Aula 8 - 28/08/13
O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector
"Fico tão assustada quando percebo que durante
horas perdi a minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir
a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não usar sub-repticiamente uma
nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna
protetora chamar de 'uma verdade'.
A Paixão Segundo G.H.
'Narrar não consiste em reproduzir a realidade, mas
em mentir sobre a realidade;(...) só se pode contar com algo já passado
"realmente", reinventando-o pela imaginação'. Oscar Wilde - Declínio
da Mentira
A emoção do susto. Assim Freud descreve o trauma
sofrido por Emma e sua compulsão por não poder entrar nas lojas sozinha.
Projeto para uma psicologia (Parte II-Psicopatologia, p. 464 - Imago editora
ESB).
O susto de G.H. é sobre a verdade revelada:
angústia, como temos tratado aqui em nossas aulas.
A perda da formação humana a coloca diante de uma
coisa (das Ding, dirá inicialmente Lacan no seminário sobre A Ética da
Psicanálise - Livro 7 - e
posteriormente, objeto a, especificamente a partir do seminário A Angústia,
livro 10. Algo que ela ainda não sabe o nome e, por não sabê-lo, sofre a
despersonalização humana, pois é a palavra que recobre o corpo. A palavra em
sua essência lamele, lâmina, libido pulsional, é o que dá a pele o status de
camada exterior o que quer dizer que naturalmente há um interior. Este externo
mais interior é que é a topologia lacaniana. Lugar onde a palavra é desalojada
pelo objeto e o sujeito fica à deriva. Lugar da fantasia. S barrado <> a.
Lugar extático. Tela na moldura. É preciso fazer isso se mexer. É preciso fazer
travessia daquilo que ainda não há. É preciso nomear o que não está lá.
Como os antigos Koans dos Zen-budistas. Um dos mais
famosos Koans era este: Qual a face dos teus pais antes deles terem nascido?
O discípulo era reenviado a seus aposentos para
pensar numa resposta que não existia. Qual a saída? Um satori. A iluminação.
Então uma resposta não prevista surgia de um lugar que ninguém sabia de onde. E
era o início do caminho para saída. Ali estava surgindo um novo monge.
Mas G.H. é mais terrena, mais mundana, mais próxima
do não saber. Isto a assusta como uma "torturante má consciência" nas
palavras de Freud neste mesmo artigo. Esta torturante má consciência era a
causa da angústia de Emma e também de G.H. (Sugiro a leitura de toda esta Parte
II: Psicopatologia, do texto de Freud).
O não saber sobre a possibilidade de se ter uma
outra formação humana para substituir a perdida é uma insistência pulsional em
G.H. Sua aflição ronda esta questão que não se resolve. Sua compulsão e ao
mesmo tempo medo angustiante a faz questionar sobre a possibilidade de existir.
Isto a paralisa?
Seu sofrimento é sua capacidade surpreendente de
usar novamente uma terceira perna (que aqui estamos chamando de sintoma)
"que para mim renasce fácil como capim". A tentação em recair no
mesmo é a comodidade de gozo que o sintoma oferece. Algo do real surge dentro
do próprio sintoma que faz com que se ela não tiver cuidado recairá na tentação
da compulsão à repetição. Fazer novamente uma petição ao sintoma. Rogar que ele
volte, pois era com ele que ela se sentia mais segura. É o amor ao sintoma. Se
o amor é algo narcísico é porque neste nestes casos e em tantos outros há o
ganho secundário no sintoma. E o que o amor quer é ganhar algo para si, para
seu narcisismo ilimitado.
A castração vem dizer não. Vem barrar o gozo
absolutista do Outro que há no sintoma. A função do analista opera a partir
daí. Deste limite ao gozo. Deste obstáculo à compulsão à repetição: a petição
de morte. A perdição na morte do sujeito em sua alienação para o Outro que
sequer existe.
Ainda uma última questão sobre "a
verdade".
"Em grego, verdade se diz 'aletheia',
significando: não-oculto, não-escondido, não-dissimulado."
Vejam até onde podemos chegar com estas concepções
de verdade para G.H. Ela está numa posição semelhante à de Antígona que já não
pode dissimular a verdade. Pois então é preciso enfrentá-la. Lacan vai
trabalhar todo o conceito de ética da psicanálise em seu seminário 7 a partir
da posição de Antígona frente ao seu desejo.
"O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do
corpo e do espírito; a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal
como é. O verdadeiro se opõe ao falso, 'pseudos' (não esquecer dos 'proton-pseudos',
as primeiras mentiras histéricas descritas por Freud - nossa observação), que é
o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que parece ser e não é como parece.
O verdadeiro é evidente ou o plenamente visível para a razão.
(...) Em latim, a verdade se diz 'veritas' e se
refere à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato, no qual se diz com
detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu. (...) Seu oposto, portanto,
é a mentira ou a falsificação. (...)
Em hebraico verdade se diz 'emunah' e significa
confiança. Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros. Um Deus
verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são
fiéis à palavra dada ou a um pacto feito; enfim, não traem a confiança. A verdade
se relaciona com a presença, com a espera daquilo que foi prometido ou pactuado
irá cumprir-se ou acontecer. 'Emunah é uma palavra de mesma origem de amém, que
significa: assim seja. (...)
'Aletheia se refere ao que as coisas são; 'veritas'
se refere aos fatos que foram; 'emunah' se refere às ações e coisas que
serão."
(Capítulo 3, As concepções da verdade, in, Convite à
Filosofia - Marilena Chaui, Editora
Ática, SP, p. 99).
Para a psicanálise a noção de verdade se articula à
realidade psíquica. Para Freud, a realidade é a realidade psíquica.
"A miragem da verdade, da qual só se pode
esperar a mentira (...) não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim
de análise. Posto que dar essa satisfação é a urgência que a análise preside,
interroguemos como pode alguém se dedicar a satisfazer esses casos de
urgência."
Jacques Lacan - Prefácio à edição inglesa do
Seminário 11. In: Outros Escritos. ZHE, 2003, p. 572.
Cf: 1) ficção e fixação de gozo
2)
"Verdade irmã do gozo" - cap IV, 'Eixos da Subversão Analítica' e o
lugar da verdade nos quatro discursos. Seminário O Avesso da Psicanálise, Livro
17. JZE.
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