Na noite de 16 de abril de 1914, Fernando Pessoa teve um sonho:
Pessoa havia vestido o fato e colocado seu chapéu quando alcançou a rua. Estava muito frio em Lisboa, mas ele não reconhecia aquelas ruas. Foi até o Chiado, desceu pelas Escadinhas da Calçada Nova de São Francisco, mas não encontrou o seu velho restaurante Taberna do Chiado. No lugar, surgia um novo e requintado restaurante. Aonde estavam os Grandes Armazéns do Chiado? E o armazém do Grandella? A Rua Garret pareceu-lhe morta às duas da tarde daquele janeiro invernal.
Quase desfaleceu quando viu um homem que lhe era muito conhecido sentado solitariamente numa cadeira do restaurante. Lembrou alguém que conhecia. Mas não era dado a amigos e Mário de Sá-Carneiro não estava lá, pois na semana anterior com tristeza vira-o partir para o outro lado deste mundo. Havia se retirado da vida sem pedir-lhe licença.
Mas, no entanto, aquilo que não parecia existir assombrava-lhe a alma. O desassossego, sempre ele, compareceu como um corvo de Poe. Aproximou-se a passos miúdos que seus sapatos quase que tartamudeavam no encontro com o solo de madeira impecavelmente encerada. O homem, que permanecia de perfil, escrevia sofregamente sobre folhas soltas que iam, uma à uma, caindo no chão como se outono fosse na vida de um escritor.
- Eu o conheço? Arriscou Pessoa.
- Sem se virar, o homem que também usava um fato igual ao seu e um chapéu da mesma cor e feitio e que tinha bigodinhos tais como ele recente se olhara no espelho, disse baixinho. Chamo-me Alberto Caeiro. Mas, por que se preocupar comigo se 'pensar é estar doente dos olhos'? Não quero metafísica alguma. Escrevo sobre a natureza. Deixe-me em paz com minha dor ingênua. Afasta-te!
O pobre homem tossia muito como se tuberculoso fosse.
Fernando Pessoa recolheu-se sobre si mesmo como se estivesse a procurar pelo seu eu. Curvou-se o mais profundo que pôde como se a dobra sobre si próprio devolvesse o que já não lhe pertencia. Ainda lançou a última lasca de olhar sobre o ombro do homem que se denominava Alberto Caeiro. E leu: O Guardador de Rebanhos
Ps: Agradeço a Paula Pessoa que me enviou uma pérola chamada "Sonhos de Sonhos" de Antonio Tabucchi (Rocco - 1996), de quem retirei a ideia para este conto.
Um comentário:
Gostei muito da história, e recorda-me a ideia que tenho sobre os heterónimos de Pessoa, e o que eles significam como a forma, enquanto humanos usamos as nossas capacidades, que a ciência começa a descodificar, e no entanto, elas são usadas pelos humanos há milhares de anos, senão milhões. Obrigada pela partilha. bjs azuis!
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