Era eu que estava naquele mar quando mergulhei e me perdi. Olhei por Tordesilhas, sereias e conchas escandinavas. A escuridão abissal mal dava para distinguir olhos dos olhos e dentes das ferrugens. Lá, tão longe de mim, estava eu. Mergulhado por entre fendas da história, dentes apodrecidos postos à prova como um cão que teve sua vasilha de comida roubada. O que roubaram de mim enquanto estava na superfície que tive que vir para este abismo procurar? Era um não-eu a soluçar por margens e areias douradas, mas as marés eram largas e as mãos trêmulas demais para tentar qualquer avanço. Ficar sem ar não era problema, pois sempre haveria de ter pautas para escrever notas musicais que fizessem pausa para a respiração. Os olhos vermelhos eram o pior naquela situação: ardiam o peso da ausência do meu eu. Como se pode saber o que são lágrimas salgadas na profundeza de um oceano? No entanto só eu sabia. Sabia que havia mergulhado no mais profundo abismo: meu eu oceânico. E também sabia que de lá o retorno era perigoso como para uma criança é perigoso abrir os olhos para o mundo sem os pais para assegurar-lhe a existência. Ter nascido nunca foi o suficiente. Era preciso mais. Também era preciso saber o que perguntar. Era preciso saber fazer a pergunta certa para não ficar ali para sempre. Era preciso o perigoso abismo de existir para se poder viver. Viver é correr riscos e agora eu corria o mais grave dos riscos. Agora eu arriscava ao mortal encontro de onde não se pode retornar. O mortal encontro com o meu eu. E estava nu e sem fronteiras para os tropeços. Estava nu: sem pai ou mãe. Estava com frio do agasalho eterno dos abraços infantis. Estava nu das possibilidades da solidariedade. Estava mergulhado no mais profundo de mim e sabia também que não haveria mais volta. Não haveria sequer mais o antigo eu. este havia ficado destroçado no encontro do mar com um rochedo.
Então fui assim mesmo sem mim. E recuperei o que nem sabia que havia perdido: restos do meu eu extemporâneo. Estava atópico. Estava desalojado de mim. Recuperei o que nunca tive e, por causa disso, estava numa espécie de torpor feliz. Transbordava oceanos plurais do meu eu. Heterônimos pessoanos. Todos mergulhados em mim. Todos tolos e reencontráveis. Só eu que não sabia. Só eu que escorregava na felicidade do viver. Desfiz o trato com tudo o que sabia. Reinventei-me.
E foi assim que voltei à tona e pude quase-ser.
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