Psicanálise e Literatura: a paixão pelo Outro
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Guimarães Rosa
A literatura é uma paixão. Mas, ela própria conta histórias de amor e paixão humanas, demasiadamente humanas. A paixão é um sentimento e um afeto, no qual o sujeito vive a intensidade transbordante da alienação pelo Outro. Tudo gira num turbilhão para o sujeito como se num primeiro momento da paixão ele tivesse encontrado com a parte que lhe faltava e se tornado uma espécie de deus no Olimpo dos seus sentimentos. A sensação de grandeza e plenitude da alma, o bem-estar que o acompanha neste encontro com o Outro o torna radiante como quem possui a certeza de ter encontrado um pote de ouro ao final do arco-íris. A paixão pelo Outro comporta um grau de ilusão que pode ruir com a verdade proclamada.
No oceano das paixões, no mergulho da vida quotidiana de cada um, tudo que podemos encontrar possui a descomunal e abissal característica de ser superlativo. Aliás, o inconsciente é superlativo. Tudo nele é desmesuradamente enorme, ou diminutamente pequeno, ou engenhosamente distorcido.
As paixões são, na verdade, ecos das lembranças do amor infantil. Este amor vivido em tenra infância marca o compasso que regerá a vida futura de cada sujeito. Data deste tempo o que podemos escutar sobre o que foi o inesperado descobrimento do corpo, a surpresa das primeiras identificações, a luxúria dos primeiros banhos compartilhados, o fascínio da captura dos primeiros olhares maternos, o (des)encontro com o olhar do pai, o inquieto e algumas vezes angustiante confronto com os enigmas, a vontade e a diversão em decifrá-los, a turbulência dos primeiros sonhos, a alegria pela vida e o temor angustiante pela presença do obscuro da morte.
Quando surge o Outro da paixão, o sujeito é tomado por um afeto que o abalará para sempre em sua vida. Nada será como antes. A paixão é um divisor de águas na qual o sujeito perdeu o leme e a bússola que o guiava, e o que é pior, sem saber disso.
Menu: Leia saborosamente “A paixão segundo G.H.” de Clarice Lispector. Reserve. Adicione pouco a pouco “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa. Na mesma panela vá lentamente refogando sua imaginação com pitadas da psicanálise. Leve ao forno bem quente por uma hora. Sirva em seguida para a degustação e o debate.
Ps: O projeto "Baco e Sophia: conhecimento e prazer" aconteceu em 2006 em alguns restaurantes do Rio. Este foi o release para minha palestra no restaurante Margutta em Ipanema. A encontro dava direito além da palestra, a um jantar com vinhos fornecidos pela Grand Cru.
4 comentários:
Esta interpretação, à luz da psicanálise de Freud e Lacan, é interessante, também a uso vez em quando. A vida, porém, não se submete a uma única metáfora. Hoje, após 17 anos de clínica, percebo que algumas experiências vão além (ou ficam aquém?) do que disseram estes dois grandes homens. Por isso lido com os sentimentos dos personagens de minhas histórias sem seguir qualquer modelo de pensamento, apenas mostrando o que lhes acontece no mais profundo de si mesmos.
Ah... como parece ser difícil nutrir essa paixão pelo outro... Adorei o texto, que bonita receita de percepção!
Obrigado, Morgana pela tua observação. É verdade que não há uma única metáfora (este texto foi apenas um aperitivo para uma única palestra)e, após 30 anos de clínica, continuo, como sempre, acrescentando a Freud e Lacan, Clarice, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Mia couto, etc.
Abraços
Obrigado pela tua leitura sempre sensível, Bia.
Bjs
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