Escrever é um ato contra a morte. Morre-se um pouco a cada palavra, mas perpetua-se o que antes era o indizível. O intraduzível da vida conduz-se através da escrita para além da morte.
De outra sorte, morro por não escrever. Então, quando escrevo morro um pouco, mas quando não escrevo morro mais ainda. Não-todo, é verdade, pois não escrever é sofrimento sem retorno.
Escrever é traduzir a emoção em palavras, modificando um velho adágio de Freud. A escrita é um ponto de fuga quando a fala não dá mais conta de dizer o mundo. A escrita então vem prestar socorro ao possibilitar a criação de um outro mundo. Um mundo além do mundo. Mundo paralelo, ficcional, majestoso, fantasioso, enfim, mundo escavado na pedra (como a antiga escrita cuneiforme, daí o nome) e lapidado através de banhos de rios de insônia.
Escrever é arrancar palavras encravadas há milênios de anos no ermo de um pensamento inexistente.
Em contrapartida, ler é um ato a favor da vida. De início, "o olho tem de seguir a linha, se quiser compreender a mensagem", diz Vilém Flusser. Mas a mensagem vai além da mensagem porque o leitor acaba por continuar por outros meios o ato de escrita do autor. Assim, a escrita pré-existe ao leitor, mas, sem este, a escrita de nada adiantaria.
Escrever é cavalgar um touro selvagem à beira do abismo. Com uma pequena condição: o abismo é o Outro, teu leitor. O mesmo objeto que te causa atração (pelo fascínio do empuxo ao vazio) para a morte é o mesmo que te eterniza para além dela.
Portanto, a escrita é o vértice da vida e ao mesmo tempo o fluxo vertiginoso da morte. Fio de Ariadne que te guia pelos labirintos da vida e Minotauro que te caça implacavelmente quando não sabes a saída.
A escrita é a parte de teu corpo que ficou perdida juntamente com tua alma quando saiste do Jardim das Delícias se ele tivesse existido. A escrita descompleta o todo e surpreende a imagem indo além dela. Furando-a. A escrita descompleta o silêncio ao inaugurar um espaço de possibilidades que ainda não havia sido inventado. A escrita é um rumor que não te acalenta, ao contrário, te convoca a tudo o que é intervalar. A escrita se confunde com a respiração e, talvez, como disse M. Weber, a gente precisasse de pautas musicais para escrever. A escrita dorme cega e acorda míope. Dorme míope e acorda em outra língua. Dorme em outra língua e deságua em Mozart. A escrita subverte, transmuta, ilumina, cega, clareia e vadia como uma prostituta elegante entre uma letra e outra.
Nas margens da escrita, a palavra sofre exultante, contrita, a imundice nostálgica da terra arqueológica revirada nos subterrâneos de um livro. Há um grito de dor na escrita. De longe ouve-se este pranto-estertor que vem de outra terra. País distante onde a régua do horizonte desalinha fronteiras. Distante, longínquo como a imaginação. Quase tudo na escrita pertence a este limiar intraduzível. Quase tudo na escrita comporta um não saber, ou melhor, um saber em constante extinção. Um saber não-sabido: criação.
Nas margens da escrita, a palavra sofre exultante, contrita, a imundice nostálgica da terra arqueológica revirada nos subterrâneos de um livro. Há um grito de dor na escrita. De longe ouve-se este pranto-estertor que vem de outra terra. País distante onde a régua do horizonte desalinha fronteiras. Distante, longínquo como a imaginação. Quase tudo na escrita pertence a este limiar intraduzível. Quase tudo na escrita comporta um não saber, ou melhor, um saber em constante extinção. Um saber não-sabido: criação.
Escrever é um ato contra a morte. Ou, como disse João Cabral de Melo Neto: "Escrever é estar no extremo de si mesmo". Mas este extremo também não é a vida em toda sua frágil potencialidade?
7 comentários:
Difícil este escontro com a criação, mas também é como entrar em um jardim secreto e belo sem volta. É entrar em contato com a "Insustentável leveza do ser". Ler se torna então como disse Affonso Romano de Santana :"Ler é tomar a palavra alheia, vesti-la, habitá-la por certo tempo."
Pois, então, à escrita e a leitura!
Um abraço
"O intraduzível da vida conduz-se através da escrita para além da morte". Adorei isso!
Nada melhor para retornar à escrita do que escrever sobre ela mesma, não é mesmo? Nunca deixe de traduzir suas emoções, sentimentos, sofrimentos em palavras, senão nós, representantes do Outro, é que ficaremos no abismo, ávidos pela manifestação de suas reticências...
Concordo com a amiga aí de cima.
Também senti sua falta.
Adoro te ler.
Carlos Eduardo
Escrever é deixar as minhocas sair aos poucos da toca e deixá-las livres... Escrever é liberdade. É voar sem asas. É conhecer-se, o que as vezes pode ser assustador... Enfim, escrever é uma delícia!
Bjos
Anne
A escrita em toda a sua fragilidade e potencialidade, corda bamba de emoções, sensações, desejos e abismos sem redes de proteção. beijos.
Ufa... Que texto! Um turbilhão de sentimentos e imagens!
Quando escrevo não controlo minhas emoções, não controlo nada. Descontrolo-me inteiramente. E se o assunto não puder ser escrito, se ainda estiver verde e não puder ser colhido, choro. Porque sei que ainda vou ter de esperar e suportar aqui dentro aquilo me castigando até que encontre palavras para sair.
Um abraço,
Michelle
Amei o texto. É muito verdadeiro.Fiz um curso de grafologia, onde aprendi que o simples fato de desenhar a letra no papel já é uma catarse.O texto é o complemento. Alguém me falou de um livro muito interessante: La Guérison par l'Ecriture.Eu o encomendei e estou lendo.Muito interessante.
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