Silvia pensou em largar tudo e desaparecer quando Gustavo lhe disse que estava morrendo. Era verdade. Ele não blefava, ao menos em relação à sua vida. Os médicos haviam detectado um câncer no fígado. Muito grave; terminal. Mas Silvia não quis saber. Não queria presenciar a morte de seu companheiro de longa jornada.
-"Que chamem isto de covardia", disse ela. "Mas aqui não fico nem mais um minuto." Silvia não suportava a morte ou qualquer tema relacionado a ela desde que havia presenciado seu irmão morrer afogado bem diante de seus olhos. Tinha doze anos e um futuro por viver. Desde então, tornara-se amarga. Achava que a vida tinha sido interrompida. Queria amar, chegou mesmo a se envolver com alguns rapazes, mas os desprezava ou era extremamente dura com eles. Se sorriam, ela não achava graça. Queria uma seriedade ou uma postura diante da vida, mas na verdade era ela o animal arisco. Era ela que se caçava. Era ela o grande algoz da própria vida. Por isso não podia suportar o peso de uma sentença maior do que aquela que ela mesma já se impunha. Embora seu sorriso fosse contagiante, sua alma parecia desandar no descompasso de sua voz quase rouca e sensual.
Gustavo tentou rir de sua própria condição, como que para tentar convencê-la a ficar. Que ela lhe fizesse um pouco de companhia num momento tão delicado de sua vida. Ela não achou a menor graça e perguntou porque ele ria de algo tão grave, afinal, ela disse, tinha razões de sobra para não querer rir. Não abriu mão de seu direito de ir. Afinal, ela era livre. Ele não entedia sua liberdade, pois desde que se conheceram ele se atara a ela. Não com nó górdio, mas na delicadeza dos laços. Bem se sabe que apertados sufocam e, demasiado frouxos, desamarram. Mas ele também tinha seu jeito de amar e verdadeiramente a amava, talvez mais do que ela a ele.
Esta dissimetria tinha sido a tônica de sua vida e agora a doença parecia vir lhe cobrar um preço exorbitante.
Silvia estava resoluta. Foi até o quarto de empregada, pegou sua mala e passando pela sala sem olhar para Gustavo, entrou decidida no quarto. Abriu seu guarda-roupas e começou desconstruir sua vida para não ver o que não suportava.
Mais uma vez Gustavo achou dura demais aquela atitude irrascível de um animal arisco para com ele. Não queria compaixão. Pena muito menos. Queria um diálogo possível ou a volta daquele sorriso que desde o primeiro dia em que se encontraram havia descoberto um sol em plena noite. Queria ouvir novamente a voz da mulher que amava. Mas ele sabia o que o esperava.
Quando Silvia chegou na sala encontrou o silêncio da ausência como resposta.
Ele se antecipara ao lance de dados e havia mergulhado no vazio da rua.
Procurou-o por todos os lugares: casa de parentes, amigos, hospitais, necrotério...
Milagrosamente Gustavo ainda vive: ela o guarda com um tipo especial de amor que não sabia que podia caber dentro do seu coração. Ela, agora sem a antiga dureza, ainda espera. Não mais por aquele menino que um dia sumiu diante de seus olhos, mas pelo homem por quem um dia não soube esperar.
8 comentários:
Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii Carlos Eduardo, que aflição!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Tantas Sílvias e Gustavos por aí... Que triste isso - viver uma vida toda e AINDA não se encontrar. Acabo de ler a autobiografia da Jane Fonda (já leste?), que levou quase 70 anos pra se achar, mas pelo menos parece ter se achado, mas assim...
Ou será que a gente nunca chega a se conhecer????
Beijos pensantes
Anne
Animal arisco, belo título pra uma novela, hein?
Adorei o texto!
bisou
Gostei muito do seu texto,seu blog.
UM GRANDE ABRAÇO E BEIJOS.
animal arisco / domesticado esquece o risco... caetano tava certo! bjo
Engraçado... ao ler, eu também lembrei da música do Caetano.
Belo texto!
Bjkas!!!
Muito interessante o conceito do seu blog, caro Carlos Eduardo.
Fico imensamente feliz de encontrar um espaço tão bem concebido e inteligente, sensível também.
Sou novo seguidor,
Abraço!
Obrigado Cristiano, não só pela sua visita, mas pela leitura atenta e sensível do meu texto.
abraços e volte sempre,
Carlos Eduardo
Iracema,
Obrigado pela sua vinda! Passeie sempre por estas veredas,
abraços,
Carlos Eduardo
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