terça-feira, 27 de agosto de 2019

A Paixão pelo Amor: a insustentável torpeza do desejo


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A Paixão pelo Amor: a insustentável torpeza do desejo
Carlos Eduardo leal

Onde a mulher é secreta,
O homem é inútil.
Paul Éluard (Últimos Poemas de Amor)

Amor é a gente querendo achar o que é da gente
Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)

O tema desta VI Jornada Clínica é Do Sexo à Sexualidade: o Enigma da Felicidade.
Então temos de início uma posição quase que insolúvel. De um lado a sexualidade e, de outro, a felicidade. Dito de outra maneira, ou revendo Freud, temos de um lado as pulsões e de outro uma tensão em saber sobre a possibilidade de se transformar a satisfação buscada pela pulsão em felicidade. E aqui temos um primeiro enigma: é possível que a satisfação se transforme em felicidade? Mas, o que é a felicidade? Ausência do Mal-Estar, como Freud coloca em seu texto de 1930? Então, estamos longe dela. Freud constrói sua teoria mais pensando em oposições dualistas do que acréscimos explicativos. É uma teoria que fala, por exemplo, da libido como correlata aos investimentos econômicos, às perdas e aos ganhos. O amor está na tessitura da libido, que um dia Lacan chamou de lamele, uma lamínula que recobre o corpo pulsional. O amor está nos equívocos do significante que joga e se antecipa ao próprio vir-a-ser do sujeito. O amor está nos desvãos, nos apuros da palavra, nas dores das expressões menos dizíveis, nos intervalos dos corpos debaixo de orvalhos. O amor está onde o sujeito deriva como uma nau que atravessa uma biblioteca infestada de desejos em suas páginas. A paixão pelo amor está mais no silêncio da palavra indizível, no real da coisa, do que na tonteria da língua afiada.
Diria de início que na psicanálise, na função de se analisar uma vida, surge um enigma que não se responde com uma palavra, como Édipo respondeu para a Esfinge que é o homem o enigma dos enigmas. Se estamos todos atravessados pela cena edípica – é assim que nos constituímos – não é claro que esta dimensão freudiana se nos apresente de maneira clara.  O sujeito neurótico dirá que “não quero ter uma relação sexual com minha mãe nem matar o meu pai”. E é óbvio que se ele fizesse isso estaria longe de alcançar a felicidade. Se estamos condenados a repetir o mito de Sófocles, isso precisa ficar no campo simbólico, porque passar à ação resulta em tragédia. Bem sabemos. Diante da lei nos constituímos e sobre ela nos debruçamos. Ir além do pai, sem prescindir dele, nos orienta Lacan.
A maneira como cada um se debruça nos braços da lei, a maneira como cada um se sente outorgado pelas incidências da lei, dá a ver, em sua peculiar intimidade, a sua relação com o desejo. Não é fácil este encontro do sujeito com seu desejo. Aliás, o mal-estar se dá exatamente diante da possibilidade deste encontro. No momento do Complexo de Édipo. Daí por diante, o sujeito só faz tentar se satisfazer, mantendo a sua insatisfação, no caso das histéricas, ou demonstrando a sua impotência no caso da neurose obsessiva.
Por outro lado, é exatamente deste encontro com o real da cena edípica que advém nosso mal-estar. O desejo está apontado para a mulher que pertence a outro homem. Não é isso? Todos os casos de traição não possuem esta mesmíssima vertente? Um empuxo a transgredir e fazer valer o gozo da mãe em detrimento da lei do pai.  Fazer valer o gozo do grande Outro e transgredir ao pai. São as pequenas transgressões em face de um sentimento de culpa, como nos diz Freud em seu texto.
Esta cena é o endereço certo para o que Freud denominou como Mal-Estar. O mal-estar então poderia ser definido como algo inexorável, como algo do qual não se escapa. E a característica daquilo que é inexorável é que não cede ou se abala diante de súplicas e rogos, que também é inflexível, implacável e cujo rigor, severidade, não pode ser amenizado. De quem então estamos falando? Do supereu. Essa instância cruel, obscena e feroz. O gozo do supereu não se dobra à nenhuma lei. Seu imperativo vai contra a felicidade. Se neste ponto de injunção do supereu há satisfação, certamente esta se dá através do desprazer, ou no mais-além do princípio de prazer, como nos orienta Freud a partir de 1920.  
Então, talvez pudéssemos formular assim um primeiro axioma: tudo aquilo que vai na contramão da felicidade chama-se supereu.
E, talvez, um segundo decorrente deste: tudo aquilo que se afasta do medo e da angústia aproxima-se da coragem, da dor de existir e da felicidade.
E, ainda, mais-ainda, um terceiro axioma: o gozo é o outro nome para o supereu.
Estamos dizendo que a felicidade é próxima da dor de existir? E o que dá consistência ao sujeito se não sua condição fenomenológica e imaginária? O que dá consistência de vida se não àquilo que recebe do O/outro enquanto garantia de reconhecimento? Isso que é tão frágil e que surge nos desfiladeiros do significante. A palavra do Outro a nos interrogar: Che Vuoi? O que o Outro quer do meu eu?
No jogo do desejo somos sempre perdedores diante da angústia de castração. Diante da angústia e do mal-estar do desejo, você perdeu seu troféu então volte duas casas: O Narcisismo.
Não querendo acreditar que não se pode obter tudo, a criança insiste em sua ilusão narcísica de completude. Ela quer continuar sendo o falo de sua mãe e para fazer valer sua empreitada, inicia a maior bizarrice no seu brilho e esplendor dos dois anos, entre choros imotivados e birras com direito a chantagens. Há aí uma tensão entre o eu e o mundo externo, ou nas palavras de Lacan, entre o sujeito e o gozo do Outro, da mãe, porque não dizer logo o seu nome, que torna este clima quase que insustentável para quem está de fora da cena fantasística. É deste jogo presencial e à distância que se desenvolve a partida e a chegada do carretel: O primeiro jogo on line foi inventado por Freud: Fort Da! Presença e ausência. Presente querendo que se vá e ausência querendo que se aproxime. Onda de fora/dentro no qual a perda é o termômetro e a carta marcada do baralho. Falta, perda, hiância, afastamento ou dê outro nome qualquer advindo daí: saudade, tristeza, cólera, raiva, indignação, ciúmes, ódios, invejas, amor, desejo e gozo, tudo está aí neste caldo, nesta sopa gozoza. Sem ausência não há desejo possível. É por aí que digo que o desejo é uma torpeza do sujeito. Está onde não se o quer e se quer onde ele não está.
Presença e ausência de um único ser. Único, fundamental e insubstituível. Assim é este Outro para a criança especular. Ela especula. Sim, ela especula que é tudo para o Outro e se decepciona. É melhor assim, quando se percebe não-toda para o Outro. Cabem aqui os três nomes, uma espécie de triunvirato psíquico que Lacan dá à esta dimensão: privação, frustração e castração.
Como diz Clarice, o amor é o susto da criança. É a partir do  narcisismo, da relação do sujeito com o outro - nem Freud, nem Lacan abandonam esta ideia -, que nasce o amor.
Será que foi Platão que inventou o amor? Sócrates através de Platão?
Em Platão, é urgente que se releia O Banquete, há uma série de personagens que vão fazer um elogio ao deus amor. Estão na casa de Mênon, uma boa casa, com comidas e, em especial, muita, muita bebida. Estão todos felizes através do álcool. Platão não descreve a hora do dia, mas pela sequência dos acontecimentos, poderíamos afirmar que era uma noitada. Todos juraram fazer um elogio ao deus amor. Contar seus feitos, suas formas extraordinárias, sua beleza, seu esplendor, sua saúde, enfim, loas ao amor. É claro, mentiras sinceras, fanfarronadas, e parlapatices. Mas vem Erixímaco e começa a desconstruir o que até então estava belo e alegre. Feliz com um certo estupor alcoólico. Ele diz que no início existiam os Andróginos. Vejam, estamos em 450 a.C. e percebam a atualidade deste discurso. Quer dizer, hoje, com a enxurrada de gêneros, nem tanto, mas chegamos lá. E os Andróginos eram seres que tinham os membros em dobro. Assim, existiam os andróginos mulher-mulher, existiam os andróginos homem-homem e existiam os homem-mulher. E andavam felizes e satisfeitos, sim nesta época, antes do avento da culpa cristã, havia esta chance mitológica de serem felizes. Eram tão eufóricos que numa certa Olimpíada eles resolveram desafiar aquele que jamais havia sido desafiado: Zeus. E o senhor do Olimpo, por raiva da petulância dos andróginos, mandou cortá-los ao meio. Daí surge o amor. Cada um procurando a metade perdida. O efeito de corte/castração já está aí? Ainda não. Será preciso o próximo a falar que é justamente Sócrates. Sócrates que foi um grande leitor de Freud e de Lacan. Ou teria sido o contrário? Mas, Sócrates diz: “Dissemos fazer um elogio ao deus amor. A minha língua jurou, mas o meu peito não. Então direi a verdade sobre o amor. Disso sei um pouco como me foi dito por uma mulher: Diotima.” Então, Sócrates dirá que não houve nem um momento sequer em que o ser humano tenha sido Um. Desde sempre foi um sujeito dividido. Obviamente Sócrates não falou em sujeito dividido, mas já que ele não está aqui agora, a gente pode botar uma ou duas palavrinhas em sua boca. Fazer, por assim dizer, um retorno a Sócrates. Não é isso que Lacan nos ensina em relação a Freud? Um retorno? Pois bem, estava tudo neste pé quando entra o belo Alcebíades e propõe trocar o agalma socrático, a flauta mágica que ele julgava que havia em Sócrates – aí está o primeiro Sujeito suposto Saber -, pela sua beleza. Trocar o ser pelo ter. Sócrates, percebe o pulo do gato, e foge da ratoeira.
Lacan, na página 63 de seu Seminário 18, “De um discurso que não fosse semblante” nos diz que “o falo é o órgão como aquele que é – trata-se do ser -, como aquele que é o gozo feminino. Aí está a incompatibilidade entre o ser e o ter.”
Eu percebi que vocês entenderam muito pouco, pois eu dei um pulo de dois mil e quinhentos anos de filosofia e teoria psicanalítica. Mas foi assim que aconteceu.
Há uma incompatibilidade entre o ser e o ter. Podemos então retornar ao mito do Narciso em Ovídio, 19 a.C. a 46 d.C. Ovídio diz sobre Narciso que tudo aquilo que ilude aos olhos lhe excita o desejo. Capturado na própria imagem, não sabe que é um reflexo aquilo que vê. Quando tenta se abraçar, a imagem tremula e vê seu reflexo desaparecer. Enquanto Eco, atrás da pedra, está condenada a repetir as últimas palavras de seu amante. “Vem, fica comigo”, ao que ela de maneira tristemente amorosa repete: “fica comigo”. Um eco que não se escuta a própria voz. Um eco condenado a não ser protagonista se não de si mesmo. Um solilóquio. Um oco de pedra. A pedra. Dura e inevitável crueza da própria voz que não se escuta. Aí está a função do analista. Fazer com que haja, possa haver a humanização da pedra. Fazer com que a pedra se subjetive, fazer com que a pedra, “Saxa Loquntor”, diria Freud, fazer com que elas falem. Ganhe autonomia, saiam do espelhamento narcísico, do brilho fálico ensimesmados, da ecolalia de si mesmos e façam nascer a dimensão e a alteridade do Outro. É sofrido? É. É doído? Também. Mas não há outra possibilidade do sujeito se constituir em sua falta-a-ser. Diante deste impasse, diante desta perda da pedra, vejam que basta trocar uma letra de lugar, vejam que basta deslocar a letra ‘r’ para a pedra tornar-se perda. Rolar uma letra é uma metonímia e quando se lê já há uma metáfora em jogo. Metaforonímia, inventou Lacan. Que atire a primeira perda quem nunca foi pedra. Atirar a perda no outro é, segundo Lacan, amar com aquilo que lhe cobra o mais alto valor em sua vida: a castração. Da pedra à perda, o rosto do outro se faz e se refaz no espelho a cada dia. Surge a possibilidade de, ali no espelho da vida, surgir uma face embaçada: o desconhecimento do outro que há em si mesmo; surgir uma face estranha: a angústia frente ao unheimlich, ao sinistro, ao duplo de si mesmo. Assim, dia após dia, construímos uma espécie de espelho borgiano. Um labirinto de espelhos como naqueles parques de diversão. Mas o que se constata, depois de algum tempo preso naquele labirinto especular, que não há nada de engraçado ali. Não há nada mais que o faça se reconhecer a não ser querer correr para a luz do sol. Sair daquela caverna de Platão. Sair do mundo especular, um mundo das sombras, um mundo de assombração. Notem, o que era imagem amorosa, o que era se não amor por si mesmo, torna-se a partir do instante-já do estranho, instante tão clariceano, num canto de horror e de angústia como se o corvo de Edgar Alan Poe gritasse em sua janela da alma: Never more! Never more!
É claro que vocês já perceberam que o amor tem a estrutura de uma ilusão na crença de uma verdade. É o parceiro-sintoma. Sinthôme.
Pobre criança iludida pelo seu amor sacrificial no qual ela ainda não sabe que o objeto posto em holocausto é ela mesma. Esta é a ilusão especular. É a imagem de um outro que ela vê refletida no espelho e, mesmo vendo, ela não quer acreditar em sua divisão. Divisão narcísica, como diz Freud desde o início.
O mesmo espelho estrondoso de seu amor incondicional por si mesma, agora tornou-se frágil, quase quebradiço, não se espatifou na loucura, não se estilhaçou na esquizofrenia. Está ali na miragem de si mesmo. É a neurose. É um amor ainda. Talvez fugidio. Talvez agora só na lembrança daquilo que um dia terá sido. Este é o futuro anterior ao qual Freud nos conduz. Este é o a posteriori. Nachträglich. Só depois. Esta é a saudade que ficará como a frase do amor perdido: “eu era feliz e não sabia”. Todo amor, verdadeiro amor perdido, guarda em seu bojo, em seu recôndito mais secreto, guardado a sete chaves, esta frase. Muitas vezes indizível. Noutras vezes vergonhosa em admitir, mas de qualquer forma uma frase assombrosamente triste e amorosa: “Eu era feliz e não sabia.” Pois esta é a frase da nossa infância. Esta é a frase de uma verdade que agora possui estrutura de ficção. Como Lacan diz, ‘toda verdade tem estrutura de ficção’. É a ‘diz-mansão’ da verdade enquanto estrutura de ficção. Só assim pode-se suportar o peso do real.
É preciso ficcionalizar a vida. É preciso dar-lhe o estatuto de uma ficção. E o que é uma ficção? Já leram um romance? Um bom romance? Por exemplo, ‘Grande Sertão: Veredas’? Pois está tudo lá. Se não leram, saiam hoje daqui e leiam. Se já leram, releiam. Voltem lá. Voltem àquelas veredas. A história é simples, a trama é complexa, o enredo maravilhoso, aos personagens não lhes falta nada em suas roupagens imaginárias, nas articulações do simbólico de suas falas e no real sempre, ele, no meio do redemunho. Aliás, é de Guimarães Rosa, exatamente neste livro, a frase genial: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Dizem que quiseram apresentar Grande Sertão para Lacan. Já havia uma tradução para o francês desde 1961. É um esforço hercúleo a tradução da prosa Roseana? Traduttore, traditore? A tradução é uma traição? Vejamos o que diz Claudia Faveri, (Doutora em Sciences et Techniques du Langage pela Université de Nice - e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, no Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras) a respeito da tradução de Guimarães Rosa:
“Abordar a questão das traduções de Guimarães Rosa, para quaisquer línguas, é tarefa fácil e tarefa difícil. Fácil porque, de alguma maneira, algo terá de ser deixado para trás, negociado, omitido ou explicado. Suposta resenha se alimentaria, então, de todos os obstáculos que, conscientemente ou não, o tradutor não transpôs. Difícil porque, diante desta facilidade primeira, outro olhar é requisitado para este exercício de transcriação - para utilizar um termo caro a Haroldo de Campos - que precisa ser uma tradução de Guimarães Rosa. Os Estudos da Tradução parecem por vezes se colocar questões absolutas, traduzir o intraduzível é uma delas. Traduzir o possível pode parecer, e ser, mais ameno. Mas o que é o possível diante da escrita de Guimarães Rosa? A imensidão literária de seu texto, suas reverberações rizomáticas, seus multimatizes, sua verticalidade metafísica, enfim, são silêncio eterno para o tradutor desses espaços infinitos. Barthes nos inspira aqui: o possível é o que se faz. Tautologia ou não, fiquemos com essa possibilidade, talvez a única verdadeira que ao tradutor se apresenta.”
Assim também é uma análise: há um Guimarães Rosa dentro de cada sujeito. Trata-se, pois, de traduzir o intraduzível. É o que Lacan diz no início do seminário 11; “fazer passar o real através do simbólico”. Aí está o rio a ser navegável em suas terceiras margens. As margens do inconsciente. “Eine Andere Schauplatz”, dizia Freud. Uma outra cena diferente daquela da vida de vigília. Uma tradução ao pé da letra é uma traição ao vernáculo primeiro, à língua materna do sujeito. A interpretação, a escansão, tem algo então de transcriação como propõe Haroldo de Campos. Uma novilíngua segundo o próprio Guimarães Rosa. Há algo de novo, de um frescor próprio do significante mestre de cada um. Há algo de próprio, de subjetivo, de inaugural para o próprio sujeito. Há um thaumadzein, um espanto diante do mundo como diziam os filósofos. Este espanto, este thaumadzein, é da ordem do real. É preciso transcriar este real. Fazê-lo passar através dos desfiladeiros do simbólico. Fazer da própria análise uma ficção, um novo romance. É novo aquilo que era antigo. É o futuro anterior. Uma roupagem nova para antigos personagens.
Não se vai muito longe nesta genealogia amorosa de uma análise. Duas, talvez três gerações. No mais, além disso, é tudo o que se ouviu falar. Histórias da carochinha em que se acredita mais ou menos o que seus antepassados fizeram, amaram ou morreram por não amar. Novela familiar do neurótico. Histórias ouvidas, contadas e requentadas na análise, mas que surgem para o sujeito do divã, em sua página em branco, a possibilidade de escrever, se inscrever em sua genealogia aquilo que não cessa de não se escrever. O real da coisa.
É preciso em cada análise, escrever seu livro, seu ‘novel’ como dizem os americanos, seu romance, sua ficção.
A paixão pelo amor é, portanto, uma paixão intraduzível e que confronta cotidianamente com a insustentável ou insuportável torpeza do desejo. É preciso transcriar.
Pois, se o neurótico nada quer saber de seu desejo, ao contrário, quer saber tudo sobre sua demanda. Demanda de amor ou saber.
Na transferência, o pudor, que é o afeto da vergonha em dizer, toca algo da fantasia fundamental do sujeito. A possibilidade de encontro com este real indizível, dá ao analista, o balizamento da posição da angústia de seu analisante diante do desejo do Outro. Che Vuoi? Desejo enigmático que vocifera uma resposta da qual o sujeito, como disse, nada quer saber. Há algo que toca ao real. Ao indizível. Ao limite do osso de uma palavra. Toda palavra é revestida de carne e músculos: são suas metáforas e metonímias. Quando elas se esgotam, surge apenas um resto, duro de roer. O osso da palavra. Que é feio e assustador, mas que é preciso transpor a todos os tecidos epiteliais para se chegar ao indizível da palavra. Roer este osso é chegar ao esqueleto da fantasia. É se desnudar por inteiro. Um raio - X da vida em que só quem vê é o próprio sujeito. A constatação desta nudeza quem faz é o analisante. Sou só isso, só osso. Só Isso (das Es) dá ao seu corpo o máximo, parodiando um antigo comercial.
Quando se chega neste ponto da palavra, ao osso da palavra, acontece algo que Lacan chamou de extimidade. Chegar ao mais cru de si mesmo é poder se olhar desde fora. Este é o sentido da Coisa, de Das Ding. Da Coisa freudiana. Encontrar seus escombros arqueológicos é, ao mesmo tempo, recontar toda sua história. E esta é sua dor e sua gloria, para pensarmos no belo filme de Almodóvar.
A transferência é um ato de palavra que precisa ganhar consistência, não explicação, não revelação, mas muito mais estupor, enigma e uma espécie de epifania do lado do analisante.
Na histeria, ela fala, fala muito, fala sem parar, para esconder àquilo que ela tem medo de revelar: sua falta-a-ser. Então, a fala histérica se abre à interpretação, pois ela faz vibrar os significantes em suas cordas vocais, sua vocalize, quero dizer, em sua invocação ao Outro. Ela pergunta e se pergunta. Espera assim receber do Outro, a resposta (que o analista não dá). Ela está no intervalo significante. Ela está na falta entre S1 e S2. Ela está ali enquanto sujeito dividido e na suposição de um Sujeito suposto Saber. O que ela espera do analista? O amor, um amor dirigido ao saber. Duas versões em uma única apenas. Amor e saber. Ela, ávida por amor para recobrir sua falta-a-ser, vai às minúcias da palavra com a certeza de encontrar ‘a última palavra’. De novo, da pedra à perda.
Já o obsessivo, ele fala para não dizer nada, ou melhor, que ele fique com o nada a saber (na suposição que ele não pode deixar de saber tudo). Ele evita a fala que denuncia sua falta. Ele está na razão do signo, na confirmação estudada de sua fala: calculada, metrificada e, portanto, não aberta à interpretação. O que ele espera do analista? A confirmação e a ratificação de seu saber (S2). De preferência reconhecimento deste saber em esforço. Ele, traz a enciclopédia de palavras. Todas já prontas e catalogadas. Uma pedra bruta, não lapidada e, muitas vezes, como se diz hoje, um ogro, agressivo, materialista (é o falo do ter), rancoroso, amargo, agressivo, por vezes violento quando contrariado (é a recusa à castração), mas noutras vezes bonzinho e dadivoso, um filhinho da mamãe que foi amado inconsideravelmente por ela.
Aliás, ambos esperam reconhecimento, conceito hegeliano tão retomado por Lacan e que o leva a dizer que o desejo é o desejo do Outro. Retira o conceito do estatuto apenas imaginário e dá a ele enlaçamentos com o real e o simbólico.  Então, temos três níveis de reconhecimento: um que passa pela consistência imaginária, outro pela que pelo furo no simbólico concernente às palavras (palavras, cartas de amor) e um terceiro que se coloca como uma extimidade ao sujeito e que é o real. São formas do amor enodado.
Tanto a histérica, quanto o obsessivo esperam reconhecimento. Ela o reconhecimento de seu amor, de sua devoção, de seu pendor para ser a “enfermeira”, como diz Freud a respeito da histérica. Já o obsessivo espera reconhecimento de seu saber. Um saber todo, fechado, enredado em si mesmo e, portanto, não aberto à dialética, não aberto ao Outro. Uma pedra que não quer saber de perda. Podemos com Drummond e Lacan dizer às expensas do que se quer, que ‘no meio do caminho tinha uma perda, tinha uma perda no meio do caminho.”
Os dois desafiam o lugar do analista: ela com a sedução do amor e ele com a sedação do saber: Discurso da Histérica e Discurso Universitário.
Amor-tecimento. Amor e desejo que não querem saber um do outro, mas que numa análise, há uma espécie de testemunho em todo passante, aquele que se propõe a falar de sua análise ao final dela, dar o seu testemunho, por assim dizer: Então, nestes testemunhos, o que se observa para quem se deu as caras com o real em sua travessia, que há ali, em algum ponto ao final de uma análise, um certo acordo nesta disjunção, nesta disrupção de vida entre amor e desejo. Se, na vida, o sujeito ama aquilo que não deseja e deseja aquilo que não ama, que ao final da análise ele possa justamente amar seu desejo e desejar o seu amor.
É assim que podemos pensar que o gozo condescendeu ao amor. Arrefeceu sua posição beligerante, belicosa, destrutiva como na incidência da pulsão de morte, para bem-dizer sobre seu desejo, seu amor e sua vida. 
Do outro lado do divã, atrás dele de preferência, a insistência da paixão pelo amor, um amor ao dispositivo analítico, pode fazer com que o desejo do analista permita um lugar ético em que o gozo absolutista do Outro arrefeça o Mal-Estar na civilização do analisante e o leve, assim, a vislumbrar ao menos um horizonte de felicidade.



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