quinta-feira, 2 de abril de 2015

Godofredo em Teoria


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Godofredo em teoria
                                                                                      
O carteiro carrega nas costas um mundo de palavras, todas elas, seja em que língua for, o peso é sempre o mesmo e a tradução é uma só: esperança.
Godofredo era um bom carteiro, aliás, um homem bom. Tinha duas coisas das quais muito se orgulhava. Uma penca de filhos e uma penca de cartas que ele distribuía como uma árvore distribui suas folhas no outono. Deixava cair cada envelope, cada pacote, cada misteriosa encomenda diretamente nas mãos dos destinatários. Não gostava das caixas de correios, pois as julgava frias. Pensava em quem havia escrito cada carta e a saudade do encontro ali depositada. Mãos velhas de tanto capinar, mãos jovens de tanto se masturbar, mãos trêmulas necessitando se amparar e outras solitariamente desgarradas precisando se entrelaçar.  
Com apenas o segundo grau completo - o que era exigido por profissão – Godofredo, se não tinha a instrução necessária para ler muitos livros, sabia da importância das palavras na vida de cada um. Sabia também que ele era o último elo que faltava na corrente da memória das distâncias intransponíveis. Via com uma lucidez espantosa o rumo das vidas percorrerem nas suas costas o fardo do perdão, a alegria do reencontro, a tristeza de uma eterna despedida, a possibilidade de um novo emprego, o rito sumário da demissão indesejada, a convocação para uma assembléia, a mala-direta comercial, a convocação sempre incômoda do dentista, a carta de amor perfumada e o telegrama aflito do ciúme doentio da paixão: ‘Estou muito mal sem você. Preciso te ver. Urgente’.
Aconteceu certa vez de entregar mais uma carta para D. Clara, uma mulher dos seus quarenta e poucos anos (Godofredo não era muito bom em correlacionar a fisionomia com a idade). Na verdade, D. Clarabóia do Brasil Teixeira. Achava engraçado aquele nome. Uma Clarabóia para o Brasil. E sorria caminhando, apertando os passos com seus sapatos corroídos pelo asfalto quente ou pela chuva impiedosa. Sempre andando para chegar a tempo ao esperado destino. Deveria, segundo seus cálculos, ser a décima terceira carta. “Número da sorte dona. É a décima terceira carta do Sr. Renato para a senhora”, disse o encabulado God, que quase nunca puxava assunto com as pessoas para não parecer intrometido ou descomposturado, conforme ele mesmo gostava de dizer. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a voz que correspondia àquela destinatária. “Ele só vive em teoria. Promete, promete, mas não cumpre nunca o que escreve.” Godofredo sorriu agradecido sem saber o que dizer ou o que contrapor para continuar o assunto. Ajeitou o boné azul com a bandeira do Brasil na cabeça, arremessou a pesada mochila amarela com o restante das cartas para as costas, e ficou só com a metade da frase: ‘ele vive em teoria’. É bem verdade que a gente só ouve o que quer, mas God, por educação e respeito hierárquico, não quis ouvir o resto. Achou sonoro aquele ‘viver em teoria’ e percebeu que aquelas palavras traduziam de maneira formidável a vida que ele levava. Se ele levava cartas, papéis escritos por inúmeras pessoas para tantas outras inalcançáveis, ele deduziu que também levava a vida em teoria. Sorriu encabulado, agradeceu a frase que ela parecia ter-lhe destinado por encomenda. Achou estranho por que em geral ele não era o destinatário, mas o meio caminho, a ponte-levadiça, o pombo-correio, o fiel mensageiro, o arauto entre a mão por dizer e o coração por escutar.
Foi a partir deste dia que as coisas começaram a andar um pouco estranhas para o carteiro. Botou na cabeça que queria ser uma palavra. Qual? Não importava. Achou tão bonito aquilo de se levar uma vida em teoria, embora sua interpretação não estivesse lá bem de acordo com a D. Clarabóia, mas para ele que havia se agarrado como um marisco à rocha, só a primeira parte da frase deveria ser levada a sério. No fundo, só aquela vida em teoria importava. Achava assim um sentido que faltava à sua vida. Era um bom homem, como já disse, mas cumpria o seu destino, como Isaac diante da adaga na mão impiedosa do pai. Caravaggio que o diga! Aquela frase havia revelado uma epifania em sua vida que ele iria doravante tratar de lavrá-la como um bom ourives faz diante do seu tesouro.
Queria ser uma palavra. Já se disse. Mas, a pergunta insistia. Qual? Não nele, mas em mim. Ele não estava preocupado com qual palavra, mas simplesmente A palavra. E qualquer que fosse a palavra ele já ficaria satisfeito, pois estaria se transformando em teoria. Era fácil, muito simples até. Mais simples do que a simplicidade humilde com a qual tinha vivido até então: a profissão de carteiro, o cuidado com os inúmeros filhos – isso sabia fazer bem, jactava-se orgulhoso - da mulher iletrada, mas mãe zelosa, do culto aos domingos na igreja vizinha da sua casa. Sua mulher ia sempre ao culto do pastor Antenor Diógenes, mas ele mostrava-se zeloso por tanta coisa por fazer que nunca quis se ater à demanda divinatória. Até que um dia, por opção ou osmose, acabou cedendo aos louvores e pulou o muro da incredulidade. 
Mas agora era diferente. E qual era esta magnífica diferença? É que a escolha era genuinamente dele. Sem influência dogmática ou ritos impostos. Sentia-se feliz nesta liberdade de poder escolher. E sem saber muito bem o porquê, esta idéia de querer ser uma palavra era a coisa mais sublime que poderia fazer na sua vida. Nada poderia atrapalhá-lo ou mesmo detê-lo. Na verdade, não havia razões explícitas para tal, mas dentro do seu peito borbulhava uma espécie de comichão ou êxtase como se estivesse prestes a alcançar o Nirvana. Já fazia muito tempo que não estudava, mas com algum esforço e pesquisa num caderno de português de um dos meninos, reencontrou o sentido quase exato para a palavra teoria.  Anotou numa folha avulsa que arrancou de um dos cadernos das crianças: O substantivo theoría (achou que o filho tinha copiado errado a palavra. Tinha um agá ali de intrometido, pensou. Precisava mais tarde chamar a atenção do menino na hora da cópia. Escreveu ao lado da página: corrigir o Aristeu no ditado. Teoria e não theoria.) significa ação de contemplar, olhar, examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Conjunto sistemático de opiniões, regras ou leis. Escreveu também. Construção imaginária; utopia, sonho, fantasia.
É isto! Exclamou feliz. Utopia, sonho, fantasia. Viver a vida em teoria é viver a palavra sonhada. Contemplação, olhar, espetáculo. Mas é tudo isso que eu vivo cotidianamente! Gritou exultante. Só não sabia que era isso. Vou virar mesmo uma palavra. Cantou exultante. Uma palavra contemplada, uma palavra-espetáculo, uma palavra olhada. E passou a se dedicar a cada minuto do seu trabalho em ser uma palavra. A cada passo que dava queria ser uma palavra difrente: nos primeiros dias quis ser uma palavra azul, depois uma palavra luz, depois uma palavra jardim, depois uma palavra surda, depois a palavra vampiro. E teve medo. Mas depois, as palavras iam-lhe e vinham-lhe numa velocidade espantosa sem que ele pudesse retê-las ou abandoná-las. Gostava disso, gostava principalmente das palavras que não compreendia de imediato, mas que depois iam-lhe abrindo os poros assim como as lágrimas da chuva cavavam sulcos na terra ressequida. O barulho que estas lhe faziam parecia infernal, mas à medida que as compreendia eram os mais lindos sons. Foi assim que ouviu pela primeira vez a palavra ‘Celta’ e um som extremamente melodioso invadiu-lhe o passado, de forma que o atavismo das experiências esquecidas retornaram como se estivessem adormecidas há séculos. Agora lhe eram extremamente familiares e ele falava e compreendia uma profusão de línguas.
Godofredo andava diferente. Quem o olhava passar percebia que ele estava contínuamente falando sozinho. Andava com um olhar distante, mas com um inseparável sorriso nos lábios. Foi no final de uma tarde de verão, num dia de extremo calor, enquanto Godofredo voltava para casa, que Natanael, o açougueiro, deu o grito: gente! Venham ver! A sombra da perna do Godofredo transforma-se num A quando ele anda. Vejam só! É quando ele abre as pernas. Sua sombra é um A. Gritava espantado e surpreso.
Pois bem, se a primeira letra foi o alfa, antes de se chegar ao ômega, a sombra de Godofredo denunciava no chão uma infinidade de outras letras, que se juntavam em palavras para se desfazerem na próxima passada. Algumas crianças corriam divertidas ao seu lado tentando adivinhar a palavra que ele ia formar. Alguns faziam cantigas das palavras, os poetas rimavam poesias, os amantes recolhiam entusiasmados pequenos montículos da palavra paixão, os mal-educados abaixavam-se para pegar os palavrões e lançar contra o próprio God, que sem se importar continuava seu caminho coberto por outras palavras que lhe protegiam dos arranhões. Caminhava enquanto pensava cada vez mais crédulo que elas eram uma parte do seu corpo, assim como suas mãos eram apenas a continuação dos seus braços. As palavras continuavam através do seu corpo tornando-o cada vez mais infinito. Definitivo.
A última vez que viram o Godofredo, se é que ainda se pode dar este nome a ele, já não tinha mais nada que se assemelhasse a um corpo. Era uma montanha de letras que se acotovelavam umas por cima das outras, cada uma querendo fazer mais e mais parte daquele ser. E, se por ventura uma caía ao chão, logo era substituída por mais duas, dez ou mesmo trinta. A velocidade com que isso ocorria era espantosa. Parece que agora ele estava virando uma página. Talvez já pudesse até mesmo ser uma carta de amor ou um livro por fazer...
   

Carlos Eduardo Leal

Um comentário:

Rita Campos disse...

Adorei!
Interessante pensar no carteiro como alguém que entrega palavras e não apenas um mensageiro. Na leitura de alguns textos aprendi que tudo é palavra, mas quando fui atravessada por isso, ganhei de presente um olhar mais poético.
Essa semana me arrisquei numa mensagem para as professoras da escola onde atuo com a intenção de levá-las a uma reflexão sobre as palavras escolhidas por elas no tratamento com as crianças. Escrevi dando fala a própria palavra, na primeira pessoa. Acho que ficou bom...rs...
:)