quinta-feira, 24 de maio de 2012

Cobertor de Palavras


Gustav Klimt 

Peguei o cobertor de palavras dele, enxuguei a saudade que o vazio na cama havia provocado, encolhi as pernas como fazia quando era pequenina e enrosquei-me em lembranças. Ouvi sua voz pela última vez quando acendeu um cigarro. Sabia que não olharia para trás quando ultrapassasse a porta do quarto. Escureceu uma dor em meu ventre. Era a despedida: do seu cheiro, do seu suor, da sua respiração ofegante e feliz depois de uma noite de sexo. Era uma separação desmedida pelo que havíamos vivido. 
A chuva impacientava-me com aquela saída noturna. Corri desesperada escada abaixo com o casaco para mais uma vez protegê-lo. Eu era uma boba. Uma boba apaixonada. 
Descalça, na chuva, cabelos encharcados, estava achando-me ridícula. Lembrei ridiculamente do Pessoa e as cartas de amor. Ah, meu amor. Por que foste cair do meio da folha se ainda não havíamos virado todas as páginas? Por que arrancaste de meu ventre a esperança do fruto da palavra se ainda era uma semente? 
Ainda pude vê-lo entrando num táxi. Mas já era outro. Eu também já me desconhecia. Sempre pude vê-lo em mim. Entrando em mim. Explorando com suas mãos meus mangues encharcados, minhas raízes submersas, meus seios túrgidos de desejo. 
Agora meus sonhos destemperaram o véu da ilusão. E o que eu vejo? Ainda o seu cobertor de palavras, mas que já não me aquecem sentidos.

quarta-feira, 23 de maio de 2012



Finisterra - Para James Joyce

Finisterra
A sombra do fim
Permeia mortes.

O apocalipse
O príncipe Andaluz
A voz que principia
A morte.

Tudo toca o ar
Num único e
Derradeiro
Mo(vi)mento.

Basílica de luz
A sombra sem fim
Finisterra
É a morte do princípio
Da morte.

Finisterra
Prolixo
Prolitter, a letter
Prolixa
A sombra sem morte
Inerte.

A ponte entre
A língua e a guitarra
Excita corações
Eu não /
Emudeço.

Finisterra
Último suspiro:
Morte além da morte.

E quando tudo se for?
Pergunta-se atônito.
Porque ao silêncio deves /
Uma morte.
Não duas, mas
Finis
Terra.
Finis
Finesgan
Finesganwake.

Lisboa, 07/04/2012

sexta-feira, 18 de maio de 2012



A palavra saudade

"Eis a lição que aprendi em Jesusalém: a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida." Mia Couto - Antes de nascer o mundo. 

Quando eu ainda pouco sabia da vida o meu avô se foi. Não era a primeira vez que ia. Já havia ido diversas vezes. Morrer é o que ele bem sabia fazer. Acho que nunca o alcancei. Ele estava sempre alguns passos à minha frente, quer por sabedoria ou conversa com os bichos. Meu avô era dado a conversar com plantas. Principalmente no alvorecer do dia em seu sítio. Ele acordava os netos atirando caroços de milho pela janela. Só agora penso que éramos seus pintinhos. Mas era minha bisavó quem jogava as pepitas de ouro no terreiro. Ao escutarem o chamado da bisa, de um arvoredo próximo, os galhos se sacudiam em alvoroço de algazarra e elas vinham tresloucadas bicar o chão empoeirado. Meu avô nos chamava cedinho. Eu sempre fui encantado com sua infinita sabedoria de homem simples, mais afeito à rolinhas do que a cabos elétricos para anunciar a chuva. Eu, de um pulo, iniciava a minha caminhada em direção ao curral para tirar leite de vaca. Meu avô também sabia conversar com elas. Havia a Mimosa, a Malhada, a Laranja, a mais brava, mas que nunca deixou de lhe responder com apreço, educação e um leite farto, vigoroso, isento da maldita brucelose. E com outras tantas ele falava: tantas outras com seus estrumes, mugidos e olhos esbugalhados. Tenho certeza que elas respondiam ao meu olhar, mas ainda não muito ao meu chamado. Era muito pequeno para vacas. Desde cedo também aprendi com ele a linguagem dos seres que não falavam a nossa língua: begônias, lírios do campo, mariposas, lagartixas, tanajuras, joaninhas vermelhas com bolinhas pretas, sapos-martelo, caracóis de açude, grilos, goiaba com bicho (as brancas tem sempre mais do que as vermelhas), girinos, taioba, facão de cortar cana, laranja lima, tangerina (você pode principalmente conversar com as mexericas, são mais femininas, mexeriqueiras), pasto depois da chuva, abil, cajá e jamelão, ah, principalmente jamelão que põe nódoa roxa em roupa de toda criança. Com estas eu gostava muito de conversar, principalmente quando estavam no meu bolso. Eu criançava na linguagem com estes e muitos outros, infinitos outros seres iluminados pelas conversas do meu avô.
À noite, os pirilampos eram estrelas cadentes, candentes que o meu avô mandava acender para iluminar o que não havia. O que havia era temor de fantasmas. Mas ele nos sossegava contando histórias ainda mais fantasmagóricas. No fundo da noite, todos os seres elementais aprumavam as garras em direção à minha cama. Encolhia embaixo dos lençóis, fechava os olhos e pensava na bravura de meu avô que dizia já ter enfrentado ninho de vespas africanas. Zás! Elas voavam e ele as cortava ao meio com suas histórias encantadas. Era magia de encantamento de criança. A saudade avoenga ajuda a não inventar. Mentira, por verdade, como diz Rosa.
Ainda hoje, quando sinto saudade dele, entro na mata e fico ali por horas seguidas. Perdi um pouco da fluência de falar com os bichos e as plantas. Mas é como andar no escuro de olhos fechados, com a prática os descaminhos se encaminham. Por sorte, eles acabam lembrando-se de mim e logo puxam conversa atirando a solidão para a outra margem do rio.
Assim, de mansinho como rio antes de temporal, meu avô tem aparecido, encantado nas palavras. Sei que de tudo ele fazia troça, e ria alto da minha insciência de menino, mas sempre tinha um ensinamento para cada galho retorcido da vida. Ele já me apareceu como um bem-te-vi, um curió, um trinca-ferro, uma mangueira (neste dia precisava de amparo e acolhimento: apareceu frondoso), uma névoa matinal, aliás, sobre isto ele sempre dizia: 'serração baixa, sol que racha'. Em seu mundo não havia fronteiras. Seu mundo era maior do que o universo. Talvez ainda maior do que o maior eucalipto que minha vista de criança alcançava. Deitava no chão de barriga para cima a espiar o infinito azul por entre os altos verdes. Foi meu avô que me ensinou a vida. Não-toda de uma vez, mas aos goles, entre uma ventania e um passeio a cavalo. Ensinou-me a amar as coisas simples do cotidiano. Só me esqueceu de dizer como é que estanco esta saudade.
"Porque ele tinha razão: o mundo termina quando já não somos capazes de o amar" (Mia Couto)

terça-feira, 15 de maio de 2012



 A SUICIDA


Acordei assustada com a buzina do caminhão debaixo da minha janela. Aquilo parecia um rouco grito de socorro. Mais assustada fiquei quando percebi que aquele era o meu grito e não havia mais ninguém na casa. Eu gritara como há muito tempo não fazia. Meu travesseiro retraiu amarrotado sob minha nuca. Ele também ouvira a minha perturbação? O caminhão de lixo seguiu seu trajeto despejando a fumaça quotidiana que ardia em meus olhos todas as manhãs. Eu havia sonhado com aquele grito ou realmente havia gritado? Andei tonta até a cozinha e enquanto colocava a água do café para esquentar fui até ao banheiro e me olhei no espelho. Olhei o que não deveria olhar. Olhei e me vi. Estava quase sem batom, sem perfume e com os cabelos tal como a vida: desalinhados. Olhei e tive repulsa do que vi. Olhei a vida desperdiçada entre paixões mal resolvidas e arroubos de noitadas tentando salvar-me: baseados e muito álcool não eram suficientes. Vi que era tarde para isso. Muito tarde. Então, que eu não me salvasse. Naquela manhã soube que era tarde para me salvar. Salvar de mim mesma. Essa ideia se apoderou de todo o banheiro e a palavra salvação parecia que escorria como uma cachoeira fria do chuveiro pra o ralo. Tentei achar um motivo para a vida e o espelho embaçou com meu hálito sem memória. Eu havia bebido muito na festa da noite anterior. Festa que inaugurou mais um período que eu já sabia no que se converteria: um rio caudaloso de desamparos e inconstâncias. Pedro tinha outra. Aquele cafajeste, aquele lindo e detestável cafajeste tinha outra. Seu puto! Xinguei-o e a mim mesma, porque a palavra retornou do espelho como uma flecha sobre meus olhos borrados e lacrimejantes. Canalha! E deixei-me escorrer sobre aquela fria imagem e sem piedade beijei-me embaçada. Beijei-me com o resto encardido do batom que ainda continha o cheiro dele. Puto! Safado! Não deveria sobrar nem mais um minuto na minha memória a lembrança daquelas mãos ossudas e fortes pousadas nas ancas daquela safada. Puto! Mil vezes puto!
Na cozinha a chaleira apitava como uma locomotiva que tenta avisar ao morto para que ele saia de cima da linha. Eu já estava morta. Aquilo era apenas a constatação da minha morte. Iria acelerá-la. Iria acelerar o término da minha partitura. Nunca mais tocaria piano. Minha música havia acabado. Não conseguia mais compor. A criatividade já não produzia mais filhos. Meu ventre seco não suportaria a inseminação de outra vida artificial. Todos os homens que tive foram fruto de uma inseminação - artificial como uma exposição de taxonomia. Agora, era eu que estava seca, empalhada pela vida. Tive ódio de mim mesma. E dele, muito ódio dele. Meus cabelos estavam ressecados pela fumaça dos cigarros que me consumiam. Minha pele havia perdido o glamour. A chaleira continuava a me irritar como querendo me visar do mal maior. Mas que mal maior poderia haver do que continuar a fingir ser uma outra que não eu mesma. Talvez tivesse chance como outra fulana, outra morta. Ela gritava o grito surdo da minha morte. Sairia da vida e passaria à história: matou-se por causa de um cafajeste. Esta manchete serviria para me manter no limbo por um tempo suficiente. Não queria os céus e tinha medo do inferno. No primeiro caso, sempre achei o céu extremamente enfadonho, redondinho de nuvens brancas, com anjinhos com cachos dourados. A não ser nos dias de temporais. Aí sim ele se comportava como eu achava que ele deveria ser: majestoso, tenebroso e imponente.  Quanto ao inferno, já disse: tinha medo, mas o amava. Sempre, desde pequenina, tive medo de inferno e baratas. E, de mais a mais, meu inferno já era aqui na Terra. O limbo deveria ser um lugar para ser esquecida. Perfeito para uma memória estropiada por péssimas lembranças. A chaleira tremeluzia inconstante em seus apitos finais. Estava estrebuchando com uma faca enfiada em seu bico. Não iria resistir muito. Nem eu. Quando ela interrompesse sua cantilena eu também interromperia a minha. Questão de afinidade com quem muitas vezes me salvou do ridículo do dia por vencer. Era só esperar mais alguns goles d´água sorvidos pelo calor do bico de gás. Agora, estava vencida e queria compartilhar este escárnio com a chaleira. Morte. Morte e vapor. Eu estava matando a chaleira e iria em seguida me suicidar. Silêncio. Só fui trocar de roupa para parecer menos imbecil. Sair à rua para me jogar da ponte de camisola? De jeito nenhum. Nós mulheres fazemos coisas que nem entendemos, como este meu último ato. Pensei em passar o batom. Sair sem batom? Nem pensar. E lembrei que ia sair para me suicidar. Não precisava do batom. Jogar-me da ponte faria com que minha cara fosse encontrada rio abaixo toda inchada mesmo. Branca e inchada como uma porca morta. Eu estava pronta para o meu sacrifício. Iria me imolar. Eurídice, sua idiota, você vai se suicidar. Ande logo criatura! Peguei minha calcinha branca com lacinho cor-de-rosa (Pedro gostava tanto dela), meia, calça jeans, camiseta estampada dada pela minha última sogra (iria também matar um pouco dela comigo), tênis e, não sei por que, prendi meus cabelos com um lenço branco.
O rio sob a ponte não era muito caudaloso, mas a altura do vão central até a água era suficiente para um fim previsto. Não fui me arrastando até a cabeceira da ponte. Fui altivamente arrastada até lá. Quem me visse passando não acreditaria que eu era uma suicida. No máximo diriam: ‘olha aquela mulher, parece que se esqueceu de sair com sua bolsa! Que louca? Tá querendo morrer?’ Qual mulher em sua mais perfeita sanidade sai sem bolsa? Isso poderia ser um indício para algum olhar mais atento sobre uma mulher com a vida por um fio. Melhor, sem fio. Mas, quem me olhava sob a suspeita de um suicídio? Eu não queria exatamente isso? Acabar com os falsos olhares, os olhares hipócritas que se deitavam na minha cama dia após dia, noite após noite e faziam sexo e usavam a suntuosidade do meu corpo e depois sumiam entre minhas coxas e os prédios? E eu a levantar cedo, colocar água na chaleira, esperá-la apitar e fazer o maldito café para dois. Meu corpo esfriava como um casaco esquecido no fim de uma festa em profundo alinhamento com minha alma que se abrasava de um fogo frio, gelado, que nada mais parecia aquecê-la.   
A velha ponte ainda passava carros embora o grande volume de veículos tivesse sido transferido para a ponte nova. Estava a dois passos do vão central, aquele que separaria em definitivo a dor pelo silêncio, o cansaço pelo vôo sem volta. Foi quando vi, num relance, a silhueta do Pedro dentro de um ônibus que cruzava a outra cabeceira da ponte. Era ele mesmo? Ou era seu fantasma a me perseguir? Não existem milhares de silhuetas que acabam ferindo a percepção e distorcendo os sentidos comuns das coisas? Eu já estava distorcida por aquele homem. E não havia mais volta. Quem já sentiu isso sabe muito bem do que estou falando. Tudo gira ao redor daquele soberano, príncipe maldito. Lacaio da minha própria sorte. Estava zonza, tonta e bêbada de algum fiapo de esperança. Que coisa mais ridícula, pensei. Mas ainda assim foi inevitável. Inevitável porque a vida não pede explicações à morte. A vida pede explicações à própria vida e para ela, zero. Para ela eu não tinha como estar à altura de uma nuvem e permanecer incólume aos passantes. O vento não quis me empurrar com seu cheiro de outono quando tudo cai. Azar, pensei. Azar sofrido, mas ainda assim azar. O que poderia acontecer mais em minha vida?
Voltei apressada, correndo para casa. Passei um batom, peguei a minha bolsa e fui que nem uma louca (e eu não era?) por entre as ruas esguias da cidade, atrás da sombra densa da minha paixão. Uma silhueta. E isto não é o bastante para iniciarmos um dia? Dane-se a morte. Ela que me espere até amanhã de manhã. Amanhã vou acordar sem batom e sem o seu cheiro. Dane-se a morte. Hoje eu a matei. Ela, se tiver coragem, que me espere amanhã bem cedinho no vau do rio, embaixo da ponte. Se ela não falhar eu também não falharei. O Pedro que se foda!