segunda-feira, 3 de maio de 2010

Tinta usada



Vincent van Gogh

Estava em meu ateliê quando dei por falta do azul ultramarino. Estava terminando de pintar uma marinha e era a cor que faltava para que o mar se perdesse na imensidão do céu. Tudo já estava lá. Uma praia deserta de areia manchada de algas estremecidas pelo vento, algumas rochas em formato quase-humano se não fosse por cantarem o som do vento entre suas pedras, algumas palmeiras debruçadas em arco-dolorido sobre um fundo verde-esfumaçado, um Guanabara e um Laser dourando as velas brancas, algumas nuvens sujas-de-rosa-carvão e um pintor aturdido sem a sua tinta.
Estava muito em meu ateliê e quando isto acontecia o mundo lá fora não existia. Como era possível a vida vazia de fora com a vida incandescente de dentro?
Lembrei do filme "O segredo dos seus olhos" quando Benjamim Espósito, o protagonista, pergunta a Morales, o marido que teve a esposa assassinada:"como é possível viver uma vida vazia? Como se faz para conseguir viver uma vida sem vida?"
O tema central de "O segredo dos seus olhos" é a paixão. "Tudo na vida muda", diz Pablo Sandoval, o fascinante amigo bêbado, "mas uma única coisa não muda: a paixão. Podemos mudar de roupa, de Deus, de qualquer outra coisa. Mas a paixão, esta não muda."
Por isso a vida foi dando lugar a uma dor sem nome. Queria dizer melancolia, mas mesmo esta palavra tão presente naquela ocasião não foi possível de ser pronunciada. Tive vontade de gritar um outro nome qualquer, mesmo que sofrido, mas a acústica em meu ateliê faria retornar para mim outras tintas que agora não me caberiam mais.
Sabia que mais cedo ou mais tarde a evanescência daquele momento me liquefazeria para sempre. Sabia, aliás, sempre soube que a luminosidade do outono precisava ser dita através de uma palavra ainda não inventada. Uma palavra que atravessasse silêncios e cores. Uma palavra que, uma vez usada, não retornasse mais. Não, não era uma palavra bumerangue tanta vezes usada por mim. Desta vez tinha que ser uma palavra-outono, uma palavra que me fizesse fechar as janelas e as portas em meu ateliê, que me fizesse apagar a luz e ainda assim terminasse o quadro. Um quadro é como uma palavra na ficção. Ele se inscreve em mim a partir de sua luz própria. Ele se pinta em minhas veias. Nestas horas não sei quando termina o quadro e onde se inicia a conjunção entre meus dedos e o pincel. Tudo em mim é muito. Tudo em mim é cor e palavra sem forma. Tudo em mim é outono.
Paixão é a cor da palavra que sopra sobre os verdes dobrando as palmeiras. De qualquer maneira, meu quadro ficará inaugurado sem margens. Talvez seja melhor assim. E a tinta usada da luminosidade deverá atravessar todo o outono. Mas eu seria incapaz de atravessar (meus) silêncios sem o azul a me entardecer.

8 comentários:

Isis disse...

Que lindo, Eduardo.
Gostei do anseio por uma palavra para o outono.
Essa estação tem uma luminosidde especial, um amrelado com cheiro de lembrança. A primavera é rosa e azul prá mim. Mas o outono tem nuances de recordação. Obrigada por me fazer viajar nas suas palavras.
bjs
Isis

Anne M. Moor disse...

Carlos Eduardo

Que descrição linda que me trouxe muita paz...

Bjos
Anne

Unknown disse...

É, às vezes tudo já está, tudo já está lá, mas falta uma tinta. Nos assustamos. O que fazer? A luminosidade outonal precisa ser dita ou inventada? Silêncio e azul. Sempre o azul. beijos

Silvia King Jeck disse...

Que delicadeza, Carlos Eduardo!
Total sintonia entre quadro e texto com o azul permeando essa paixão.

Michelle Siqueira disse...

No meu entendimento, azul, outono e paixão não combinam. São cores diferentes. Mas penso que no seu texto foi feita uma mistura dessas tintas (cores) e saiu algo muito bom. Provavelmente seu anseio em encontrar uma nova palavra para o outono o levou à alquimia de nuances em busca de uma combinação dos sentimentos.
O texto reflete grande sensibilidade. O poeta realmente é um fingidor...
"O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente".

Um abraço,
Michelle

Anônimo disse...

Oi Carlos,

De uma paixão inusitada, esse seu texto. Brilhante criatividade. Fez do outono uma tinta que não poderia faltar em sua tela. Interação total com o seu interior de maneira bastante introspectiva. Causa a sensação de que o outono é o responsável para acionar essa sua introspecção.

Eu não sinto palavra melhor para me expressar, a não ser de que Amei!!

Beijos,

Anônimo disse...

Perguntas de uma leitora:
Por que o azul ultramarino faltara? Foi "tinta usada" em demasia? A melancolia se instaura pela falta ou pela demasia? Se "tudo em mim é muito", o que falta para inaugurar o quadro com margens?
Bj
Adriana

Erica Vittorazzi disse...

Que lindo, Carlos Eduardo que gostaria de ser Freud...

'No fim, sempre resta o desejo'.

É esta a palavra de outono: desejo!

Beijos
ps: Eu queria ser Lacan também...