terça-feira, 23 de abril de 2013

Aula 6 - 23/04/2013 O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector





Aula 6 - 23/04/2013

O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector

"E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade."

Clarice Lispector - A Paixão Segundo G.H. p. 17.

Vou começar pelo final da transcrição do texto de Clarice da aula 5.
Equivocadamente (Ato falho?) escrevi "desorientação" ao invés de "desorganização" como realmente está no texto. Como ninguém comentou ou observou, poderia passar em branco, mas não se escorrega assim impunemente diante de Clarice.
Tentar se orientar através do texto de Clarice é um duplo equívoco: primeiro porque ela não tem o intuito de dar pistas sobre o viver (ou como sobreviver) e, em segundo lugar, não pretendo que estas aulas sejam um clareamento ao texto de Clarice, nem uma tentativa de deixar isso mais simples para ninguém. Escrevo simplesmente por que também sou atravessado pelo texto e preciso da escrita para me conduzir um pouco através de Clarice.
Minha leitura psicanalítica não pretende, portanto, jogar luz sobre Clarice. Minha pretensão é antes, abrir um debate para aprofundar as questões sobre o que o texto me suscita e causa.
Feito este preâmbulo, vamos a citação para a aula de hoje.

"E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema."

Para que haja uma desilusão é preciso ter havido uma ilusão? Há algo do sintoma que ilude o sujeito? Quando G.H. relata ter perdido a terceira perna que lhe dava estabilidade ("um tripé estável"), não estaria relatando sobre um sintoma que a iludia e sobre um modo de viver que ocultava a realidade?
Lacan, em seu texto "A terceira", diz que o sintoma é aquilo que vem do real.
É com o incômodo do sentimento que se possui a dimensão do real da angústia: um impossível de dizer.

"sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? "

O que dá a dimensão da vida é o sentir e é desta relação entre o sentir e a desorganização efetuada que ela não consegue mais se iludir. O sentir vem conferir um status de desorganização à sua vida.

Em "Uma Aprendizagem..." Clarice diz: Não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura.
A imersão que G.H. está prestes a fazer para dentro de si mesma não a livra dos bons sentimentos, ao contrário: a metáfora da barata é o pior dela a atravessar. O "sentir" que desorganiza e traz em seu bojo a desilusão apenas nomeia o que estará por vir.

"O que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança."

Quem espera...?
Quem espera desespera, pois a esperança está sempre no campo do Outro. Nunca é do lado do sujeito (cf. grafo do desejo em "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", Lacan, Escritos) que a esperança se acomoda. A esperança se articula no campo do desejo do Outro e tem, como correlato do lado do sujeito, a angústia. Assim é que a esperança abre ao sujeito um enigma. O Che Vuoi? O que o Outro quer do meu eu? Se a pergunta é enigmática é porque a resposta precisa ser construída. Ela nunca está pronta tal como a travessia de uma análise. Por isso não há promessa numa análise porque com a promessa se cria a esperança. E não há nada do que se esperar de uma análise a não ser que se possa saber conviver melhor com aquilo que faz o sujeito sofrer. Este saber-fazer de um analisante ao final de uma análise é o melhor lugar para seu bem-dizer. Um bem-dizer sobre sua vida. Na verdade, uma análise trata de desconstruir as ilusões para que o sujeito não ponha mais pedras de tropeço em seu caminho.
Há um pequeno-grande livro que gostaria de recomendar a todos. Chama-se "A felicidade, desesperadamente" de André-Comte Sponville (Martins Fontes Editora). Ele diz que a esperança é uma dor encomendada ao futuro. E que, ao final das contas, deve-se esperar menos e amar mais.
A esperança é assunto terreno. No libreto de Orfeu e Eurídice (Monteverdi) está escrito que após a morte de Eurídice, Orfeu vai acompanhado da deusa Speranza até o Hades, mas que ao chegar na porta do inferno encontra lá escrito a frase de Dante em A Divina Comédia (O Inferno): "Deixai aqui toda esperança, oh vós que entrais". Orfeu entra só com seu canto (e sem Speranza) em busca de sua amada.
Para os que acreditam em Deus, quando se morre não há mais o que esperar, pois já encontraram Deus.
Portanto, reafirmo: a esperança é um prato cheio para a neurose em sua angústia de existir. E G.H. sabe disso. Ela sabe que o que ela era antes não era bom, mas era deste não-bom que ela havia organizado a esperança.
Freud vai escrever sobre o "Futuro de uma Ilusão" para que o sujeito saiba um pouco mais sobre a construção de uma neurose que o engana. A religião trabalha em cima destes dois pilares: promessa-esperança.

"De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade."

A busca por um sentido é ainda tema da religião e do sintoma. Ambos são bons produtores de sentido. Quando se deixa de acreditar (quer no sintoma, quer na religião), em geral isso acaba por provocar uma desorganização e a desilusão aparece para cobrar uma dívida-culpa neurótica: 'por que você não acreditou na promessa que te fiz?' 'E agora como vai se virar em sua vida?'

"Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo?"
Por que o sujeito precisa sempre de garantias prévias e imaginárias sobre sua vida para só depois poder avançar sobre a cena do mundo?

"Terei que correr o sagrado risco do acaso."
O problema é que 'o sagrado risco do acaso' não possui rituais que assegure ao sujeito a proteção desejada contra o que estará por vir. O medo aqui se contrapõe à esperança e a certeza à probabilidade.
O resto é o que sobra de uma equação da vida que não fecha a questão.
O resto é o objeto a.

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