sábado, 15 de agosto de 2009

Entre alfaces, rúculas e sorrisos


As coincidências existem para que a emoção da surpresa não perca em nós o calor disto que chamam vida. Da vida pouco sabemos. É preciso caminhar sobre a cena da vida. Só podemos saber um pouco sobre ela quando, tal como no filme de Almodóvar, nós nos arriscamos a "falar com ela". Portanto, fale com ela, fale com a sua vida. Mas, vocês me perguntariam: falar o quê? Às vezes algumas pessoas querem grandes sistemas filosóficos para debater com a vida. Outras, as mais devotas, querem que tudo caiba dentro da religião oficial de seu time no céu de sua vida. Ah, e existem também os céticos com suas dúvidas obsessivas quase infinitesimais; os astrólogos que fazem previsões no tabuleiro estelar de xadrez que Copérnico radicalizou com o heliocentrismo e, last but not least, existem os cristãos novos, estes que acreditam piamente em São Google e sua Wikipédia que parece responder mais rápido do que qualquer deus de plantão aqui na Terra. Estes, coitados (por vezes, ah, tenham dó de mim, eu também sou um destes, afinal, quem escapa?) quase não falam, apenas teclam solitários diante das telas desta cartografia celestemente diabólica.
Neste sábado, fui convidado para almoçar com uns amigos queridos que estavam numa pousada charmosíssima, simples, num lugar quase paradisíaco chamado Canoas (entre Albuquerque e Teresópolis), entre montanhas, pássaros e um riacho que para minha felicidade não se acalmava. Os quartos tinham nomes literários. Minha amiga me disse que quando a dona da pousada começou a falar os chalés disponíveis ela disse logo na primeira: "Pára! É esta." E ficaram na 'Clarice Lispector'. Ela me disse que sabia que eu também escolheria esta e não a Vinícius de Moraes ou a Machado de Assis, etc. Vinho da uva tannat, truta ao molho de ervas finas, doce caseiro, café expresso, céu azul entre verdes das montanhas que já se manchavam de ocre com os raios de sol enviesados, enfim, um fim de tarde para não acabar nunca. Nunca mais.
Na volta, na pequena estrada de mais de 8 kms (parte de terra, asfalto e paralelepípedos) que separa a pousada da estrada, parei logo no início numa bela plantação de hortaliças.
- "O senhor vende aqui mesmo?" Perguntei para um homem que carregava uma pequena caminhonete.
- "Eu não, mas o Seu Ita vai vender para o senhor agorinha." Me disse o simpático sujeito.
E lá veio o Seu Ita. Passinho miúdo, chapéu de palha esgarçada na cabeça. O vento soprava fino naquele fim de tarde. O céu azul esfriava ainda mais os tons variados de verde que se espraiava plano entre montanhas. Veio sério. Quase cabisbaixo. Quando chegou na porteira olhou mais sério ainda para mim e perguntou:
- "Boa tarde. O senhor quer alguma coisa?"
- "Boa tarde. Um pouco do que o senhor tiver, Seu Ita."
- "O senhor sabe o meu nome?" E ele abriu um sorriso do tamanho da aquarela desdentada do Brasil.
- "Tenho alface crespa, rúcula, agrião, brócolis paulista..." Deu uma pausa e emendou. "O senhor sabe que Deus respira através desta prantação? Isso tudo qui seus zóio vê é testemunho de Deus."
Disse isso, me deu as costas, e foi-se pela plantação afora. Depois de uns dez minutos ele retornou com um ajudante. Em suas mãos, tudo era o que não cabia.
- "Olha, o senhor vai comer a melhor alface que o senhor já comeu em sua vida." Trazia em suas mãos rudes, alguns pés enormes, verdinhas, ainda molhadas, quase virgens. Era um santuário, e ele me trazia hóstias para que eu me purificasse diante delas. Ele sabia que estava me vendendo parte de seu tesouro. Abri o porta malas e as hortaliças foram entrando. Percebi que "um pouquinho de tudo" que eu dissera antes, era muita coisa e o porta malas lotou.
- "Quanto é, Seu Ita?"
- "Oito reais. Mas estas duas rúculas são de benefício para o senhor. Prô senhor voltá di novo. Lá na cidade o senhor só encontra destas murchas. Olha como estão verdinhas." Dizia enquanto ele mesmo colocava as rúculas no meio daquela horta que se tornou o meu carro.
Quase não acreditei no preço. Dei dez reais e disse que ficasse com o troco.
- "Esta horta é a minha vida." Disse Seu Ita sorrindo e agradecendo o pagamento. Dizia isso para mim e, ao mesmo tempo, percebia-se, para a própria horta, pois era para lá que ele agora dirigia seu olhar e seu sorriso.
Fui embora pensando na sua simplicidade, na alegria em servir, na alegria em perceber que trazia o melhor da sua horta para um sujeito da cidade totalmente estranho a ele. Talvez ele tivesse percebido a minha felicidade em estar ali. Uma felicidade enorme num tempo ínfimo. O dia já beijava a noite e eu precisava retornar. E tudo aquilo era o seu mundo, sua comunhão, sua vida com a qual dialogava coisas simples, mas essenciais à 'pedra' que havia em seu nome. Pedra que não servia para colocá-la em seus sapatos ou atirá-la nos outros. Tudo menos uma Intifada.
Sem contemporâneas teorias estapafúrdias, aliás, sem filosofia teológica alguma Seu Ita conversava no cotidiano com sua lavoura arcaica.
Apenas, como no filme "O sol por testemunha", esperando que os céus, ora trouxessem chuvas, nuvens, alguma brisa suave, um pouco de sol e mais chuvas e mais nuvens, alguns sorrisos, e outra vez um pouco mais de sol no transcorrer de seus dias.
Carlos Eduardo
Ps: Em geral, é muito difícil perceber a idade do homem do campo sempre castigado na pele por ficar ao relento do seu céu, aberto às intempéries. Mas, me atrevo a dizer que já iam longes os seus dias. Que os céus o protejam.

20 comentários:

MaRi_aNa disse...

que maravilha! lindo texto! da vontade de sair correndo agora e ir buscar um lugar como esse...se pudesse escolher hj, escolheria o chalé vinicius de moraes - mil motivos justificariam a escolha - :) Que os céus te protejam tambem. bjs mari

Raquel Abrantes disse...

Nossa, Carlos! Me deu vontade de estar lá!

Beijo grande,
Raquel.

Anne M. Moor disse...

Viver a vida com prazer sem fazer muitas perguntas. Parece tão simples... Esse senhor, de uma sabedoria ímpar!

Bela história. Esse prazer pela vida é algo que tenho e não me atrevo a perguntar o por quê :-)

Beijos

Tatiana Monteiro disse...

Sem dúvida nenhuma, esse é um dos textos mais lindos que já li aqui. Fiz uma viagem maravilhosa com cada detalhe. Na próxima vez que eu for à Teresópolis, vou fazer questão de ir conhecer Seu Ita e contar-lhe o quanto ele ficou famoso na cidade grande. Obrigada por iluminar meu domingo. Beijos, Tatiana

Unknown disse...

Querido Cel,
gostei muito da simpatia do Seu Ita e me diverti com o São Google e suas wikipiedades (pensei!), rs...
beijos
M

Cláudia Pereira disse...

Sabe, falar com a vida toma muito tempo,rs...e a gente acaba ficando sistemáico demaisPrefiro vivê-la...sentindo-a...Adorei o texto e a escolha do nome do quarto(Lispector)..Boa escolha!
bom domingo! beijos

Unknown disse...

Ita ferro!!!! Eta trem doido, sõ,doido de tudo..... Fui lá, Duda,no seu Nonô, na vó Tavinha, na dona Escorcina, no seu Pedro, na tia Mariquinha, nas mexericas e no açude...Brigada pela viagem no tempo, danando as saudades escorrendo pela alma...Beijo, irmão querido

VIRGINIA L. DE PAIVA MELLO disse...

lindo texto!
adorei a simplicidade, estar perto da natureza e das pessoas simples, humildes e sinceras nos mostra o quanto a vida é simples, o quanto é possível ser saudável. nós é que complicamos deturpando as imagens com nossas visões tão impregnadas e impuras no dia-a-dia e fantasiamos como faz-de-contas o que sentimos camuflando nossas emoções, nossos sentimentos, nossos desejos e sensações. viver e conviver seria muito mais fácil, se não precisássemos de armaduras, de uma roupagem ou fantasia, se pudéssemos ser quem verdadeiramente somos. deixar de fingir e ser, simplesmente, ser!
já vivi a experiência de estar num lugar como esse, com pessoas como seu Ita, e posso afirmar, é bom d+, é fácil, gostoso, natural,... é simples viver!!

Anônimo disse...

Lindo texto. Seu Ita é um fofo!
Abraço.
Adriana.

libros amigos y encuentros disse...

es bueno vernos servidos por la simplicidad y humildad de otros màs es mejor encontrar la nuestra y ponerla al servicio de los demàs

celeal disse...

Gracias Vlad,
Por tu palabras elegantes y sensibles desde México.
Gracias también por tu visita acá en mi blog,
Es siempre bienvenido "el amigo del libros y encuentros,
Abrazos,
Carlos Eduardo

celeal disse...

Adriana,
Ele existe de verdade e é muito fofo como uma alface verdinha!
bjs
Edurado

celeal disse...

Virginia,
A vida pode ser simples como a natureza o é, mas a neurose 'atrapáia' ai, ai, ai rs
Bjs
Carlos Eduardo

celeal disse...

Queridíssima irmãzinha do meu coração,
Nossos antepassados avoengos e roceiros estavam todos lá,
Bjus no profundo da al-face humana,
Edu

celeal disse...

Kakau,
Obrigado pelas suas palavras e pelo mesmo gosto Clariceano. É, da vida precisamos pô-la a trabalho, dar trabalho a ela e adubar nossas lavouras. Um bj e volte sempre,
C. Eduardo

celeal disse...

Michelle,
Parece que o Google é onipontente, onisciente e onipresente mesmo hahaha
bjus
C. Eduardo

celeal disse...

Tatiana,
O Seu Ita iria adorar te conhecer. Vá lá sim e retorne à sua infância,
Bjs
C. Eduardo

celeal disse...

Anne,
Você também cultiva este prazer na horta das suas poesias.
Bjs
C. Eduardo

celeal disse...

Mariana,
O importante é que a nossa emoção sobreviva, quer seja com Vinícius ou Clarice.
Bjs e um céu cheio de hortaliças para vc tb
C. Eduardo

Silvia King Jeck disse...

Que os Googles e Wikipedias, já quase indispensáveis em nosso dia a dia, não tomem jamias o lugar do prazer de viver, de ter olhos para ver beija-flores e borboletas.
Bjo, Silvia