domingo, 21 de fevereiro de 2010

Desassossego



Dizem que o nosso coração é do tamanho do nosso punho fechado: se o abrisse tanta coisa fugia. António Lobo Antunes

Inspirado em Marcel Proust

Laura acordou em desassossego. Segundo Ciça, sua melhor amiga, Laura lhe telefonou antes das oito da manhã. Em se tratando de quem era significava uma madrugada insone. Laura aos prantos, ou o que mal restava de seus olhos, disse que estaria em sua casa em menos de trinta minutos. Deveria mesmo ter passado a noite em claro, pois entre despertar e tomar café era um processo arrastado que só Ciça compreendia ou tinha paciência para esperá-la. Mas desta vez Laura foi incisiva e direta. "Me espere. Em meia hora chego aí". Desligou sem esperar a confirmação. A alegria dos primeiros tempos de sua relação havia ressecado sem esperanças como um rio nordestino.
A relação de Laura vinha se arrastando há meses. Há meses ela desconfiava de traição. Há meses ela espreitava celulares, msns, orkuts, páginas da internet que lhe dessem uma pista sobre a outra mulher. E cada sinal, cada signo, cada número indecifrável era um código de confiança quebrado e, portanto, um indício de que não era mais amada. A frustração de se sentir rejeitada era percebida nos atrasos e esquecimentos em que ficava sozinha em sua angústia. Sentia o coração cada vez menos pertencer-lhe. Um sentimento de atopia como se não coubesse em lugar nenhum. Nestes últimos tempos durante estas noites destemperadas, ouvia Billie Holiday sozinha e bebia cerveja entre um cigarro e outro. Queria não se sentir desamparada, mas quanto mais queria se agarrar em seu porto seguro, mais ela se sentia no meio de uma tempestade em alto mar: à deriva em seu próprio coração.
Ciça esperou meia, uma hora e nada da amiga chegar. Ligou mas seu celular não atendeu. Ligou para sua casa e Bia atendeu.
-"Cadê a Laura ?"
-"Não sei, cheguei em casa agora e ela já não estava. É que passei a noite..."
-"Não precisa me explicar nada. Não estou preocupada com o que você fez ou deixou de fazer. Estou só preocupada com minha amiga."
-"Cheguei agora e estou me lixando para onde ela esteja. Vá lá procurar sua queridinha de merda." E desligou na cara de Ciça.
Ciça ainda berrou sozinha até perceber com quem Laura realmente vivia todo aquele tempo. Insistiu no celular durante mais de duas horas até que a voz de um homem atendeu.
-"Este é o telefone da Laura?", disse ela já com a voz trêmula.
-"Você é amiga dela?"
-"Sou sim, por favor quem está falando? Quem está com o celular dela? Você o roubou?"
E um sorriso sarcástico ecoou do outro lado antes da resposta curta e seca.
-"Sou o delegado Souza, minha senhora. E quem é você?"
-"Sou, sou amiga dela. Ela está presa? O que foi que ela fez?"
-"Pois a senhora trate de vir aqui na delegacia agora mesmo." E depois de lhe dar o endereço desligou sem lhe dar mais explicações.
Ciça encontrou o corpo de sua amiga enrolado num lençol manchado de sangue. Ela havia se jogado do alto do prédio de seu psiquiatra. Fora até ele e ao encontrar a porta fechada subiu todos os andares para dar fim ao seu desassossego.
O ciúme a havia matado.

11 comentários:

MaRi_aNa disse...

nossa, edu! ufa..

Nanda disse...

Desassossego e um grande desapego de si...

Anne M. Moor disse...

O ciúme ou a insegurança? Que horror! Desassossego é causado por tanta coisa... se deixarmos... As "brigas" internas podem ser tão doloridas...

Beijos pensantes...
Anne

Ana Paula Gomes disse...

meu punho é mto fino, o que determina meu fiapo de coração....depois do conto, pulsou, pulou, fugiu, se esvaiu. Perdi o fôlego.

Bjos,

Ana Paula

VIRGINIA L. DE PAIVA MELLO disse...

nossa, que desamor!!! que desinteligencia!!! trágico fim.

bjus*
vi

VIRGINIA L. DE PAIVA MELLO disse...

"não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento." (clarice lispector)

Marta disse...

adorei ter chegado aqui.
e vou ficar.
obrigada pelas palavras, lá no meu planeta.


ps. e ainda bem que foi via Patrícia Reis. é que sou fã do que ela escreve. da forma como sente.

:)

Silvia King Jeck disse...

Laura, Ciça, Bia, entrelaçamentos oblíquos e homofóbicos? É isso? De qualquer forma sobra desespero, tristeza, medo, e o que mais seja.
Estive ausente no escrever mas não no ler. Acompanho-te.
A propósito: li O Amor de Swan em novembro.
Bjo, Silvia

Tatiana Monteiro disse...

Quem tem coração sabe o que é desassossego. Emocionante em cada palavra. Saudade das tuas palavras. Saudade de você! Bom demais te ler. Beijo, Tati

♥ BoмBєiiяα ♥ disse...

Olá querido!!

Estou aqui, ta???
Adoro ler coisas interessantes e pelo pouco que vi, aqui vou encontrar bastante!!!
Seja sempre muito bem vindo para compartilharmos idéias, emoções, sensações, e até mesmo as "besteiras"!!! : ))

Grande beijo!!

Eliane Accioly disse...

Sigo você!!!!!!!!
Um abraço,

Eliane Accioly