos proprietários a não lhe cobrar nada, pois já estavam mortas) e toda a sorte de avatares que seu ' herói' Tchítchicov vai sofrendo ao longo da vida. Um livro que fala sobre o homem russo, suas devoções, suas camaradagens, suas bebedeiras, suas comilanças, mas mais do que isso, Gogol ri de tudo; 'da idiotice que caracteriza todo o universo das almas mortas e seus congêneres vivos, da engrenagem feudal que reduz o ser humano a meras peças sem vida, do espírito corrupto dos burocratas que só pensam em ganhar dinheiro ilícito para se tornar mais um senhor de terras e servos (na Rússia, os servos eram chamados de 'almas'), da posição ridícula dos críticos de sua obra que temem a crítica avassaladora que ela traz com a sua imensa gargalhada.' "...tendo pedido o mais leve dos jantares, constante um simples leitão, despiu-se sem perda de tempo e, enrodilhando-se debaixo do cobertor, adormeceu logo, num sono forte e profundo, um sono maravilhoso como só é dado dormir àqueles felizardos que não conhecem nem as hemorróidas, nem as pulgas, nem os dotes intelectuais excessivos." O nariz, o conto 'fantástico' de Gogol me acompanha há mais de vinte anos. Agora estas Almas mortas irão perambular em meus sonhos talvez por mais outros vinte e tantos anos.
O escárnio, o deboche e o riso delibaradamente provocados em seu texto me fizeram chorar, chorar de rir, emocionar, engasgar, querer compulsivamente reler trechos e, acho que agora, repensar ainda mais longe sobre mim, sobre as minhas sobras ainda incuráveis, enfim, isto que denominam a natureza humana.
Recentemente, fui ver a exposição de Chagall no MNBA e me surpreendi com a ilustração que ele fez para Almas Mortas. Nascido na antiga União Soviética assim como Gogol, Chagall recriou com perfeição, suavidade e extrema leveza o ambiente do cocheiro beberrão e preguiçoso que acompanha seu irresistível e ganancioso amo Tchitchicov.
Em O nó górdio, meu primeiro romance, já havia dedicado um capítulo inteiro a Chagall: 'Domingo com Marc Chagall', onde Alice Rygue, a protagonista da história e sua mãe, vão assistir uma exposição do mestre russo na Alemanha onde estavam morando.
Chagall sempre me impressionou pelo seu doce lirismo ao fazer 'voar' mulheres, casais, animais, vacas, como nos ensina Clarice, através dos céus. Esta leveza do ser vem marcando fortemente minha experiência de vida, pois dá a dimensão em cores sobre as possibilidades infinitas do homem. Em cada encontro com Chagall, sem lucidez alguma e no mais profundo silêncio de mim, faço adormecer um eu indiscernível para renascer um outro por refazer. Busco nele, desde então, minha fonte inesgotável de inspiração porque os pintores também escrevem outras palavras, indizíveis, com suas tintas.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Jayme Cavalcante PAISAGENS - VERNISSAGE

Jayme Cavalcante é um dos mais importantes marinistas da atualidade.
É citado em todos os volumes do Dicionário de artes Júlio Louzada,
inclusive em catálogos especiais publicados.
É citado no Benezir, um dos mais respeitados catálogos de artes do mundo.

Conheço Jayme há muitos anos. Tenho tido o prazer e a honra de ser seu amigo. Sua obra é vasta assim como sua coleção de arte particular e os amigos que o admiram e o rodeiam. Seu generoso ateliê reflete sua personalidade que está sempre de portas abertas ao público. Sua pintura possui luz própria porque ele vem da boa tradição da pintura ao ar livre que teve em Aluizio do Valle, um dos seus professores e mestres.

O pouco que aprendi de pintura sou grato e devo a ele. Repito, sua generosidade em me ensinar as nuances do claro/escuro bem como as combinações das cores e outras técnicas me deixaram uma marca indelével na alma. A marca da sua palheta, tão repleta de cores. Cores da sua vida.

JAYME FARÁ UMA EXPOSIÇÃO DIA 05 DE NOVEMBRO, A PARTIR DAS 18:00HS NO MUSEU DO INGÁ EM NITERÓI-RJ. Rua Presidente Pedreira, 78. (tel: 21-2717.2919)

Este é um pequeno currículo de sua vida e vasta obra:

Pintor, Jayme Cavalcante nasceu a 8 de julho de 1938,

em Salvador. Um dos fundadores do Núcleo de Arte

Fluminense-NAF, em 1969, teve sua formação artística

orientada para a pintura ao ar livre, com os professores

J. Carvalho, Jair Picado e Aluízio Valle. No início da

década de 1980, exerceu a função de consultor

especializado em sistemas de apoio operacional para

conservação e restauração, nas mostras História

da Pintura Brasileira no Século XIX e Seis Décadas

de Arte Moderna na

Coleção Roberto Marinho.

Sua obra está citada em várias publicações, entre as quais

La cote de peintres, de Akoun - Paris, 1994; Artes plásticas Brasil 92,

de Júlio Louzada - SP, 1992; Dicionário de pintores do Brasil,

de João Medeiros - RJ, 1988 e Dicionário brasileiro

de artistas plásticos, de Carlos Cavalcanti - Brasília, 1973.

Além disso, a pintura de Jayme Cavalcante integra as coleções

da Câmara Municipal de Sabrosa, Portugal;

da Prefeitura Municipal de Campos do Jordão, SP.


JAYME CAVALCANTE

Enseada da Boa Viagem - Niterói - RJ


terça-feira, 20 de outubro de 2009

INHOTIM: uma viagem ao canto chão da Terra



Sempre fiquei emocionado, com o canto chão dos monges. Um canto derivado do Canto Gregoriano e também chamado de Cantus Planus. O som da Terra ou o som do universo. Forte, denso, uníssono e, ao mesmo tempo, pacificador e angustiante. Mas, o que pacifica angustia? Depende, porém o canto chão me causa isso. Esta possibilidade de estar próximo ao infinito de mim mesmo me põe diante dos meus abismos tal como os antigos pensavam sobra a Terra como sendo um disco. Após suas bordas o nada, ou pior, o vazio absoluto.
A Terra não é vazia. Ela é vazia de preenchimentos e o que temos que fazer é cultivá-la. Para isso muitas vezes temos que deixá-la em paz. Ela que sempre se virou por si só, encontrou na interferência humana seu pior algoz. O animal humano está devorando a terra que o devorará mais cedo ou mais tarde, inexoravelmente a sete palmos abaixo da superfície. Parece que ele ignora este fato de como a terra estará ardentemente seca, sem nenhum humus, sem nenhuma fertilização para, quem sabe, fazê-lo retornar melhor talvez como planta, flor ou sombra para os cansados na viagem da vida.
Mas neste fim de semana a Terra se abriu generosa para mim. Sorriso largo, mãe gentil. Terradorada, Patriamada. Fui visitar Inhotim a 60 kms de Belo Horizonte. Aqui estão algumas fotos do maior museu de Arte Contemporânea da America Latina. Algumas exposições estão em diversas galerias e outras a céu aberto. Restaurantes, comidinhas, realmente um lugar encantadoramente charmoso com jardins de Burle Marx.


Mas não só. Se não bastasse isso tudo, recentemente foi inaugurado "o som da Terra". Projetado por Doug Aitken. Trata-se de uma redoma de vidro de uns 60 metros de diâmetro, no alto de uma colina (é preciso pegar um micro ônibus para te levar até lá) e no seu centro há um buraco de mais de 200mts de profundidade por 20cm de diâmetro. Ali foram colocados inúmeros microfones que captam lá embaixo "o som da Terra" que são transmitidas para caixas de som que não aparecem. O som nunca se repete e o que se ouve é assustador e emocionante ao ponto de te deixar tonto, desnorteado. Digo que há muito tempo não sentia uma emoção tão forte assim. Talvez a última grande emoção sentida tenha sido no dia em que constatei pela primeira vez que eu não era o único ser vivo da Terra. Esta ideia de pertencimento e completude nasce quando a gente está mais distraído na alma. Você se sente extirpado da solidão e jogado num vozerio que te aquece de palavras e te faz recordar sensações que você nem sabia que existiam. Mas estavam lá. Todas, ou quase. Ao menos foi isso, se posso assim me expressar, que senti diante deste indizível chão que se abriu em mim. E esta abertura foi a descoberta de possibilidades. Possibilidade de dizer o que ninguém diz e estar feliz por isso. Feliz porque o dizer também é dor, dor de existir, mas justamente por isso, uma alegria feita de arredores, horizontes incalculáveis, intermináveis palavras. Palavras acústicas desplugadas de meio-dias e arredondadas por madrugadas. Dizer silêncios porque ali quem fala é um monge selvagem que também me habita. Feliz por escutar a mãe Terra e sentir parir outros mundos até então desabitados pelos meus olhos. Feliz por desenterrar o amor das profundezas da grama. Feliz por me desconhecer tanto e, portanto, saber surpreso que ainda há muitas outras partes de mim a serem encontradas e recontadas. Algumas no prelo, como se diz.
O que nasce daquele cantochão são uivos, sibilos, palavras atávicas, todas elas em louca genealogia, melodias estendidas preguiçosamente pelos galhos das árvores e partituras de vozes: a minha, a sua. Nossavoz. Em comunhão.
Amém.


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O nascimento de Livia

Livia nasceu da terra. Germinou ao lado de uma grande, vetusta e colonial mangueira. Ainda menina girava ao redor das folhas ao vento. Dizia ser filha deste, já que sua polinização vinha de terras longínquas. Nasceu entre gramíneas e avencas esquecidas entre os musgos ao sopé da velha árvore. Nutria-se das coisas esquecidas e dos botões ainda por fazer nascer os lírios.
Livia colecionava amizades. Adorava o sussurro do vento entoando uivos e sibilos entre os galhos quando ganhava mais força no capoeiral. Conversava com a brisa e sorria feliz para as joaninhas. Bolinha e Brotoeja eram suas favoritas. Era exímia imitadora de suas pequeninas amigas. Batia com extrema força seus pequenos braços como se fossem asas ao ponto de Brotoeja inúmeras vezes confundí-la com sua irmã mais velha. Livia subia no primeiro e mais troncudo galho da mangueira. Abria os braços em arco e conseguia ficar alguns eternos segundos no ar. Batia os braços mais rápido do que alguém que revela um segredo inconfessável. Das formigas, afetada pelo doloroso passado recente, mantinha uma distância respeitável como quem se ajoelha diante dos reis. Certa vez pousou por ali um pintassilgo em extinção. E segredou também para Livia sua rara aparição. Foi a primeira vez que Livia teve uma sensação que até então ela ainda não havia experimentado: o medo. A segunda vez em que ela teve medo... bem, daqui a pouco eu conto.
Livia se banhava de primaveras e enxugava-se em palavras que ela mesma ia inventando. Para um mundo até então sem frases, até que ela não se saía mal. Dobrava palavras complexas e rasgava outras ainda estranhas ao seu pequeno entendimento sobre as coisas terrenas.
Livia era gentil como a cantata n.140 de Bach (wachet auf = despertai). E era exatamente isso que ela dizia (claro que em bom e sonoro Livianês) para seus amigos no início de cada dia: despertai! E, assim, as gramíneas dormideiras acordavam, as formigas desentocavam, os coelhos espreguiçavam esfregando suas enormes orelhas umas nas outras, os gafanhotos davam enormes pulos de alegria e o horizonte abria-se em novas e fervilhantes cores. O aroma do campo entrava suave pelos poros da menina e perfumava seu dia. As folhas mais baixas da mangueira traziam novas palavras escritas entre uma nervura e outra. Livia ficava na ponta dos pés e lia aquela gramática particular. Livia ficava na ponta dos pés e parecia levitar a cada nova palavra descoberta.
Mas numa certa manhã Livia acordou diferente. Chovia intransitivo. Estava ensopada, mas não só. Já havia enfrentado outros temporais e sua mãegueira sempre fora acolhedora. Algo mudara nela, mas ela não entendia ainda muito bem o que havia mudado. Parecia que chovia por dentro e, naquele dia, não houve a leveza da cantata de Bach. Ela nitidamente percebera a transformação em seu delicado corpo. Só não queria falar. Talvez por vergonha. Ou, então, talvez por não saber o que falar e nem com quem. Era íntimo, ela sabia. Mas ainda sabia pouco. Curiosa como era, quis saber mais. E aguardou ansiosamente a chuva passar. Enquanto ainda caíam algumas gotas e outras tantas folhas, percebeu que seus seios haviam crescido e que seus quadris generosamente haviam alargado. O céu abriu em azuis com nuvens ligeiras. O tempo é que passara igualmente ligeiro. E Livia, pela primeira vez teve vontade de subir no outono da mangueira para ler todas as palavras que ainda restavam escritas em suas folhas. E a cada galho um novo frisson percorria-lhe a espinha e se deleitava com as palavras ainda carregadas da efervescência adolescente.
Restava ainda uma última folha. Estava lá no alto. No mais alto daquela árvore entre os galhos mais finos que a perna do seu amigo gafanhoto. Mas Livia só havia tido medo uma única vez e não seria agora, pensou, que pararia de subir para querer saber mais e mais. E ela foi. Rastejando-se como um camaleão (esta face camaleônica ele iria desenvolver anos mais tarde), Livia foi subindo, subindo, subindo entre os galhos até que seu braço, agora já não tão pequeno, alcançou a última folha.
Então, com os olhos transbordantes, ela leu o que estava escrito: André.
E esta foi a segunda vez em que Livia teve medo.

sábado, 10 de outubro de 2009

Carta para Livia - um mês depois...

Querida Livia,
Queria te pedir para voltar, mas não tenho mais o teu endereço. Então, não tenho o destinatário. Mas ainda tenho força nas palavras e sempre terei por você, pois meu coração é um vulcão sem permissões nem volteios. Meu coração segue trilhas, veredas que é como se diz por aqui. Daquelas que Riobaldo seguia bravamente sua Diadorim. Não, não quero te ver morta ao fim da batalha. Nada de heroísmos. Só as palavras podem aqui agregar heroísmos, pois se uma morre, outra fênix vem logo em seu socorro. A morte da palavra acontece quando as pegadas não são mais visíveis na areia dos olhos. Então a palavra ensurdece num labirinto de desencontros.
Toda palavra quer partida. Toda palavra quer estar sempre se desamarrando de seu porto, ganhando oceanos mesmo que sejam bravios, mas algumas insistem em seu retorno. Toda palavra possui um deus. Um deus que a protege das demais palavras. Toda palavra é indestrutível, pois uma vez lançada ela cumprirá seu destino. Toda palavra quer copular com outra porque sozinha ela talvez não passe apenas de uma interjeição, um grito sem sujeito. Toda palavra é sagrada, mesmo aquelas que trazem vergonha e escárnio. Há um manto simbólico que as recobre com suas paternidades. Toda palavra tem sua manjedoura e uma estrela que brilha no alto do horizonte. Toda palavra quer ser feliz, mesmo em sua mais recôndita melancolia. Assim é que Clarice chama alegria-triste ao amor. Pois é, Livia, você é minha Clarice e sempre será. Um mistério a ser decifrado, uma palavra feminina por dizer: um quase-isso, quase-todo, quase-tudo. Um roçar nas franjas da felicidade, uma tangência de possibilidades infinitas. Foi isso que você despertou em mim. Toda palavra possui sua roupa de sair, seu traje de sexta à noie e seus trapos de ficar em casa. Toda palavra vomita seus excessos. Toda palavra possui uma sonoridade e uma cor. Algumas possuem um arco-íris ao seu final. Talvez teu nome seja uma destas palavras. Talvez a palavra que você me sussurrava na cama em nossas noites de paixão possuam todas as cores, todos os sons e todos os silêncios. Sim, porque teus silêncios estavam sempre rodeados de palavras. Estas indizíveis eram as mais belas, sedutoras, as mais contundentes, pois você as dizia com seu olhar dentrodomeuolhar ou, então, com o suor que transbordava do teu corpo extasiado de prazer para o meu.
Meu pensamento é feito de lembranças embebidas em vinho decantado e minhas alegrias são esperanças de um tempo entre estrelas. Você sempre foi uma estrela, agora cadente, mas ainda e sempre candente. Uma chuva de estrelas, uma chuva de palavras infindas.
Esta carta, a princípio, não teria fim, pois as palavras, todas elas dirigidas a você, não caberiam em nenhum Amazonas, mas só em certas sazonalidades consigo os meus transbordamentos. Às vezes também sou peixe, ou árvore ribeirinha, ou galho boiando ao sabor da correnteza. Tenho incertezas cultivadas nas minhas meias verdades. Outras eu crio. E mergulho ficcional com escamas.
Assim, se você ainda quiser me encontrar, te deixo uma pista:

"Nasço amanhã /
Ando onde há espaço:
-Meu tempo é quando."

Bjs,
André

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Amores efêmeros

Livia acordou mais cedo do que de costume. Talvez porque aquele dia seria um dia especial na sua vida. Ela apenas ainda não sabia disso. Estava fazendo dezessete anos e poderia ter sido apenas mais um aniversário. No colégio todos seus amigos esperavam ansiosos pela sua chegada. A pele alva revelava as sardas que formavam um belo contraste com seus negros cabelos. Seu presente de aniversário? Era dia de prova de história. Alguns apressados diriam que seria um anti-presente, afinal ninguém quer fazer prova no dia do seu aniversário. Mas, Livia queria e queria muito. Porém, só ela sabia a razão. Estava apaixonadissima pelo seu professor. Mas por nada deste mundo confessaria para ele. Livia era tímida, Livia era sua aluna e ele deveria ter no mínimo o dobro de idade dela. Fantasia de adolescente? Não, ela levava a sério aquela paixão. O que no início não passou de uma brincadeira da amiga Lucília - "te peguei olhando para o André" - foi secretamente se intensificando ardorosamente dentro do coração de Livia. Antes das aulas seu coração tremia, suava frio, mas dava um jeito melhor no cabelo, pintava um pouco mais os olhos, acentuava um brilho ao batom e cruzava a perna sob a saia plissada do uniforme diante de um professor que até então mostrava-se impassível diante de sua aluna.
A prova chegou e André, o professor de história, ficou sabendo da coincidência das datas. Livia estava linda nos seus dezessete anos. Corpo feito, olhos intensos, lânguidos e mãos ainda virgens para o amor. Sim, porque é preciso que as mãos se desunam umas das outras e abracem um corpo para se encontrarem em outros lugares, até então, impensáveis.
Livia entregou a prova e André lhe entregou um pequeno pedaço de papel. Tudo feito com muita sutileza que nem uma câmera de vigilância notaria. Ajeitou a blusa e enfiou o papel dentro do sutiã. Correu para o banheiro e leu: "Preciso muito conversar com você. Me ligue depois das 14:00hs, André". Deixou o número do celular, mas ela já sabia, aliás, apaixonada que era, sabia tudo sobre ele. Ele é que sabia tão pouco sobre ela...
14:00hs
- André?
- Livia?
- Claro, você não pediu pra te ligar?
- Preciso te ver, urgente.
- Eu também quero muito... e sua voz estancou embargada. Não parecia acreditar que aquilo estava acontecendo. Depois de tanto tempo esperando, desejando, sonhando com aquele momento, ele iria, enfim, se concretizar.
Ele a levou para sua casa de campo. Ele a levou também para viver a realidade do amor sonhado: por ele/por ela, em seus segredos. Ela se abriu em primaveras, ele em taças de vinho sobre seus outubros. Ela havia trazido o violão. Fez uma música para ele. Ele escreveu a letra e juntos cantaram todas as canções na invenção daquele novo amor.
Quando é que se dá conta do infinito do amor? Quando as sazonalidades já não mais existem ou quando faz muito frio e você se dá conta que ainda é verão.
Depois de dois anos morando juntos, André acordou sozinho e sozinho ficou na sua solidão sem conseguir lembrar de nenhuma música cantada por eles. Livia havia se apaixonado por um antigo colega da sua turma. Ela era dada a rompantes apaixonados: "sempre te avisei que eu era assim, portanto, não faça cara de surpresa nem de desespero e não me procure mais. Quando acabo é definitivo. Não há voltas. Fui." Estas foram as únicas palavras escritas num papel deixado sobre o teclado do seu computador. Não havia destinatário, não havia remetente.
André, agora sozinho, tomou outro gole de café e, em sua saudade triste, em seu choro incontido, ficou pensando sem entender como dois nomes podem apagar-se do mundo assim de forma tão abrupta...
Então, pegou um cd do Chico e ouviu "Mar e Lua":

Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade distante do mar
Amaram o amor serenado das noturnas praias
Levantavam as saias e se enluaravam de felicidade
Naquela cidade que não tem luar
Amavam o amor proibido, pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta grávida de lua
E outra andava nua ávida de mar...