Angústia: o peso do ódio
Carlos Eduardo Leal – Niterói, Rio de Janeiro
Nada é mais temível do
que dizer algo que possa ser verdadeiro. J. Lacan
Lacan dirá que o ódio
pode ser uma paixão lúcida. Jacques-Alain
Miller
A
verdade é uma lucidez? Pode uma verdade insuportável tornar-se um ódio
fulminante? Uma passagem ao ato? Até que ponto a verdade cega e, é-se tomado
pela cólera, a ponto de o ódio desferido ser um mais-além do sinal de angústia?
A
ideia deste trabalho não é responder a estas questões que considero essenciais
para se pensar o ódio, mas repensar a partir da clínica e dos movimentos
sociais, que lugar cabe ao analista em relação à seta envenenada que o outro
desfere.
Quando
digo que esta questão concerne ao analista é porque as duas epígrafes conversam
entre si a partir deste lugar: a clínica psicanalítica. Lacan, nesta frase
colhida em “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”, pergunta-se
em 1958, ‘quem analisa hoje’? Miller, por sua vez, interroga em “La
Transferencia Negativa” a questão da ‘dissimetria’ e a ‘suspeita’ que surge do
lado do analisante a respeito do analista. Nos dois casos o que está em jogo na
partida é o analista enquanto um Sujeito suposto Saber.
Se
ao sol e a verdade não se pode olhar de frente, e, uma vez descortinada a
verdade, então o que cega no sujeito? Ou, o que cega ao sujeito?
Duas
hipóteses podem ser aqui pensadas. A primeira é de que a angústia é uma verdade
sem um saber. Este é um balizamento analítico importante. Então, estar de
frente para a verdade sem um saber que o ampare, pode fazer com que, a partir
deste ponto de angústia, o sujeito possa ir mais além dela fazendo desferir seu
ódio contra o ser do Outro. Acontece que este Outro, e esta é a segunda
hipótese, está no próprio sujeito. Portanto, desfere-se um golpe contra o outro
tentando atingir um saber suposto ao Outro. Aqui há os três registros propostos
por Lacan: a consistência imaginária, o furo no simbólico e a ex-sistência do
real. O que atinge desde o exterior ao sujeito, produz uma desestabilização
imaginária, produzindo uma quebra no simbólico e fazendo emergir o real. O real
aqui como puro ódio ao ser.
A
palavra no ódio perde a garantia identitária passando a ter valor de passagem
ao ato (Ver esquema do seminário A Angústia, p. 22). Nada a segura, nada a
detém e seu único objetivo torna-se no furor de destruir o outro. Este ódio é
estrutural ou fenomênico?
De
um ponto de vista ou de outro, é importante retirá-lo da ambivalência em
relação ao amor. Este sim atrelado à um desejo de saber. Por isso o manejo do
ódio na clínica deve ser fundamental, pois na transferência negativa pode
funcionar como um horror ao saber do Outro. O ódio não tem uma vertente
imaginária da agressividade (Lacan, Escritos. A Agressividade em Psicanálise).
Embora
O
fascismo e o nazismo podem ser tomados nesta dimensão? Como um nada querer
saber sobre o saber do Outro? Hannah Arendt em “Sobre a Violência” nos diz que
o máximo da violência não é o todos contra um, mas sim o Um contra todos. A
tirania impetra ao outro seu ódio. Um ódio decorrente de um saber do qual ele
nada quer saber. Não se trata apenas de desferir seu ódio ao outro, mas sim de
também aniquilá-lo. A “solução final” como os nazistas diziam a respeito dos
judeus. Se Lacan dizia que os canalhas não eram analisáveis, talvez devamos
incluir também aqui e, justamente por esta razão, os fascistas. Trata-se de um
modo de gozo absolutista do Outro que nada quer saber de um saber não sabido,
ou seja, do inconsciente. Nada querer saber de seu desejo é não o vacilar
(mantendo seu autoritarismo) para que ele não se angustie. “O desejo, com
efeito, constitui-se aquém da zona que separa o gozo e o desejo, e que é a
fenda em que se produz a angústia.” (Lacan, A Angústia, p. 201) Por isso que,
embora o sujeito prefira a dor, conhecida, de seu sintoma, o analista através
de seu ato, faz surgir a angústia. Modulação necessária ao saber não sabido.
Mas, se ao invés disso, há uma passagem ao ato ou acting out, surge então este
ponto da extimidade (ver Miller, Extimidade. Buenos Aires: Paidós, 2011). Já
não é mais o ódio correlativo à castração, este sim cabe na ambivalência ao
amor, embora Freud nos alerte de que o ódio é mais antigo do que o amor, já não
é mais o ódio enquanto inveja ou ciúme, mas um ódio dirigido ao ser. Por isso
Lacan em ‘A Direção do Tratamento’ diz que o analista paga com suas palavras,
com sua pessoa, mas também com o cerne do seu ser. (p.593) É aí neste ponto de
báscula que se dá o giro para a transferência negativa. Este é um ponto de
desnudamento, de desvelamento da verdade no qual se dá o osso de uma análise,
para tomar uma expressão de Miller. No meio do caminho tinha uma pedra / tinha
uma pedra no meio do caminho. Retoma Miller a Drummond. Mas ao invés de fazer
poesia, este sujeito do ódio atira a pedra no olho da verdade. Fura-a e agora
este Outro intolerante, misógino, fundamentalista e xenófobo, vai fazer de tudo
para impedir a travessia do imigrante, quando na verdade é ele que migra de um
lugar para outro em sua subjetividade. É ele que não está mais lá em eine
andere schauplatz, nesta outra cena que é a do inconsciente.
Esta
lucidez que lhe abre a uma verdade totalitária provoca um avesso da
psicanálise? É do Discurso do Mestre que falamos ou do Discurso Capitalista no
qual “o declínio do Estado-nação é também o fim dos direitos do homem”
(Agamben, Meios sem Fim: notas sobre a política. Autêntica, p. 27)? ,
O
corpo é o suporte do discurso, diz Lacan em “...ou pior”, Livro 19. Portanto temos
que o gozo do Outro incide sobre o corpo enquanto que o gozo fálico é o que dá
suporte à linguagem. Continua Lacan: “no discurso do mestre/senhor, vocês, como
corpos estão petrificados. (...) Entre o corpo e o discurso há algo com que os
analistas se deleitam, chamando-o pretensiosamente, de afetos.” E sabemos que
para Lacan há um afeto que não engana: é a angústia. Portanto, a verdade sem um
saber não é sem um objeto. Porém no ódio este objeto torna-se visível.
Esta
lucidez do ódio seria então correlata à queda da função paterna? A um “ir além
do pai” prescindindo justamente dele? Então este ódio que não se refere à
castração tangeria à perversão?
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