Aula - 1 - 21/01/13
O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector
(O propósito deste seminário on line é pensarmos estas duas
questões em C.L. O primeiro livro que analisaremos é A paixão segundo G.H. Caso
você queira contribuir com alguma questão escreva ou comente sobre
os efeitos da obra de Clarice Lispector. Embora meu viés seja a
psicanálise, se for de outra áera ou apenas um leitor de Clarice, este
seminário pretende ser aberto. Portanto, caso o tema lhe interesse, participe,
comente ou envie sugestões.)
Há pelo menos dois modos de se pensar o real em psicanálise:
O primeiro, bastante difundido é a dimensão do real enquanto impossível de ser
falado. Não se trata do silêncio enquanto tal, mas da angústia devastadora que
impede a fala.
O segundo modo de se pensar o real surge em certos escritos que funcionam como
uma escansão tal como no interior de uma análise. Ao invés de elucidar, abre
outros sentidos que produzem um desassossego (para darmos o devido peso que
possui esta palavra pessoana).
Encontramos este segundo modo de efeitos do real em Clarice Lispector.
Vamos ao texto (A minha referência para este romance é a 14a. edição, da Francisco
Alves Editora, 1990. Todos os livros de Clarice estão editados pela Rocco):
"... estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando
dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que
vivi."
Estas reticências iniciais apontam já para um texto que se inicia a partir de
um vazio. De alguma coisa que antes não era. Porém o não-ser permite a procura
de ser. Que seja uma falta-a-ser é o que veremos mais adiante, mas iniciar a
partir das reticências é uma forma de dar corpo ao copro das palavras. É tentar
dar consistência ao que ela está vivendo ou tentando entender. Mas, a quem
ofertar as palavras? O que ela viveu não quer mais, mas está sozinha em não
saber a quem dar o que viveu: angústia. A angústia é um afeto. A angústia é
quando o sujeito está afetado pelo mundo. E é nesta dimensão do dizer que G.H.
se encontra: como se estivesse acabado de sair do abismo, embora o que ela irá
encontrar adiante pode ser bem pior. O real dá esta dimensão da angústia como o
pior por vir.
Lacan nos diz em A terceira que "ele chama de sintoma tudo aquilo que vem
do real."
Então, esta indecisão sobre um não saber é uma forma de sintoma, um sintoma que
afeta o caminhar do sujeito. Não custa lembrar que o sujeito freudiano é um
sujeito que manca. É Oedipus (Édipo), isto é, aquele que tem os pés inchados.
(Édipo ficou pendurado pelos pés de cabeça para baixo enquanto esperava 'seus
pais').
Caminhar com dificuldade é uma forma do real incidir sobre a vida impedindo que
se saiba sobre ela.
"Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização
profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu,
pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar
desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para
onde voltar: para a organização anterior."
Freud nos diz que a pulsão vai em busca de satisfação. Porém o que ela visa é
justamente restabelecer um estado anterior de coisas onde o sujeito tinha suas
garantias imaginárias que o sustentavam e davam equilíbrio suficiente para que
ele vivesse sem o desassossego. A "desorganização profunda" vem
desestabilizar o que era antes sem nenhuma garantia em relação ao futuro. É
estar neste estado de suspensão temporal entre o passado que já não reconhece
mais e a incerteza do futuro que faz do presente um desequilíbrio insuportável.
A emergência do real é a impossibilidade de travessia do presente. Mas a função
da escrita e o que lemos na escrita clariceana vai nos dando, pouco a pouco, a
dimensão desta travessia.
Tal como numa análise, cada palavra abre outras significações sobre as quais
ainda não há certezas sobre o caminho a percorrer, no entanto, são
palavras-travessia.
O medo produz a falta de confiança. Há alguma outra? O que há para além da
palavra? Travessia?
Um comentário:
Adorei as aulas. Muito. Também leio Clarice pelo viés da psicanálise – “A palavra é o meu domínio sobre o mundo” diz Clarice. Nunca é demais lembrar que foi Freud quem deu a palavra às mulheres. Que para além das questões diagnósticas, diz Lacan no Seminário XI, o de que se trata na psicanálise, é que a menina muda fale.
A arte, de um modo geral, acompanha minha leitura. Seja pela escrita poética de Clarice ou pelas imagens que sua palavra evoca, trazendo a possibilidade de um olhar outro sobre a realidade que insiste em reivindicar a verdade. Penso a vida como uma obra de arte. “Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel que era de uma surpresa amedrontadora. Era a liberdade horrível de não-ser. E a hora da escolha.” (O Livro dos Prazeres, p.92, 11ª edição) O que levanta a questão da ética.
Sobre o feminino, o próprio Freud não o esgota ou o reduz as suas construções. E a sua eterna questão “o que quer uma mulher?" ele não propõe também que perguntemos aos poetas?
Poema Concreto
O que tu tens e queres
saber (porque te dói),
Não tem nome, só tem
(mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida
a sua própria falta.
A dor te dói pelo avesso,
perdida nos teus escuros.
É como alguém que come
não o pão, mas a fome.
Sofres de não saber
o que não tens e falta
num lugar que nem sabes,
mas que é na tua vida,
quem sabe é no teu amor.
O que tu tens, não tens.
(Thiago de Mello, do livro “Faz escuro mas eu Canto”)
O real? “Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele – e minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele – terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra minha vida pessoal.” p.22
Quando você diz “Caminhar com dificuldade é uma forma do real incidir sobre a vida impedindo que se saiba sobre ela” é correto que eu pense na repetição? “Não, nem a pergunta eu soubera fazer. No entanto a resposta se impunha a mim desde que eu nascera. Fora por causa da resposta contínua, que eu, em caminho inverso, fora obrigada a buscar a que pergunta ela correspondia”
Minha edição de G.H., que é de 1998, traz uma frase do Bernard Berenson: “A complete life may be one ending in so full identification with the nonself that there is no self to die.” p.10
Na angústia o tempo pára?
Você coloca a questão: “Mas, a quem ofertar as palavras?”
E o amor? “Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria.” p.17
Travessia? “Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.” p.21
Continua na 2ª aula. Obrigada,
Bjs
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