Aula 2 - 22/01/13
O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector
(Continuação da leitura comentada de A paixão segundo G.H.)
"A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que
vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não
tenho capacidade para outro." p. 15
A emergência do real descortina um acesso à algo que estava recalcado no
inconsciente e que, de maneira contundente, abre uma clareza insuportável para
quem se defronta com esta experiência. Dizem que ao sol e à verdade não se deve
olhar de frente. Pois o que a emergência de uma uma verdade destas causa é
isso: o confronto com o real da coisa como uma certeza angustiante. Não há como
retroceder nem ir adiante, "pois não quero me confirmar no que vivi - na
confirmação eu perderia o mundo como eu o tenha..."
Há claramente aqui um impasse em G.H.: ela não quer perder o mundo que tinha e
tem a 'certeza' que não teria capacidade para viver outro.
O impasse na vida é frequentemente encontrado na neurose obsessiva como uma
dúvida cruel por uma extrema exigência do supereu em não poder discernir, em
não poder escolher duas opções em que a estrada da vida bifurca. A exigência
'moral' em, ao mesmo tempo, ter que escolher e não poder escolher, é um impasse
que pode levar o sujeito a escolher uma terceira via: ficar doente. O sintoma,
em geral é resultante de um conflito inexistente no inconsciente. No
inconsciente não há contradição, mas basta que uma centelha de lucidez sobre o
olvidado venha à tona, para que o peso desta verdade inunde a vida do sujeito
fazendo-o naufragar em seu próprio oceano.
Mas aqui ainda é cedo para afirmarmos sobre a neurose obsessiva ou qualquer
outra estrutura clínica. Interessa-me pensar sobre a angústia, este afeto que
não engana. É diante do impasse da angústia que surge o peso da vida para G.H..
O que acontece é que a angústia é uma certeza sem nenhum saber. Então, o que
acontece é uma desolação no existir: constata-se uma certeza. É não querer
confirmar o que ela viveu e não poder viver em outro mundo. Porém, esta extrema
e cruel lucidez, não produz nenhum fato novo que ajude o sujeito a elucidar
este dilema. Portanto, não há um saber que o ajude a mover as peças do seu
tabuleiro de xadrez. A sensação é de um xeque mate, mas o sujeito sabe (ao
menos isso ele sabe) que o jogo ainda não acabou. 'E se eu acabasse com o
jogo?' pergunta-se muitas vezes o sujeito querendo propor um fim ao jogo e,
assim, deitar o rei diante da morte, para pensarmos no filme 'O sétimo Selo' de
I. Bergman em que o homem joga com a morte a sorte de sua vida.
A covardia moral muitas vezes impede o sujeito de ir em frente, mas também a
covardia o impede de dar fim aos seus dias. Suportar o peso da existência é o
que G.H. faz.
Dizer que a 'escrita salva' é forçar a mão diante de algumas evidências
contundentes na história da nossa literatura: Virginia Woolf, Mario de
Sá-carneiro, Yukio Mishima, Edgar Allan Poe, Florbela Espanca, Ernest
Hemingway, Silvia Plath, Stefan Zweig, Primo Levi, Raul Pompeia, Ana Cristina
Cesar e tantos outros onde a palavra não foi suficiente para suportar o peso da
existência.
Nunca é demais lembrar que a origem da palavra paixão vem do grego 'pathos' que
significa sofrimento. Mas também, excesso, catástrofe, assujeitamento e, no
geral, dor de existir. Portanto, o fato de alguém encontrar-se apaixonado(a)
pode-se presumir que esta pessoa esteja 'em sofrimento'. A 'paixão' segundo
G.H. já nos avisa sobre isso: encontro com uma dor de existir que, no caso,
precisa ser atravessada.
A travessia da dor numa análise, é, também, a travessia da própria vida. A via
régia para o inconsciente é o caminho descoberto por Freud desde a
Interpretação do Sonhos (1900), para que a verdade oculta, por pior que fosse,
pudesse ser revelada e, assim, permitir ao sujeito caminhar sem mancar em sua
vida. A 'associação livre', método único da experiência da psicanálise, visa
fazer com que o sujeito fale e produza uma história sobre sua história. A
consistência desta travessia tendera produzir um caminho suficientemente seguro
para que o sujeito saiba o que fazer diante da angústia de seu viver. É o
savoir faire: saber o que fazer diante da experiência da angústia que até então
era uma certeza sem um saber.
"Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não
saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas minhas
visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber
nele." p.15
O acesso ao mundo não dá nenhuma garantia ao sujeito. Ingressar no mundo é
fazer um recurso da fala diante da linguagem. O modo de o sujeito se aparelhar
nesta dimensão entre a fala e a linguagem dará a dimensão de sua estrutura no
mundo. Querer que o mundo caiba dentro do sujeito ou que "o mundo inteiro
se transforme para eu caber nele" é recusar a realidade por viver. Este é
o impasse. Um não assujeitamento ao mundo, mas ao mesmo tempo um pathos
(assujeitamento) do sujeito ao mundo. É como se ela dissesse: 'ou eu ou o
mundo. dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.' (topológico? Esta
é a aposta de uma análise. Que se possa ocupar topologicamente este mesmo
espaço. Veremos isso adiante.) Estes dois mundo inconciliáveis são um
desconforto, um desassossego pessoano em G.H..
Nota: Ao final desta primeira página e até o fim deste primeiro capítulo,
veremos a dimensão do sintoma em sua articulação com a angústia. Deixo aqui a
citação que irei retomar na próxima aula:
"Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é
necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então
me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Esta
terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter
o que nunca tive: apenas duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que
posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta,
era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer
precisar me procurar." p.15/16".
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